sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A agenda político-religiosa dos brasileiros

Marina Silva deu uma entrevista na qual asseverou que a religiosidade do brasileiro é um fator que não pode ser ignorado. Está correta. Não pode ser ignorado inclusive em uma campanha eleitoral. Mas eu — não sei se por ingenuidade, marra ou mesmo burrice — continuo batendo na tecla do Estado laico1. E entendo que, sendo a laicidade um atributo do Estado Democrático de Direito, não se pode construir a agenda política de uma Nação, estejamos ou não em período eleitoral, sobre fundamentos religiosos.
Existe uma diferença superlativa entre levar em consideração e pautar decisões precipuamente com base na religião.
Em mais uma grande contribuição ao desenvolvimento do país, José Serra instituiu a temática religiosa como um dos principais focos da agenda política para o segundo turno, pegando uma carona estúpida na relação entre as ideologias de esquerda e o ateísmo, que é clássica, porém não necessária. Dilma Rousseff, tola, pegou corda e hoje sugere que o seu recente câncer a levou a reflexões íntimas e ao retorno à Igreja Católica. Frangamente.
Os segmentos religiosos (rectius: aqueles que gritam e insistem em querer dominar o mundo, católicos e evangélicos) chegam ao abuso de impor compromissos, p. ex. não encaminhar ao Congresso Nacional projetos de lei sobre certos assuntos, tais como o onipresente tema do aborto. Aí eu pergunto: no anteprojeto de reforma do Código Penal, que se encontra estagnado há anos, o tema aparece e isso é inevitável. Acaso o novo presidente está impedido de diligenciar a reforma do Código Penal, sob pena de quebra do compromisso ou, talvez, de penas eternas?
O discurso de Marina incorre num vício recorrente: polariza a discussão religiosa em torno de católicos e evangélicos, como se não houvesse no mundo nenhum cidadão de outra orientação. Ela disse, p. ex., que "o respeito pela diferença pressupõe o direito daqueles que são evangélicos ou católicos de afirmarem os seus pontos de vista". Mas vejamos o meu caso: sou espírita, pago impostos, estou em dia com minhas obrigações militares e eleitorais e não respondo a qualquer procedimento administrativo ou judicial, cível, criminal ou de outra natureza. Será que também possuo o direito de afirmar meus pontos de vista?
Conheço uns judeus que, suspeito, também gostariam de afirmar os seus. Também conheço uns profitentes de cultos afrobrasileiros, agnósticos e ateus. Curiosamente, penso que discutir religião também exige que se leve em consideração a opinião dos setores que refutam a existência de Deus ou a influência de fatores sobrenaturais sobre nossas vidas. Mas, como sempre, a sectária e cínica discussão sobre religião nunca leva em conta essas minorias, certo? É por isso que afirmo: a grande e omitida verdade sobre o debate é que, no fundo, não se quer discutir religião, valores, humanidades. Quer-se discutir mecanismos de poder. Como adquiri-lo e mantê-lo. E me esconder atrás de Deus é uma estratégia clássica e eficiente para me dar direitos. Quem vai peitar Deus, não é? E se surgir alguém, é um canalha.
Por isso, a agenda política da campanha, centrada na religião, é não apenas equivocada em termos do Estado Democrático de Direito. É também mal intencionada. Gostaria de ver alguém falar sobre isso.

1 "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público" (Constituição de 1988).

Um comentário:

Artur Dias disse...

Já em 1978 o Roberto Romano, no livro "Brasil: A Igreja contra o Estado" fazia essa relação entre religião e poder. No caso, a Igreja Católica era o alvo da crítica. Dê uma lida, que vale a pena.