Toda a molecada de Feijó que frequentava o colégio Imaculada Conceição passou a mandar buscar gibis do Flash Gordon, depois que eu falei sobre aquela torre. Alguns passaram a me pedir por empréstimo. Todos passaram também a desconfiar que aquela torre era dele, pois havia uma historinha cuja cena se passara exatamente naquela edificação... igualzinha-igualzinha!
Servia pra comunicação com o Planeta Mongo. Sua namorada,
Dale Arden, havia ficado lá enquanto ele se recuperava e ao mesmo tempo se
escondia, em Feijó mesmo, dos seus perseguidores, especialmente do seu inimigo
mortal, o impiedoso Ming, governante do Planeta Mongo (hoje eu sei: ele era uma
espécie de Trump das galáxias).
Então, a torre servia pra comunicação com Dale Arden e seus parceiros, só os moleques que tinham o gibi sabiam disso. Já pela noite, a gente apreciava o céu noturno de Feijó. Era muito bacana. A cidade, sem energia elétrica a partir das dez da noite, deixava a cargo das estrelas a formação de um tapete iluminado lá em cima, que refletia na cidade. Flash Gordon passeava por ali, e a gente ficava procurando com um monóculo emprestado do sr. Luis Camiranga.
As estrelas exalavam um perfume que envolvia a noite, e eu via as ondas de rádio que saiam da torre e pegavam a estrada que ia pra Mong. No meio dessa estrada havia um bueiro que o exército (5º. BEC, eu acho) construiu e a gente aproveitava para tomar banho, em dias ensolarados. Meu Pai e o Dr. Dão, um juiz de direito bem gordinho, banhavam-se quando o bueiro jorrava aquela água barrenta, feito cachoeira.
O tempo ainda não era a dimensão que se levasse em conta o
espaço; vestia-me com uma roupa nova, brilhante e fascinante que não puía com uso ao longo das noites. O tempo, num escaninho do cérebro – e do coração-,
congela o passado.
No meu mundo, a infância era uma fase da vida onde
toda criança era imortal e sem qualquer obrigação, exceto deslumbrar-se com o
cosmos e com os gibis.
Outra coisa que eu precisava conhecer – e ainda preciso –, é
a neve. Algumas vezes acordei cedinho para esperar a chegada da neve em Feijó, pois já
conhecia a neve do Flash Gordon. Era neve, sim, a de Feijó, mas minha mãe dizia
que não. Falava que na Amazônia não nevava. O lugar mais próximo era a
cordilheira do Andes, mas tinha que andar muito pra chegar lá. Mas aquilo pra
mim era neve, sem dúvidas. Só de uns tempos pra cá percebi que minha mãe tinha razão: era a neblina da umidade que embalsama a nossa região no período de inverno. E assim minha infância acabava de perder mais uma falange
do dedo. Mas como dói.
Veja bem: certo dia fui até o rio Envira, e vi aquele véu. Insisti com
a minha mãe. Ela dizia que a única coisa que poderia sair dalí era a Boiúna. Nunca neve. Foi
quando comecei a me desesperançar, que culminou com a minha idade
adulta. Um dia vou conhecer a neve.
Restava-me procurar as constelações no céu noturno. Nunca
consegui identificar nenhuma. O sacana do Chico Pinto dizia: "Tás vendo a
Ursa Maior?". Cá comigo eu pensava, mas não dizia: "Ursa Maior é tua
mãe, aquela Moby Dick". Não respondia por que achava que Chico Pinto era
filho adotivo. Ele falava também da constelação do Cruzeiro do Sul e eu ficava intrigado, pois não havia Cruzeiro do Norte. Cruzeiro do Sul, para mim, era a cidade onde eu
havia nascido, ali no Acre mesmo.
Acabava me divertindo olhando o firmamento e, quando dormia,
sonhava com estrelas, Flash Gordon e, acreditem, com a Dale Arden que eu tinha
certeza era tão bonita quanto Ligia, Carmem, Tânia e tantas meninas de Feijó.
Faz tempo que meus sonhos não repetem esse padrão da infância. Hoje, nas madrugadas a única coisa que busco é o perfume que sentia de minha infância. Não sei em qual giro do planeta esse aroma se esvaiu. Talvez o planeta Terra não esteja receptivo ao perfume das estrelas.
Texto inspirado em uma das obras de Corisco.
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