quinta-feira, 10 de março de 2011

Laudelice é personagem de Milton Hatoum, em “Cinzas do Norte”

Roger Normando*

Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares
Guimarães Rosa em: Grande sertão: veredas; epígrafe em Cinzas do Norte, de Milton Hatoum


O sobre-humano romance “Cinzas do Norte”, do fabuloso Milton Hatoum, tem como protagonista Raimundo, que atende por Mundo, filho único de pais ricos. O romance se passa na Manaus do período militar e da expansão industrial, e contém uma impressionante riqueza de detalhes da legenda urbana, na voz de Lavo, o narrador em 1ª pessoa.
Mundo sonha em ser artista, mas percebe que Manaus e o pai não estão abertos para suas idéias. Mundo decide então ganhar o mundo: abandona toda herança dos seringais e passa a sonhar com a Europa. Antes de partir, porém, prepara Campo de Cruzes, obra viva de arte contemporânea que visava expor as mazelas do “Novo Eldorado”, bairro preparado para albergar os imigrantes que chegavam estimulados para trabalhar na Zona Franca. A obra consistia de cruzes fincadas em frente de cada uma das habitações. Os moradores ficavam deitados e, nesse sentido, dava a impressão de cemitério. O Campo de Cruzes torna-se notícia de jornal, agride prefeito mão-de-ferro Zanda e irrita seu pai, um explorador de juta e amigo dos militares. Mundo, expulso de duas escolas - inclusive a militar - definitivamente percebe que a sua terra natal não é lugar para crescer, e arruma as malas para Berlim logo após a morte do Pai.
Campo das cruzes pode muito bem representar a Comunidade Santa Marta, do atual prefeito Amazonino Mendes, tendo Laudelice Paiva como uma de suas protagonistas carregando a cruz da pobreza. Amazonino é o autoritário Zanda em “Cinzas do Norte” e Laudelice é a paraense de 37 anos que deixou o prefeito desenxabido ao enfrentá-lo com as armas de Jorge (a perseverança ganhou do sórdido fingimento, nas palavras contundentes, que bem lembra Maria Bonita; na retórica politizada da imortal Capitu; na dignidade no pensamento, tal como Zilda Arns luzia; na impavidez do olhar cerrado de toda mulher multípara mãe de sete, digo, sete filhos).
Laudelice mora na Comunidade Santa Marta, onde encara o Prefeito que lhe sapeca palavras de ordem: “minha filha, então morra...” e reforça “...morra!!!”. Tudo por ter-se negado a abandonar o lugar de risco, uma espécie de Novo Eldorado, onde três pessoas morreram por desmoronamento de terra com as chuvas do inverno amazônico. O estampido ecoou na rede mundial e desnorteou a liberdade de ir e vir de todo brasileiro, enodoando a gravata da democracia tupiniquim.
O Novo Eldorado, da criação e da encenação é a Comunidade Santa Marta de Laudelice, num calabouço a espera da enxurrada invernosa e do medievalismo, tipo, “então, morra”. A arte contestatória de Mundo e a munição de Laudelice colocam em xeque o status quo, ao mostrar a verdadeira face do Estado repressor e sem recursos de retórica. Porém, nos dias de hoje, a cuspida de Amazonino esbarra na democracia, e o prefeito pode sofrer Impeachment e só assim salvar o Estado brasileiro, demarcando a vitória da pedrada de David sobre o Golias armado de fuzil AR15. Afora isso, A comunidade Santa Marta em nada difere do Novo Eldorado de Zanda. Zanda em pouco se difere de Amazonino.
Laudelice é um dos personagens invisíveis de Hatoum em “Cinzas do Norte” que atormenta Amazonino, e tal como em Hamlet, é o fantasma do déficit habitacional que anda azucrinando o Estado por trás das cortinas transparentes, onde as sombras desassossegadas tendem a se multiplicar e puxar o pé dos governantes em noites de lua cheia e de chuvas castigantes. Desta forma, os pormenores da Manaus de 1970 foram revistos após 40 anos, e o camaleão Hatoum veste-se de paleontólogo e reconstrói um dinossauro a partir de uma pegada geológica deixada em Campo de Cruzes.


* Cirurgião de Tórax, amigo do poster e colaborador cada vez mais frequente do Flanar

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