segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Carne humana é muito bacana *


Do muito que eu li em 2012, arrisco a escolher como O Livro do Ano Kannibalisme en mensenoffers - Feiten en verhalen uit Mexico, Brazilië en Centraal-Afrika , traduzindo: "Canibalismo e sacrifícios humanos - feitos e narrativas no México, Brasil e África Central", (2012, Editora Van Helewyck, 431p),  do professor Daniel Vangroenweghe.
Trata-se de um longo estudo sobre antropofagia e o costume de sacrificar pessoas em diversas civilizações, um assunto que o professor acredita ainda ser grande tabu, mas que ainda desperta uma curiosidade que beira a fascinação. "São práticas que aconteceram em todas as partes do mundo e em todos os tempos até o século XX", segundo o autor. Sim, mesmo na Europa - que também tem registros de antropofagia ainda na Pré-História, assim como na grande fome de 1315-1317, e mais à Leste, no cerco de Leningrado pelos alemães na Segunda Guerra, e um pouco antes, na fome de 1932-1933, entre  alguns dos cerca  de 6 mil degredados por Stalin. É o chamado canibalismo de sobrevivência, também ocorrido na China sob Mao;  na América do Sul entre os nossos hermanos urugaios, jogadores de rugby, sobreviventes da queda de um avião  nos Andes, em outubro de 1972; e, ainda nos anos 70, entre os vietnamitas que fugiam da guerra em barcos.
Mas, o principal da obra é mesmo a antropofagia no Brasil, na América Central e na África entre os séculos XVI e XIX.
O capítulo sobre os Tupi é um primor. Vangroenweghe analisa e compara as três principais fontes de informação: os livros dos franceses André Thevet e Jean Léry, e  o livro do mercenário alemão Hans Staden - este último autor do mais completo relato sobre a antropofagia entre os índios brasileiros. Staden literalmente escapou da panela e publicou em 1557 o livro que teve mais de 70 edições, em mais de sete idiomas. O título é longo:"História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão", também conhecido pelo nome "Duas Viagens ao Brasil".
Para o professor Vangroenweghe, o livro de Staden se tornou um best-seller graças às 52 ilustrações, em gravura (uma delas serve de capa do livro ao autor flamengo, na imagem acima). As gravuras são quase uma HQ e revelam detalhes que escaparam do texto. Claro que isso se deve ao fato que o alemão viveu entre os tupis até escapar do caldeirão. Os outros autores, contam basicamente relatos que ouviram de terceiros. Dica para quem ainda não viu: vale a pena ver o filme Hans Staden (trailer aqui) feito em 1999, pelo diretor Luiz Alberto Pereira.
O segundo capítulo é também uma jóia. Trata da prática antopofágica  após os  sacrifícios humanos  entre os Mexica, os Aztecas e outros povos da América Central na época da invasão espanhola (começo do século XVI). Para o professor, a grande difrença entre eles e os nossos índios sul-americanos está no canibalismo como ritual religioso. Para os Tupi, antropofagia era vingança e estratégia de guerra,  para os Meso-Americanos, era algo que se fazia para aplacar a fúria dos deuses, e que seguia uma ordem hierárquica: apenas sacerdotes comiam o coração dos sacrificados e os nobres comiam a carne do corpo.
Já na África Central ( Gabão, Congo Brazzaville, República Centro-Africana, Sudão, Uganda e República Democrática do Congo), até o século XIX, o canibalismo embora tenha tido algum sentido religioso, também era um ato de guerra e até mesmo gastronômico. A expressão Niam Niam (talvez origem do nosso nham, nham) foi usada para designar os canibais do norte-africano por geógrafos árabes, como al-Masudi (956-957 DC). Mais ao centro do continente africano, um viajante europeu no século XIX ouviu de um nativo a seguinte explicação-indagação ao condenar o hábito de degustar carne humana: "Por que nós não comeríamos nenhuma pessoa? Um ser humano é mais nobre que um animal. Nós comemos apenas alguns inimigos, ou nossos escravos e alguns estrangeiros. O que há de mau nisso?".
O livro é monumental pela reunião de uma extensa bibliografia - são 15 páginas de referências bibliográficas-, mas também pelo estilo acessível, bem humorado, e (detesto a palavra, mas vai lá), didático: são mais de 70 páginas de notas explicativas. Simples que até um neo-falante de neerlandês, como eu, consegue ler.
Daniel Van Groenweghe é doutor em Ciências Sociais e Antropologia Cultural. Agora é professor visitante na Universidade de Gent. Ele publicou o famoso livro De Rood Rubber (editado em 1985 e revisto em 2010), sobre a cruel exploração de borracha e marfim no Congo, propriedade particular do segundo rei dos belgas, Leopoldo II, no final do século XIX começo do XX, este também não editado em português, mas se pode encontrar em francês.
Fico torcendo para que publiquem o Livro do Ano  em português, ou outro idioma mais acessível que esse nosso neerlandês.
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* verso da canção Uga Uga de Arrigo Barnabé, que você pode ler a letra e ouvir aqui.

4 comentários:

Scylla Lage Neto disse...

Fascinante, Edvan!
Adoro a obra e os desenhos de Hans Staden, e tenho também livros do André Thévet, Jean de Léry e de Ulrico Shmidel, todos do mesmo período.
Lamento profundamente que o meu francês "de viagem" não seja suficiente para mergulhar no livro do Prof. Van Groenweghe.
Grande dica e ótimo post!
Um abraço.

Filipe Férias disse...

Obrigadíssimo pela dica Edvan !
É claro que o mundo está à espera de uma tradução em Português.
Para quen sinta interesse pelo original em holandês, eis o código ISBN:
9789461310903
Tem que ser uma mina de ouro !

Philippe Degrande.

Edvan Feitosa Coutinho disse...

Scylla, você sabe dizer se hà mesmo uma versão de bolso do livro do Hans Staden? Eu li trechos, mas numa edição inglesa que um amigo tinha achado em um sebo em London nos anos 80.
Felipe, bem-vindo ao comentàrios no Flanar. Gente, Felipe é meu ex-aluno de português brasileiro. Abraços.

Scylla Lage Neto disse...

Sim, Edvan, há edição de bolso e também uma tiragem relativamente recente em HQ.
Vou procurar para você.
E seja bem-vindo ao Flanar, Filipe!
Abs.