segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Debate oportuno

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Estou trazendo do  blog do nosso parceiro Yúdice Andrade, uma discussão para lá de importante, e que cabe como uma luva na discussão que estou travando com as minhas convicções sobre o crime e a justiça.

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As leis e a realidade

O confrade Kenneth Fleming, advogado que frequentemente me brinda com ótimos comentários, escreveu acerca da postagem "Incêndios tenebrosos". Dadas as suas lúcidas ponderações, e ciente de que nem todos leem a caixa de comentários, transcrevo o texto, ao mesmo tempo em que já me manifesto sobre ele.

Vejam como são as nossas leis. Sei que você pensa diferente, Yúdice, mas creio que o país precisa ser mais rigoroso na aplicação e no cumprimento das penas. Penas alternativas e ressocialização de presos são ineficazes, conforme prova o alto índice de reincidência criminal. 

A contrariedade ao endurecimento das leis, não apenas as criminais, como estratégia de solução dos problemas sociais decorre da percepção fática de que poucas pessoas realmente se motivam pelas leis e, ainda assim, apenas quando estão em condições ou dispostas a fazer raciocínios de custo-benefício. Pessoas de mais baixo nível educacional, ou criadas em ambientes violentos, ou imaturas quanto a frustrações, tendem a agir contra as leis mesmo conhecendo as consequências de seus atos. Vejam-se os crimes passionais, p. ex., em que mesmo pessoas instruídas assassinam as parceiras à luz do dia, na presença de testemunhas, em locais públicos, etc. O desejo de cometer o crime é tão dominante que nada as detém. Esses, não há pena de morte que segure. Tudo bem que seja um exemplo extremo, mas na maioria dos casos o criminoso age contando com a impunidade, de modo que a dureza da lei perde seu poder dissuasório.
Preciso deixar claro, porém, que não sou contra o endurecimento das leis não penais. Nesse particular, sou até bastante favorável ao rigor, sendo o trânsito o caso mais veemente.
Concordo que devemos ser sérios e rigorosos na aplicação e no cumprimento de toda e qualquer pena, assim como outros tipos de decisão judicial e também as normas administrativas. Mas não é a eventual brandura das penas que inviabiliza a ressocialização de condenados. Os fatores são outros. No mais, a prisão é um grande paradoxo, em si mesma: como ressocializar um indivíduo por meio de sua dessocialização, e sem considerar se ele chegou a ser socializado em algum momento?
No mais, embora não se conheçam estudos sérios sobre o assunto, consta que o maior índice de ineficácia das penas está nas prisionais e não nas alternativas. Dentre estas, algumas são bem ruins, mas a prestação de serviços à comunidade pode ser muito positiva, tanto para o apenado quanto para a sociedade.

No caso do circo em Niterói, se houve condenação é porque houve o entendimento de que o rapaz era o culpado. Então pergunto : como é que uma pessoa responsável por 500 mortes, premeditadamente, é condenado somente a 16 anos de prisão? Brincadeira.

Prevaleceu a tese de que Adilson era o culpado, inclusive porque ele confessou. Mas se hoje em dia confissões obtidas em depoimentos policiais costumam ser cotidianamente contestadas (por causa dos métodos bastante conhecidos), imagine-se em 1961. Não estou defendendo ninguém, não. Apenas os erros judiciários são uma realidade e por isso a instrução processual deve ser muito bem feita.
Quanto ao montante da pena, no meu texto original deixei claro que foi pouco. Existem mecanismos da lei e na teoria do direito penal que me permitem afirmar que Adilson teve, no mínimo, dolo eventual em relação a todas aquelas mortes, de modo que ele poderia em tese ser condenado a uma pena de 12 a 30 anos para cada morte. Multiplicando 12 por 500, poderíamos pensar numa pena de 6000 anos de reclusão, só pelos homicídios consumados. Irreal, mas tecnicamente possível em meu entendimento. E por que ele sofreu apenas 16 anos? Não sei. Mas não é da tradição do judiciário brasileiro a imposição de penas exemplares, realidade que está mudando nas últimas duas décadas, inclusive por pressões populares comandadas pela mídia.

Mesmo nos crimes mais infames que temos presenciado Brasil afora, com premeditação, motivo fútil, formação de quadrilha, latrocínio, etc, etc, as condenações ficam em torno de 12 - 15 anos, tudo com direito a progressão de regime, saidões que montam a mais de 30 dias/ano, etc, etc.

Como disse acima, essa conjuntura está mudando. Alexandre Nardoni foi condenado a mais de 34 anos de prisão. Parece-me uma tendência. Num caso altamente controverso, Eliana Tranchesi, a finada dona da Daslu, foi condenada a 94 anos de reclusão por sonegação tributária e fraudes, em continuidade delitiva.
Quanto à progressão de regime e demais benefícios de execução penal, são justificados por motivos concretos, são úteis e necessários, não devendo ser confundidos com os desatinos de sua aplicação, perpetradas por agentes públicos por vezes despreparados ou descompromissados com os efeitos sociais de seus atos.
A propósito, as saídas a que você se refere podem chegar a um máximo de 28 dias por ano. Sei que a diferença é pouca.

