sábado, 25 de janeiro de 2025

A estética e a dialética do erro

                                                 Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca 
                                Caetano Veloso, em: “Outras palavras”

A revolução científica do século XX remodelou completamente todas as áreas dos estudos biomédicos, sendo a pesquisa do câncer apenas uma cujos resultados chegam em gotículas milagrosas.

Mas o começo de tudo se deu no século anterior (1858) com Rudolf Virchow, filho da Pomerânia, atual Polônia, com a frase: Omnis cellula e cellula (latim). A frase retrata que todos os tecidos orgânicos são compostos por células e produtos celulares que surgem a partir da divisão celular de uma célula preexistente. Uma descoberta seminal. Virchow foi o próprio Santo Graal da biologia.

Levando em consideração tal questão, pode-se deduzir que todas as células que formam um organismo complexo são membros de linhagens celulares provenientes do único óvulo fertilizado, capaz de originar todas as células do corpo, por meio de repetidos ciclos de divisão e crescimento celular, até se diferenciarem em cabelo, dedão do pé, pulmão, etc. Esse gatilho disparado sepultou a teoria da geração espontânea e fez-nos apaixonar pelas ciências da vida.

A partir dessa revolução dão-se avanços na genética e hereditariedade: de como as células se multiplicam e dividem; de como elas se associam para formar tecidos e de como os tecidos se desenvolvem e se capilarizam a partir de disparos (DNA, genes) específicos. Mas essa produção seriada e linear, em determinado momento falha. Incorre no que os biólogos chamam de erro, um deles conhecido como mutação. É daí que surgem doenças. Cigarro (e agora vapes) e excesso de açúcar (obesidade) são exemplos que destrambelham o trilho dessa linearidade e geram células cancerosas.

            Mas o erro tem mais de uma face e, nos apontamentos de Gyorgy Lukacs, o erro não passa de um peculiaridade, particularidade. Ou seja, se na biologia de Virchow o tal erro é entendido como gerador de males, na arte é o motor da evolução, da criatividade, da admiração. Para Mia Couto biólogo, se o erro não ocorresse, a vida não vingaria, e não passaríamos de uma ameba de esgoto. Como esse erro ocorrido há dois bilhões de anos tornamo-nos multicelulares organizados, depois diferenciados, até chegarmos a Triops cancriformis (camarão girino), que data de 200 milhões de anos atrás, considerado o mais antigo ser existente na terra. Carrega em seu nome científico a raiz etimológica do câncer (cancriformis).

Por sua vez, o Mia Couto escritor e poeta vai além: No fundo, o erro é aquilo que nos surpreende, que não está no domínio do previsto, não está no domínio do lógicoÉ o que os médicos chamam de doença, má formação, mas que os artista veem de outra forma. Para o poeta Manoel de Barros: "errar é bonito".

Se olharmos para as extremidades da Abaporu, percebe-se ali certo exagero no tamanho dos pés. Do ponto de vista biológico existe ali erro (acromegalia), pois ninguém tem uma prancha nos pés - nem sequer os Hobbit. Mas para a arte, esse elemento deu à Tarsila do Amaral destaque com seu surrealismo, a ponto de revolucionar as artes no Brasil. Ou seja, a arte elaborada na base do erro torna-se bela por desconstruir a linearidade da biologia virchowiana.

Portanto, se o erro faz parte da estética da arte, por sua vez a ciência veste-se de branco e embebe-se de sua dialética tão somente para abjurá-lo.

Para dar voz à temática, o físico José Luiz Lopes sentencia: "O Princípio da Incerteza torna o erro natural e, portanto, diferente da distorção infracional, pecaminosa ou criminosa. Assim, o erro, em si, pode ser isento da culpa".