sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Sou trabalhador, eu. Tenho nada com isso, não

Tudo começou há quatro anos. Não conheci a mãe. Seu pai, líder comunitário achegado a políticos fortes. Ele adentrou pela emergência daquele hospital por ter sido alvejado de balas pela polícia. Uma atingiu a raiz do pulmão direito deixando-o grave, pálido, agônico. Ainda consciente insistia na inocência: “sou trabalhador, eu”. Para mantê-lo vivo demos um talho no tórax e rapidamente retiramos o pulmão pela tática designada pelos gringos como “Damage control” (operação-CTI-operação novamente e CTI no final, se sobrevivesse).
Sobreviveu. O brônquio, um pouco longo, teve que ser re-amputado na segunda operação. Informamos ao Pai. Ele não perdeu tempo e escafedeu-se, mas não para culto ou missa, e sim direto ao canal de televisão: “erro médico: cirurgião opera e deixa resto de pulmão no interior do tórax de inocente cravejado de bala pela polícia”.
Àquela altura duas laias: cirurgiões e policiais. Teríamos pela frente, ainda, assistência diária, telefonemas do vizinho e vontade de sumir. Ele fugiu primeiro, com dreno e tudo.
Adquirira infecção e voltou. Não conseguiu internar em outro hospital, exceto no Barros Barreto, pois o pus se pusera a escorrer pela operação. Ninguém queria atendê-lo. Fui por imposição da diretoria. Convoquei o Pai para um dedo de prosa na cara e explicar que estava ali por obrigação e desgosto. Não havia jeito, eles tiveram de aceitar. Com o tempo a relação ficou mole.
Obteve alta ainda com o tubo após algumas semanas, à custa de antibióticos, curativos e visitas com pouca figa. Disse-lhe antes de ir que a única solução definitiva para retirar o tubo seria arriscar uma toracoplastia, operação com chances de transfusão sanguinea e fracasso. Ele refugou. Saiu pra vida com tubo e tudo. Desfiz a figa.
Após dois anos, entre idas e vindas, o outro pulmão esticou, ficou curado do pus e livre do dreno. Milagre, mesmo. O deus dele batia o martelo da justiça.
Certa vez vi-o convocando passageiros numa van na Almirante Barroso. Sorri enfim e apesar. Ele alardeava: “40 hora, 40 hora. Quem vai?”. E eu a flertar aquele trabalhador sem que ele me percebesse. Estava forte e tinha fôlego de sobra para um só pulmão. Um final feliz, diria-se...
Até que nesta semana, numa das consultas, estava novamente ele: algemado e sem o pai. O policial que o acompanhava se espantou ao perceber que éramos velhos conhecidos. 
- “Dotô: eu sou trabalhador, eu. Tenho nada com isso, não. O meu peito é que dói por causa das duas operações que o senhor fez e daquela mangueira grossa que vocês colocaram em mim”.

12 comentários:

Marcão. disse...

Como diria o poeta Joãozinho Gomes: " Reparte com os urubus o lixo nosso de cada dia".

Marise Rocha Morbach disse...

O maior alento que este blog me dá é o de saber que, em qualquer emergência de hospital que eu entrar aí em Belém, vou poder gritar: Scylla, Roger, Barreto: SOCORRO!!!!!! Rsrsrsrs.

Pedro do Fusca disse...

É Marise, que pena que alem de pagarmos planos de saude ainda termos que ter amigos para nos socorrer e isto é a pura verdade precisei de uma emergencia e tive que brigar para fazerem exames para saberem o que aconteceu. Penso que tambem posso gritar por socorro ao Scylla e ao Roger!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Marco, boa lembrança do J. Gomes. Frase perfeita para o texto. Poderia ser a epígrafe.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Marise, a ordem de deixar o Barreto por último representa gravidade? Afinal ele é intensivista...

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Ufa! O Pedro não citou o Barreto. É sinal que não passou da sala de emergência. Teve alta precoce.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Marco, boa lembrança do J. Gomes. Frase perfeita para o texto. Poderia ser a epígrafe.

Carlos Barretto  disse...

Ahahahahahah!
Meninos e meninas. Comportem-se.
Ahahahahahahah!

Pedro do Fusca disse...

Roger, é que não tenho intimidade com o Barreto, mas penso que se preciso gritarei pelo seu nome e direi que conheço voce e o Scylla e tenho certeza que ele me salvará tambem. Rs. Rs. Rs. Rs!

Marise Rocha Morbach disse...

Roger, a ordem é esta mesma, rsrsrsrs

Carlos Barretto  disse...

Pedro.
Rsssss

Scylla Lage Neto disse...

Marise e Pedro, espero nunca encontrá-los "flanando" no hospital, mas se precisarem podem contar comigo.
Abs.