Quando esses bandidos tiverem o conhecimento de que ficarão encarcerados 30 longos anos, sem direito a progressão de regime ou saidões, com certeza a criminalidade diminuirá. O que os incentiva ao crime é a certeza da impunidade, a certeza de que ficarão, primeiramente, uns 10 anos respondendo ao processo em liberdade, para só então cumprir alguns aninhos na prisão.

Sim, contar com a impunidade é sabidamente um dos fatores mais criminógenos que existem. Discordo, contudo, da premissa. Concordo com inúmeros autores que, como Beccaria ainda em 1764, afirmam que a certeza da punição é mais importante do que sua dureza. O problema é que, no Brasil, não se tem garantias sequer de que o indivíduo será punido e isso acaba se misturando com o tema da gravidade das penas. O cidadão médio acaba por tratar tudo como a mesma coisa, sujeita às mesmas causas.

O que ficam fazendo os homicidas, latrocidas, estelionatários, ladrões e corruptos enquanto "respondem em liberdade"? É claro que continuam a delinquir.

Imagino que seja isso, mesmo. Não discordo. Mas como confrontar esta sua afirmação com o fato de que, no Brasil, há mais presos provisórios do que condenados? Poderíamos propor uma questão diferente: não estamos prendendo pouco; estamos prendendo errado. E isso está longe de ser uma mera questão semântica.

Creio que essa falaciosa diretriz de que "ninguém é culpado até a decisão final" precisa ser revista. Bem como a morosidade pornográfica dos nossos tribunais. As denúncias são apresentadas à Justiça após 5-6 anos, e depois são outros 5-8 anos para uma decisão, ainda em 1ª instância.

O princípio do estado de inocência é uma conquista civilizatória, que não merece nenhum reproche se entendido em seu contexto histórico. Conseguimos, por meio dele, que as pessoas não pudessem mais ser presas, mortas, expropriadas de seus bens por meio de acusações exíguas, formuladas às vezes por adversários notórios. Trata-se de uma garantia essencial, que não pode ser abolida nem mitigada. Aqui, mais uma vez, acho que se está confundindo um tema com outro. Você aborda, com toda razão, a morosidade pornográfica da justiça. Veja que o problema não é do estado de inocência: é da burocracia estatal. É esta que deve mudar, não o princípio.

O problema da criminalidade não é falta de polícia. Até porque não há como a mesma ser onipresente. Não há efetivo para se colocar em cada esquina das nossas cidades.

Não, meu amigo. O problema da criminalidade é as pessoas não se darem conta de que a noção de crime não é natural nem está inscrita na consciência unânime de todos os seres humanos. Ela é uma escolha do Estado, de cada Estado, e sua concretização no cotidiano das ruas é arbitrária e frequentemente realizada de má fé. Quando a polícia prende um criminoso, isto não é um problema. O problema é quando a polícia prende alguém que supõe ser um criminoso e essa hipótese é tratada como verdade absoluta.
No final das contas, criminoso é quem a polícia diz que é. Ministério Público e judiciário só vão na corda depois. Estou iniciando estudos sobre esse tema.

O que falta são leis mais rigorosas e um Judiciário que se dê o respeito, trabalhando com efetividade e agilidade.

Discordo em parte da primeira assertiva (motivos acima) e concordo totalmente com a segunda, lembrando que o judiciário não pode figurar como a Geni da história. Tudo arrebenta nele, mas há muitas outras instituições, públicas e privadas, causando crimes e dificultando a persecução criminal. Você citou, p. ex., os corruptos. Corrupção não é privilégio do judiciário, certo?

3 comentários:

Marise Rocha Morbach disse...

Neste debate eu fecho com as posições do Yúdice. Nada nada pela capacidade argumentativa do Yúdice, e pelo humanitarismo destes argumentos. Há um abismo entre as sociedades e a forma como elas aplicam suas leis e descrevem seus crimes; e há uma confusão crescente entre violência e criminalidade. O Yúdice coloca isto muito bem; foi ótimo este debate.

Yúdice Andrade disse...

Agradeço muito pela gentileza, Marise. Esse assunto é minha zona de conforto, o que entretanto não torna mais fácil absolutamente nada, inclusive por toda a resistência e seus inúmeros motivos e sem-motivos. Mas é nesse campo que atuo como educador, então não posso parar.

Marise Rocha Morbach disse...

Imagine Yúdice! Eu tenho pensado sobre isto e tenho pouco domínio sobre o assunto, foi ótimo. Não pare de jeito nenhum; gostei muito dos seus argumentos.