A última edição de 2007 da revista Veja é quase toda tomada pela retrospectiva dos fatos mais marcantes do ano. As páginas 64 e 65 são dedicadas a Ana Júlia Carepa. Sob o título “Uma pororoca de escândalos” e ilustrada por uma foto da governadora paraense dançando carimbó no lançamento do PAC da Saúde, o artigo afirma que Ana Júlia esteve sempre presente no noticiário nacional de 2007 por conta dos escândalos mensais em que esteve envolvida – o mais grave deles, a prisão de uma menor em conjunto com homens, na Delegacia de Polícia do município de Abaetetuba.
No dia 13 deste mês, o adolescente Carlos Rodrigues Júnior foi assassinado por policiais militares em Bauru, interior do Estado de São Paulo. Torturado por seis PMs, que lhe aplicaram 30 choques elétricos, Carlos, suspeito de roubar uma motocicleta, morreu de ataque cardíaco, conseqüência dos pavorosos atos dos policiais.
Veja nada disse sobre o caso. Ao contrário: com uma desfaçatez sem tamanho, apresentou, na primeira edição após o caso de Bauru, uma reportagem asseverando que, após 50 anos, a cidade de São Paulo vivera um dia inteiro sem um único homicídio. Creditou a façanha ao governo José Serra, sublinhando as medidas que teriam permitido uma gama de recordes na política de segurança pública do Estado.
O tal dia sem homicídios ocorreu em 07 de dezembro; a morte do menor Carlos Rodrigues Júnior, no dia 13. Em lugar de veicular o artigo sobre o dia sem homicídios na edição seguinte ao fato, Veja somente o publicou na semana do assassinato do adolescente. Notícias sobre o fato do interior paulista, não houve nenhuma. Somente duas semanas depois, a coluna do jornalista André Petry repercutiu o crime dos servidores militares: cobrou do governador paulista uma resposta ao assunto, já que a reação de Serra teria sido protocolar e muito light frente à sua gravidade. Como coluna assinada, porém, evidentemente não espelhou a posição da revista a respeito; trata-se de opinião do signatário.
As demais mídias também não abordaram o assunto com o denodo devido. Não houve o mesmo espalhafato ocorrido quando da prisão da menor de Abaetetuba (espalhafato, diga-se, evidentemente merecido); mas neste caso, mesmo tendo havido morte – o que, recorde-se, não aconteceu no interior paraense, apesar da gravidade da situação – com participação direta, ativa e inquestionável de servidores estaduais, houve silêncio. Uma verdadeira omertà: nem o deputado Raul Jungmann (PPS-PE) apareceu para pedir intervenção federal em São Paulo.
Em resposta ao artigo de Petry, o secretário de Comunicação do governo de São Paulo respondeu a Veja, afirmando que o colunista desinformava seus leitores e que José Serra havia, sim, tomado as atitudes necessárias à solução do caso. Não sei por que o secretário deixou para explicar ao respeitável público a reação do governo paulista somente após ter sido provocado. Ninguém antes ficara sabendo que, além de indignado, Serra, segundo seu auxiliar, movera o mundo para reparar o crime da Administração Pública que comanda.
Além de André Petry, o Observatório da Imprensa, em artigo de 25 deste mês, assinado por Carlos Brickmann, relatou o caso de Bauru da seguinte forma:
É devagar...
Na quinta-feira (13/12), um garoto de 15 anos, Carlos Rodrigues Jr., foi morto por choques elétricos aplicados durante sessão de tortura a que foi submetido, logo depois de ser interrogado por seis policiais militares. Bauru é uma grande cidade do interior paulista; o governador José Serra é o comandante supremo da polícia. Serra levou quase uma semana para falar do caso. E, quando falou, falou fino: disse que a morte do garoto foi uma brutalidade e que a linha de seu governo é o respeito aos direitos individuais. Pode ser; mas Rodrigues não é o primeiro que morre. E que outra coisa poderia Serra dizer? Até o general Pinochet, que o governador conhece bem e detestava, garantia ser favorável aos direitos humanos.
Mas a nossa imprensa é boazinha. Ninguém está pressionando o governador Serra a dizer que providências está tomando, o que fará para evitar esse tipo de barbaridade, como garantirá que a linha-dura contra o crime não ignore os direitos individuais. A governadora Ana Júlia, do Pará, onde ocorreu outra barbaridade inaceitável, foi bem mais pressionada pela imprensa, mesmo não tendo havido morte.
É assim mesmo: o Pará é tido e havido como o fim do mundo. A barbárie, ao que parece, só ocorre por aqui. Quando acontece alhures, é disfarçada, escondida e, por vezes, inclusive justificada.
Não fosse sério, perturbador e revoltante, seria engraçado verificar que na carta com que anualmente brinda os leitores de Veja (publicada na mesma última edição do ano), o dono da Editora Abril, Roberto Civita, afirma que “nunca é demais lembrar que o fortalecimento das instituições depende – acima de tudo – de uma população bem educada, bem informada por meios de comunicação responsáveis e empenhada na manutenção da liberdade, da democracia e da justiça”.
Civita, certamente, não se refere à sua própria revista, nem aos grandes grupos de mídia do país.
7 comentários:
Depois dizem que somos bairristas sem juízo, Francisco. Mas se fizéssemos um inventário dos fatos que provam essa diferença de tratamento entre Norte e Centro-Sul Maravilha, só restaria a esses calhordas negar, o que decerto fariam. Mas os fatos estão aí. Ou será que somente no Pará adolescentes foram presos como adultos? Será que somente no Pará mulheres ficaram em celas de homens?
Que me conste, o Movimento "Posso me identificar?", contra a violência policial, surgiu no Rio. Por que será?
O fato mais concreto, porém, no que tange a essa revistinha, é a linha política bem paga que a preside. E tem gente que só falta beijar... os pés de certos colunistas que nela estão agasalhados.
A maior calhordice é a cara-de-pau do tratamento diferenciado, Yúdice. Estes meios de comunicação pensam que temos o nariz furado para cima, mas suas verdades não resistem à mais rasteira análise.
Abs e boas festas.
mas independentemente do governo em o o pepino foi plantado, o caso de abaetetuba teve a divulgação que merecia. Vamos concordar..
Das 14:15, concordo. Por isso fiz a observação de que o espalhafato foi merecido. Mas, diga-me você: no caso de Bauru, não cabia a mesma divulgação?
Mas, gente. Temos que concordar. A listinha de "deslizes" da governadora pode ser triste de se ler, mas é real. Vocês sabem...
Das 10:47, insisto: a questão não é relativizar a "listinha" de quem quer que seja; é notar que o tratamento da imprensa efetivamente é desigual e vem travestido de "apuração isenta dos fatos".
Se querem dar opinião, que o façam abertamente, ou em seu editorial. Mas não se pode permitir que a imprensa seja marrom e se pinte de verde/amarelo.
Há pessoas que nasceram para fazer política.
Fazer política é ato amplo, porém, não irrestrito.
Numa carreira política há, sobretudo, parâmetros. E esses parâmetros devem ser constantemente medidos.
O problema é que a maioria não o faz.
Prá nós contribuintes. Resta a expectativa dos milagres. Das naves espaciais em forma de um grande objeto voador não identificado, pousar a qualquer momento e nos levar para o nada!
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