segunda-feira, 1 de julho de 2024

As trincheiras espinhosas da cirurgia


                                                                                If didn’t kill you, surgical training made you stronger

Paul Riggieri, cirurgião e escritor em:”Confessions of a surgeon”

 

Coisas das que mais gosto é flanar por livrarias - ou bookstores para os amantes de viagens internacionais. Tenho predileção pela livraria da Travessa, em Botafogo, quando visito parentes no Rio de Janeiro. É difícil sair dali sem deixar uns dinheiros por lá.

Há as bookstores, e a minha turma do “Urubooks do Ver-O-Peso” bem sabe disso. Numa dessa viagens, no aeroporto de Quebec cujo nome não vou lembrar agora - mas também não vou consultar o Google-, deparei-me com o Medicine Walk, de Richard Wagamese, escritor canadense. Era um quiosque comum. Acheguei-me pelo título, mas comprei após biopsias retinográficas de algumas páginas - como sempre faço. Ademais, gosto de autores desconhecidos. Nesta ida, estava aventurando-me pelo Institut Universitaire De Cardiologie Et De Pneumologie - Québec.

Por circunstâncias outras, voltei a ler o bendito “Medicine Walk” (sem tradução para o português) recentemente e me vi num fragmento que bem descreve as trincheiras de cirurgião.

No romance o jovem Franklin Starlight, 16 anos, sai em busca de seu pai, perdido na floresta. Caminha montado num cavalo, por trilhas estreitas. Numa delas depara-se com um urso. Percebe ameaça a uns oito passos.  Para e fica no dilema entre voltar para casa ou enfrentar a fera e tentar salvar o pai. Foi quando o animal rosnou forte à sua frente, obstruindo toda a trilha. Ele manteve a posição, apesar de estar tenso. O cavalo, por sua vez, tremia. Resolveu lentamente se achegar, a ponto de começar a sentir o pixé do urso. A primeira coisa que pensou foi que suas costelas seriam esmisgalhadas e seu sonho de achar seu pai ficaria ali. Manteve-se teso. O urso segurou o olhar e elevou o focinho para farejar. O coração do garoto batia mais forte; ameaçava sair pela boca. Entrou em outro plano e avançou pouco mais. De repente o garoto exalou o ar pela boca, colocando pra fora o máximo de volume residual pulmonar, ao mesmo tempo que levantou os braços. O urso quebrou. Virou-se e saiu andando lentamente para o interior da floresta. O menino viu o caminho livre e seguiu mais aliviado. Olhou para trás mais uma vez, de soslaio, mas com receio.

Continuou, mas ainda com a sensação de ameaça. O cavalo permanecia assustado e aparentava estafa. O cheiro amargo do urso permaneceu em suas narinas por toda a caminhada. Ao fim, ele encontra seu pai desnorteado e saem dali. A primeira coisa que fizeram foi ir até um centro religioso para agadecer.

A versão da literatura realista de Waganese realça a filigrana do gesto, principalmente quando há adversidades.  A palavra, por vezes vira razão, por vezes salvação; vira agressão, por vezes fracasso. O gesto não. Não há dúvida que, se o jovem, em apuros, estivesse com uma bereta, ou mesmo um estilingue, lançaria mão da arma para aniquilar aquela ameaça e salvar seu pai. Não tendo arma e não podendo se comunicar com palavras para explicar o seu objetivo, ele lançou mão de gestos ameaçadores. Só assim viu seu caminho aberto.

Não há dúvida que o jovem Franklin Starlight foi sobre-humano e já carregava luz e estrela no próprio nome. Se o comum seria recuar, ele usou a força dos pulmões para mostrar sua grandeza, mesmo sabendo dos riscos de expor suas costelas e, por conseguinte, a respiração parar.

Cirurgiões de trincheira são sobre-humanos? Têm luz e estrela no nome? Nada disso. Apenas aparentem super-homens, a despeito do ofício. Têm seus dias que precisam decidir mais fora do que dentro do campo cirúrgico. Há dias em que precisam explicar a uma família que o câncer está disseminado e não tem como erradicar a doença com as mãos da cirurgia. Por outro lado, existem as decisões acertadas. Todos os dias enfrentam seus inimigos, sejam moinhos de ventos ou um ser humano vestido de urso.

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