Sempre que me perguntam sobre as diferenças de viver no Brasil e na Bélgica, me vêm à cabeça situações práticas e me esqueço de importantes detalhes, digamos assim, rituais e simbólicos. O mais marcante é a diferença das festas de final de ano e o ato de presentear as crianças. Nessa parte da Europa, o dia mais importante para a criançada é o 6 de dezembro, dia de São Nicolau ou Sinterklaas, em neerlandês. Ele é a figura que tem origem no santo Nicolau de Mira, uma cidade atualmente chamada Demre, na Turquia. Reza a tradição que Nicolau era um bispo bizantino que, por volta do ano de 350 d.C., ajudava famílias em dificuldades. Ele doou sua fortuna, herança paterna, aos pobres, jogando dinheiro e presentes para as crianças pelas chaminés. Depois de sua morte, no 6 de dezembro, foi declarado santo e já na Idade Média se registraram alguns milagres e aparições de Nicolau na Espanha.
Aqui no norte da Europa, a tradição é que o Sinterklaas, ou Sinta para os íntimos, vem de barco à vapor de algum porto espanhol. À bordo, ele traz seus ajudantes e um cavalo branco, para se deslocar em terra. Quase todas as cidades da Bélgica, Holanda e Alemanha organizam a chegada de Sinterklaas no final de novembro - um evento festivo em portos ou praças. As crianças devem se comportar bem durante o ano e escrever uma carta ao Sinterklaas. Na noite do 5 para o 6 de dezembro, se deve deixar um sapato perto da janela ou da lareira, tendo a gentileza de deixar também torrões de açúcar e cenouras para o cavalo do santo. Ele passa para deixar tangerinas trazidas da Espanha e, claro, os presentes. Sinta é assessorado pelos ajudantes, que são chamados Zwarte Piet, homens pequenos e pretos (zwarte) por causa da fuligem das chaminés por onde descem às casas.
Nos dias que antecedem o 6 de dezembro, sempre há homens vestidos de Sinterklaas nas grandes lojas, e as escolas organizam recepções para o Sinta. Ele posa para as fotos com as crianças, conversa e recebe as cartas com pedidos. Isso quando as crianças não enviam pelo bPost. Este ano, o correio belga recebeu 100 mil cartas destinadas ao Sinterklaas. Dessas, 85 mil que tinham nome e endereço dos remetentes no envelope, foram respondidas pelo Sinta que envia também um presentinho. Existe uma larga tradição de canções, filmes, desenhos animados, álbum de figurinhas e outros artigos em torno do Sinterklaas.
Papai Noel? Quem? Os belgas conhecem esse personagem, chamado de Kerstman (Homem do Natal) ou Père Noël, mas ele está quase desaparecendo das vitrines e dos anúncios de TV. A razão é uma certa resistência cultural à essa figura yankee, surgida em 1931 numa jogada publicitária da Coca-Cola. Os americanos pegaram alguns detalhes do Sinterklaas e criaram essa figura obesa, que vem do Polo Norte, num trenó etc. Outro motivo da resistência ao "bom velhino" é mesmo econômico. Nesses tempos de crise, não dá para presentear as crianças no 6 e no 25 de dezembro. Como diz uma amiga nossa, o Kerstman e o Sinterklaas usam o dinheiro da mesma conta bancária.
9 comentários:
Edvan, super-interessante!
O neo-imperialismo interfere até nas mais antigas tradições.
Abs.
É isso Scylla, neo-imperialismo: mas quem mandou os americanos inventarem o bom velhinho, rsrsrs.
Além disso, esse post me lembrou Senhor dos Anéis. Todas as fadas e outras entidades que habitaram a nossa imaginação desde sempre: fábulas européias misturadas com iaras e botos.
É Scylla, o poder da mídia: a ascenção do Papai Noel se deve muito à influência da TV, principalmente, e no caso do Brasil, uma mídia nos moldes norte-americanos.
Verdade Marise, todas as lendas e fábulas no mundo todo têm origens comuns. É o que a gente pode chamar de o DNA das tradições imateriais.
Edvan, esse caso da Coca-Cola tem uma estória, me permita contar.
Nos EUA o Papai Noel era representado com as cores marrom e verde, cores do azevinho, planta da qual se fazem as tradicionais coroas natalinas, colocadas nas portas das casas.
Ocorre que em 1863, numa edição da revista Harper´s Weekly, o cartunista Thomas Nast desenhou o Papai Noel com uma roupa que imitava o padrão da bandeira dos EUA, que é azul, vermelha e branca.
Quando a Coca-Cola lançou a famosa campanha de Natal de 1931, o responsável pelas ilustrações, Haddon Sundblon, aproveitou a figura criada por Nast, que já era uma imagem popular do Papai-Noel nos EUA. Eliminou o azul, para ficar apenas com as cores da empresa, branco e vermelho - escolha acertada, já quem em 1945 a Pepsi, principal concorrente, adotou o azul em seu logo...
Sobre a razão da resistência de alguns países europeus em relação ao 25/12, acredito que se deva à Reforma, pois o 25/12 proliferou mais fortemente nos países católicos. Os países que se mantiveram mais centrados no Protestantismo não acolheram muito o 25/12, que é uma data de nascimento do Cristo estabelecida por bula papal.
Mas essa já é uma outra estória...
(Mas se quiser eu conto também!)
Obrigado pela ótima postagem, Edvan. Gosto muito de cultura geral e de conhecer tradições alienígenas. No mais, não tenho simpatia pela figura do Papai Noel e, claro, sou duramente criticado por isso, como se estivesse roubando algo vital para a felicidade de minha filha. Isso me irrita.
Como não posso remar contra a maré, falo de Papai Noel para ela, mas como um personagem, não como um fato real. E não é ele quem traz o presente de Natal.
Alan, muito interessante o detalhe do Papai Noel verde que virou vermelho. Mas, note bem: não há resistência ao 25 de dezembro nessa parte da Europa. O Natal aqui é comemorado por católicos e protestantes. A Bélgica, com sua maioria flamenga católica, não tem nenhuma restrição ao natal em si, mas sim contra o Papai Noel.
Meus netos são Belgas e por isto tenho duas despesas, presentes no dia de S. Nicola e no diA 25, ambos com muita alegria.
Et o Père Fouettard?? Foi esquecido? As crianças morrem de medo.
Pai, Pedro do Fusca, tu esquecestes o meu aniversario :))
Aqui em casa a gente festeja St Nicolas e Natal. Nao poderiamos privar as crianças das tradiçoes belgas e nao podiamos esquecer nossas proprias tradiçoes.
Et o Père Fouettard? Foi esquecido? As crianças morrem de medo...
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