Ao final dessa jornada
Onde posse vale um nada
Eu diga em contrapartida
Valeram as voltas da vida.
Corisco
"O paciente, em crise de loucura, tentou arrancar o dreno", retrata o cirurgião ao ver que seu paciente retirou o dreno de si, sem anestesia, e com requinte de crueldade. Foi autoflagelamento, diriam, mas por incrível que pareça, ele teve a consciência de não evadir. Relatos como esses não são raros em prontos-socorros.
Teria sido pesadelo? O pesadelo é um sonho desesperado, acordando suado no meio da noite. É quando o marinheiro escuta a tempestade em alto mar; ou barulho da pá do coveiro jogando terra virada para enterrar vítimas de uma pandemia. É o urso rosnando à sua frente numa estrada estreita e sem rota de fuga. É o que faz chorar o coração. É a abstinência dos adictos.
Levado ao setor de radiografias, o cirurgião ficou surpreso ao ver a imagem de parte do objeto no interior do tórax, cujo dispositivo havia sido colocado na sala de emergência, com todo capricho, por incisão de cerca de 2cm.
Decidiu-se pela reintervenção sob anestesia geral. Então o tórax do paciente foi aberto com incisão de quase um palmo, para a retirada daquele corpo estranho, de formato tubular, pouco maior que 30cm. Nessas operações, o que mais maltrata o paciente é a colocação de um afastador, que em metade dos casos acaba fissurando as costelas. A dor pós-operatória é lancinante e pode durar muito tempo. Descobri pela enfermeira de 40 anos de casa, que aquele instrumental ainda era o mesmo desde quando ela chegou, quando ainda era estudante, eu. Convidado, decidi ir ao hospital
para ver aquela situação inusitada em que o paciente entendia que ele mesmo
poderia dar destino ao seu destino. Fui e fotografei, mas o que me faz vir aqui
e relatar não foi o caso em si, mas o passado.
Antes de mais nada, gostaria de pedir
licença a esse passado. Até porque tenho muito mais de memória, do que possa ter
de vida pela frente. Creio que toda relação com o passado é o que tenhamos de mais afiado para enfrentar o que se enxerga pela frente.
Gostaria de seguir falando desse lugar
íntimo em mim, mas que infelizmente sempre foi abandonado pelo
poder público: o Pronto Socorro Municipal
da 14 de março, hoje conhecido com outro nome - que não o mesmo da minha época.
Guardamos tantos lugares profundos, que não dá para visitá-los toda hora, sob
pena de uma parede da tristura desabar sobre minhas costelas. O HPSM é um desses.
Neste momento, se há uma voz teclando essas palavras, digo-lhes: não é a minha voz. É um passado doce e suave no pé da orelha que há muito caminha sobre palmilhas, silenciosamente, como uma espécie de esquizofrenia organizada, em forma de crise existencial. Em verdade, quando tento explicar o que estou sentindo, já brota certa nostalgia, e não tem ortografia que me segure... Nem gardenal.
Foi nesse lugar que comecei minha
vida de cirurgião de trincheira, como peregrino em tantos desafios. De lá detenho gratidão, de lá escrevi livro e fiz muitos amigos. Esse texto é
aquilo tudo que a gente não precisa esconder do outro. Onde há sentimentos que
fingimos não ter e não saborear. Este diálogo está atado no lado oculto de todos nós, sem
precisar expressar que EU fiz isso, ou que ali EU fiz aquilo. Deixemos a
bravataria para quando estivermos na porta do inferno querendo escapar do fogo,
coisa que nem Giordano Bruno conseguiu.
Adentrei àquele hospital sem sequer me pedirem documentos. Desde a portaria e por todo o caminho para o centro cirúrgico fui saudado por todos aqueles funcionários de outrora. Velhos amigos, agora grisalhos. O Marco Fumaça, um técnico de enfermagem das antigas, me parou e não desgrudou. Ainda exala o cheiro de cigarro de outrora. Falamos do passado institucional e de várias outras amenidades. Por conta disso, quando cheguei ao quirófano, a operação já havia findado. Só vi o dito dreno fora do tórax, exposto em praça pública para todos verem.
Eu
me lambuzei nos relembrançamentos submersos naquele passado de encantamento. Pena que o cansaço foi mais forte e tive que pedir escolta ao caminhar para o esconderijo do tempo.
Deixei-me levar pela vida com menos tormenta e mais aconchego para a minha dor
lombar, que ora me pega pela proa e me deixa manco.
Mas devo esquecer as tantas madrugadas roubadas de meu travesseiro, para que possa transformar esse passado em amenidades e um pouco de apreço pelo que fui.
O passado, já sabemos por escrevê-lo ou lê-lo. Mais parece ficção reconstruída com pequenos pedaços de realidade, ou ilhas móveis em mar de memória, a depender dos ventos da saudade que se deslocam e se reconfiguram.
Lembrar-se vagamente é dos alentos que podemos nos propor, em prece, pedindo aos céus que a parte submersa seja sempre a mais contundente e expressivamente maior.
Texto impulsionado pelas palavras de Corisco e Sabá de Abadia, do bando de Corisco.
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