sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Democracia no Governo Lula: O Olhar de um Diplomata

Parte significativa da imprensa e a oposição têm feito severas críticas ao que consideram ameaça à democracia no governo Lula. O argumento desse tipo sugere que a candidata Dilma constituiria risco ainda maior, em razão de seu “estilo” autoritário. Vale lembrar que Lula não hesitou em rechaçar os boatos de terceiro mandato, o que seria uma tentação óbvia, dada a ausência de sucessores naturais e dada sua extraordinária popularidade pessoal. Dilma, por seu turno, deu provas de compromisso com a democracia, de luta contra a ditadura, tendo coordenado ações do governo que não se cansam de procurar ouvir a sociedade em diversos fóruns, conselhos e conferências, cujo propósito é fazer com que as políticas públicas sejam mais que jogadas de marketing ou decisões de um líder incontestável. Tive oportunidade de ver isso ocorrer nas áreas de educação e de segurança alimentar e nutricional, em que se percebe um diálogo legítimo entre governo e movimentos sociais, que reconhecem seus papéis distintos, mas compartilham códigos discursivos e referenciais comuns, em poucas palavras: “falam a mesma língua”.
Ressalte-se que o histórico do PSDB e de seus aliados é bastante questionável nessa área. Em fins 1993 e 1994, ocorreu no Brasil um processo de revisão constitucional, previsto pela Constituição de 1988. Naquela época havia grande expectativa de que o Partido dos Trabalhadores seria vitorioso nas eleições presidenciais de 1994. E não foi por acaso que a maioria governista modificou o mandato presidencial de cinco para quatro anos, sem possibilidade de re-eleição, por meio da Emenda Constitucional de Revisão no. 5, de 7 de junho de 1994. Esse casuísmo gritante, às vésperas da eleição, não foi caso isolado. A Emenda Constitucional nº 16, que aprovou a re-eleição para os cargos do executivo brasileiro, beneficiando diretamente o Presidente Fernando Henrique Cardoso, data de 4 de junho de 1997, apenas um ano e poucos meses antes do escrutínio de 1998. Mais recentemente, José Serra, enquanto pré-candidato e depois candidato à Presidência da República, defendeu explicitamente o fim da re-eleição, em óbvia tentativa de sinalizar apoio ao projeto de Aécio Neves para 2014 e viabilizar maior coesão do PSDB nas eleições de 2010. Não me parece tratar-se de modo republicano de lidar com as instituições democráticas.
Penso a questão da re-eleição em sua dimensão política de mudança intempestiva e casuística das regras do jogo democrático. As muitas alegações de corrupção e compra de votos no Parlamento, dominado pela aliança PSDB-PFL (esse último, o nome antigo do Democratas), deveriam ter sido mais bem investigadas. No entanto, não acredito em paladinos da moralidade; não são úteis à democracia, pois reduzem instituições e procedimentos à vontade dos “homens de bem”. A corrupção não é novidade em nenhuma democracia (alguns defendem mesmo que a corrupção seja constitutiva da democracia, na medida em que valores tradicionais se esgarçam e se perdem referenciais de ética em sociedades modernas e complexas); o que importa é fortalecer os mecanismos pelos quais uma nova ética pública, ainda que sempre precária, seja constituída, informada por instituições abertas à crítica e à possibilidade de reformas. É preciso analisar como funcionaram as instituições capazes de investigar e punir crimes e irregularidades e defender a Constituição.
A Polícia Federal (especialmente sob o comando de Márcio Thomaz Bastos, então Ministro da Justiça, e o Ministério Público Federal, e seus procuradores-gerais escolhidos pela própria instituição, têm dado mostras de isenção e grande ativismo nos últimos anos, o que contrasta com a lentidão e os constantes arquivamentos no Ministério Público sob a égide de Geraldo Brindeiro. A primeira votação feita pela Associação Nacional dos Procuradores da República para formar a lista tríplice ocorreu em 2001. Os mais votados foram os subprocuradores-gerais Antonio Fernando de Souza, Cláudio Fonteles e Ela Wiecko Volkmer de Castilho. O presidente Fernando Henrique Cardoso recusou os nomes. FHC preferiu reconduzir, pela quarta vez, Geraldo Brindeiro ao cargo de procurador-geral. À época, Brindeiro ganhou o apelido de “engavetador-geral da República”. O presidente Lula, apesar de não ser obrigado a seguir a lista da ANPR, prestigia desde 2003 os indicados pela instituição.
Vale lembrar que o governo FHC contou com ampla maioria no Congresso Nacional, podendo valer-se de inúmeras reformas constitucionais, do instrumento das medidas provisórias, coibido apenas em 2001, e vencendo as eleições, ambas as vezes, já no primeiro turno. Mas a grande imprensa brasileira não considerou nada disso um risco à democracia. Ora, sempre haverá riscos à democracia, e a sociedade deve estar em constante alerta, porém tais riscos não podem imobilizar a ação política, nem impedir a discussão de temas polêmicos.
Costuma-se falar, nesse sentido, que o governo Lula cerceia a liberdade de imprensa ou que tenta controlar os meios de comunicação social de massa. Na verdade, o governo enfrenta muitas resistências ao tentar aprofundar o caráter republicano e democrático de nosso sistema de comunicações. Tornou-se um tabu sequer discutir um novo marco regulatório do setor, quando o mesmo poderia ser construído de modo democrático, com o fim de tornar o acesso à informação mais amplo e sem qualquer atentado aos contratos existentes ou à liberdade de expressão. De certa forma, houve um avanço importante com a criação de empresa pública (não-estatal), sistema previsto no art. 223 de nossa Constituição. O sistema público presta contas à sociedade e não ao governo, como é o caso da Empresa Brasil de Comunicações (EBC - http://www.ebc.com.br/), que segue o modelo bem-sucedido da Corporação Britânica de Difusão, a BBC, unificando e gerindo a Radiobrás e as emissoras federais já existentes sob um novo marco de controle social. Faz parte da democracia criticar a própria democracia, buscar mecanismos de seu aperfeiçoamento, assim como deve fazer parte dela a crítica a seu elemento constitutivo, a imprensa.

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