Há alguns dias um amigo anestesiologista parou-me no corredor para meia prosa, assaz inebriante, que lhe ocorreu após breve anamnese com seu paciente, na ante-sala de operação para retirada da vesícula biliar. Percebeu que o vovô de 82 anos tinha o peito escavado – conhecido como “peito de sapateiro”. Ele, fortuitamente, interrogou o paciente sobre aquela deformidade. Com intenção de dizer que existe solução cirúrgica moderna para o caso, o paciente respondeu na bucha: - Não faça isso dotô. Essa deformidade já me salvou de perrengues.
Segundo o vovô, certa vez sofrera um
acidente de carro e foi levado para o pronto socorro. Meio desacordado e sob
efeito do trauma psicológico, o jovem médico, desavisado, viu aquele defeito e achou que a concavidade seria por conta do acidente. Ensaiou chamar o cirurgião, mas o velho amigo de farra cortou e aparou: defeito de
infância! "Por um triz eu não fui pra sala de cirurgia".
- Tem mais uma, dotô! Fui nadador dos bons, e essa
deformidade dava-me maior tempo de apneia ao mergulhar. Sempre derrotava os concorrentes nesse quesito.
Para ele, o sucesso era por conta daquela afundamento. Leva a vida assim desde então. Para ele nunca foi doença. Só para os cirurgiões. Ou será que o amigo confundiu-se com Peito de Pombo (Pectus Carinado/Carinatum)
Fico a imaginar as histórias que cada médico carrega em seu jaleco. São vivências belas, brilhantes, arrebatadoras. Talvez até mesmo beatificantes. Cabe a cada um, detentor do conhecimento, apenas ter sobriedade para ouvir sem retrucar. Se outrora o espírito não era requerido por um estrito modo de pensar dentro da caixa científica, então a atividade consistia em imaginar símbolos e formas. Há de se perdoar. Não cabe virilidade.
Recentemente (2024), um estudo da University of Cincinnati revelou, com 274 adolescentes com Pectus Excavatum (peito escavado, peito de sapateiro) tiveram seus fôlegos avaliados. Observaram que os resultados em pouco mais de 20% demonstraram alguma pequena restrição na respiração, mas sem essa de melhorar o fôlego, conforme brandia nosso vovô.
O artigo já encanta no título: (F)utility of preoperative pulmonary function testing in pectus
excavatum to assess severity [(F)utilidade dos testes...]
O que se tem feito, e somos adeptos, é esclarecer à
família e tranquilizá-los da melhor forma possível, para que se sintam seguros
em ser submetido a uma operação que menos parece questão visceral e mais um
remodelamento anatômico.
O artigo é muito prático e carrega desde o título a proposta
de todo pensamento científico, ou seja, desvendar dúvidas atrozes que se carrega
no cotidiano acerca da uma deformidade que maltrata a cabeça dos pais e leva
crianças e adolescentes a sofrerem bullying, vergonha e até mesmo depressão.
E o pensamento clínico fica no meio disso,
procurando dar pirueta olímpica para decifrar os sentimentos adversários. Essa,
aliás, não é uma questão fácil de resolver pelos algoritmos da Inteligência
Artificial (IA), pois cada caso precisa ser interpretado de acordo com Inteligência Alheia (Também IA). Por isso devemos
agradecer ao grupo de Cincinatti e a grupos brasileiros que sabiamente buscam tais esclarecimentos.
Mas devo confessar que já não me angustia tanto os
enigmas em torno das fronteiras entre ficção e fatos científicos. Há médicos em que um
dos ouvidos dá voz à ficção; já no ouvido oposto, acústico ao saber erudito, prefere silenciar e deixar que o outro lado não desapareça, pois ainda se precisa
desses relatos para deixar a respiração da humanidade mais leve.
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