“No mar estava escrita uma cidade.”
Carlos Drummond de Andrade
A frase epigrafada acima está lapidada no banco onde está talhado Carlos Drummond de Andrade, no calçadão de Copacabana. Deixa bem clara a cumplicidade poética entre o mar e a princesinha, sob a tinta do nosso poeta maior. Existem cidades, mundo afora, que gostariam de ter as curvas anatômicas que o Rio de Janeiro perfila em suas montanhas, praias... garotas. Recentemente a própria UNESCO concedeu-lhe o merecido prêmio de patrimônio cultural da humanidade: foi a catarse drummondiana.
Em algumas cidades encantadoras, deparo-me com fartas questões: Paris é bela, mas não tem mar; Londres é bela, mas não tem mar; Praga é bela, mas não tem mar. Têm respectivamente no Sena, Tâmisa e Vltava, rios que as adornam com curvas sensuais, mas que servem apenas de alegoria ao homem, arquiteto de cidades. Há quem ache esses rios formosos. Não acho, eu. Tenho pra mim que são rios mortos, e não guardo boa relação com defuntos. Tenho em mim, mesmo, rios vivos onde fui criado me asseando e jogando anzol para ouvir a pulsação da água. Tanto é que moro defronte ao Guajará, que todo dia enxágua minha janela de sentimento e me banha em poesia.
Madrid é bela, mas não tem rio. Moscou se limita ao um córrego que chamam de rio; São Paulo nem se fala. Buenos Aires tem um porto totalmente descaracterizado da natureza, apesar de belo. Regozijo o Tejo, esse sim. O rio da aldeia de Fernando Pessoa corre na minha veia e desemboca no coração atlântico de todos nós. Talvez seja esse o motivo de permanecermos umbilicados a Lisboa.
Mas rio - que é rio mesmo - é o Amazonas, com todo respeito aos Nilo e São Francisco. No Amazonas conheço uma cidade, Macapá, mas que não teve arquiteto. Em que pese o descuido da população e dos governantes, a cidade olha para o Amazonas numa relação linear, a formar ângulo de 45 graus com o sol equinocial, 90 com a linha do equador, 180 com o rio-mar e 360 com a poesia. Isso basta. É relação visceral e estrondosa, em forma de pororoca, auscultada no pulmão dos artistas de suas ribeiras: “O nosso rio, esse ano, despencou no varjão. Onda quebrou, onda bateu, onda derrubou toda maromba. Engoliu a plantação”, vocifera Ruy Barata em "Macaréu". No fado plangente do mundo, Chico Buarque e Ruy Guerra declamam: “e o rio Amazonas, que corre trás-os-montes e numa pororoca deságua no Tejo”.
Mas falta a Macapá o marco que ensandeça as ribeiras desse rio, por isso, ulula nas minhas ideias um épico seqüestro: desarraigar aquele Drummond de Copacabana - com ou sem os óculos-, embarcar a peça num Ita e fincá-la ao pegado da Fortaleza de São José sem esquecer aquela poesia. Traria o poema numa algibeira e mudaria seu dizer, ao hibridizar com o jeito tucuju de cantarolar: “nesta cidade está escrito um rio de alma e cor brasileira”.
Para: Joãozinho Gomes e Val Milhomem
6 comentários:
Tens razão Roger, aquela vista é, de fato, "360 com a poesia": deslumbrante!
E isso basta...
nas versos de Drummond (Carlos Drummond de Andrade, Alguma poeisa, 1930).
"Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça.
Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber em copo de cristal,
canequinha de folha de flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve".
em versos rogerianos:
Eu bebi esses versos,
como cachaça, entornei,
ribeirando em passos curtos,
ouvindo o estrondo do rio,
ao norte das águas barrentas,
no meio do mundo drummond
E também estavas comovido como o Diabo; não é?
Perfeitos. O Roger, a poesia e o Drummond.
É? Então... é!
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