quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Na cabeceira da existência: a Faculdade de Medicina





Às tardes, 
meu caminho encontrava um casarão de esquina,
cinzento, 
onde via, 
na porta, 
pessoas que se inteiravam do mistério de curar.
Com a mente cheia de sonhos
 um dia entrei lá.

Aristóteles de Miranda, médico e poeta.



Nestor perguntou à enciclopédia de História qual caminho para o Largo de Santa Luzia, pois sabia da existência de um rubi da ciência na Amazônia. A enciclopédia pediu-lhe para abri-la na página 1923 d.C.: vagalumiou uma seta que apontava para o norte.
Tomou a bússola e saiu, tal como um cão farejador, pela selva de concreto permeada por mangueiras frondosas, na direção almejada. Entre uma esquina e outra, pela calçada, Nestor achou capa de jornal velho (janeiro de 1982), caroço de manga chupada, pedal de bicicleta – etc... -, até encontrar uma biografia pelo caminho: era a rota certa.
De posse do Livro, no exato meio-fio dos cruzamentos defronte do Largo, ele abriu na folha 52 e reviu o passado distante do seu ontem. Empinou o olhar em direção àquela edificação de esquina, cinzenta até hoje, saracoteando um segundo olhar à página, que dizia: “arquitetura eclética, dois pavimentos com platibanda ornada em balaústres”. Não entendeu a linguagem, mas parecia um palacete em art noveaus, ou art déco, ou coisa assim: eclética, amodernada.
Perguntou a um velhinho de sandália de dedo, que vendia farinha ao seu lado: – Como se entra acolá? “Acolá” dava sensação de distanciamento.
- Pela porta, moço, desde que saibas ler com os olhos da ciência e do humanismo. Respondeu com intimidade.
Perpassando as páginas seguintes, recebeu um choque nos nervos, um trisca. A obra radiografou o prédio da Faculdade de Medicina (e Cirurgia, como no princípio). Em verdade, acabou por deflagrar um minuto do momento mais doído da economia amazônica: a fratura exposta do ciclo da borracha. “Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que com a ‘quebra’ da borracha a sociedade empobrecera; ficara mais dificil, se não impossivel, mandar os filhos para a Europa. E por que não criar, então, condições para a elite estudar em casa, mesmo, permitindo, de qualquer maneira, que se mantivesse o status quo?”, dizia a página condutora de elétrons.
(A história é um fio desencapado e de alta tensão, cuja tomada fica plugada na literatura. Ao tocar, a descarga atiça os nervos. Só não fica magnetizado quem anda em desplugado da Literatura ou faz terra com a História).
Portanto, a crise financeira fez “ovar” o curso de Medicina. Começou num modesto espaço dentro Colégio Paes de Carvalho, em 1919, conforme relatam Aristóteles de Miranda e José Maria de Abreu, médicos e membros do Instituto Historico e Geográfico do Pará, no eletrocutante “Memória Histórica da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará”, (2010, UFPA). Citam Paes de Carvalho como idealizador do curso (que era médico), mas que só foi implantado por abnegação de um grupo de médicos incomodados com a espera do Governo, em farta crise. Camilo Salgado usou seu prestígio para liderar a força-tarefa, quando o Governador era Lauro Sodré.
Depois houve a aquisição da atual sede, na página 1923. O local fora comprado de uma nobre família e era conhecido como Palacete da Praça de Santa Luzia.  Foi desembolsado menos de 100 contos de reis, quando valia 200, pois a crise da borracha alfinetava a bolha imobiliária. O Governo inteirou com cinco contos. O resto foi doação, e muitas delas por anônimos em apreço aos médicos.
Ao findar a leitura, seis anos já se iam. Nestor fechou o livro num sopapo, flexionou o tronco diante daquela arquitetura, fez o sinal da cruz e pediu proteção aos “camilianos”. Depois comprou um quilo de farinha e tomou o rumo do nariz. Voltou a freqüentar o casarão a partir de 1997, para saber se os cômodos e as platibandas ornadas em balaústres ainda estavam no seu devido aconchego.

Para: Elias Pinto (Jornalista), Haroldo Baleixe, Maria Alice Penna e Cybelle Miranda (Arquitetos). 

Artigo recomendado:
Abreu Junior JMC. A Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará: da fundação à federalização 1919-1950. Rev Pan-Amaz Saude 2010; 1(4):11-16.

3 comentários:

Marise Rocha Morbach disse...

Bela recordação Roger. Contar um pouco da história de um prédio que em silêncio guarda tantos fatos importantes. Me lembrou o primeiro romance de João de Jesus Paes Loureiro no qual o Grande Hotel serve de espelho para narrar a ficção do autor. Queremos mais! Trate de contar...

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Nas horas do tempo desse monumento, contei apenas um minuto. Tem muita coisa para se dizer. O livro que o personagem Nestor fala tem detalhes ora serenos, ora explosivos da história da Medicina. o Elias publicou essa mesma história na coluna dele, de Hoje. Portanto, tal como você, ele (e o "nosso" blog, claro) repôs essa história em evidência. Um dia eu volto. Gostaria de mais tempo para escrever sobre que foi a minha casa, do Scylla e do Carlinhos

José Maria disse...

Parabéns pelo texto lúdico que conta um pouco da história de nossa escola. Se a biografia servir de bússula para os Nestores que a encontrarem , tera valido a pena.