Melquíades era um fugitivo de
todas as pragas e catástrofes que haviam flagelado o gênero humano ao longo dos
séculos. Sobrevivera à pelagra na
Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao Beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, à tuberculose
na África, ao terremoto da Sicilia e a um naufrágio no estreito de Magalhães. Atravessou o tempo celado num cavalo de
faroeste americano, tal como Durango Kid, mas fora ferido na coxa esquerda na invasão
da Normandia. Apanhou Impaludismo na Amazônia e uma gripe nos Andes.
Esse colombiano prodigioso, originário
da aldeia de Macondo, se dizia possuir o código de Nostradamus, assim como dominar o calendário
Azteca para prever o fim dos tempos. Era um ser lúgubre, envolto numa aura
triste, com olhar depressivo que parecia conhecer o outro lado das drogas ou de carregar as feridas dos males
pregressos. Antes de ser enterrado em sua jornada terráquea, gostaria de ver o
carnaval carioca... e viu!
A folia de Momo o transfigurou: usou um chapéu grande e preto, como as abas esticadas de um corvo da
República Dominicana e um colete de veludo patinado pelo limo dos séculos.
Este-um, surrupiado do salão imperial de Petrópolis. Sentado à beira da calçada
na praça São Salvador, defronte a uma casa em desmantelo, contrúida nos anos 30,
ele assistia ao movimento dos blocos, rimando amor e dor. Debaixo de sua imensa
sabedoria e de sua aura misteriosa tinha o peso humano, fantasia ideal para a alma de um folião que trespassava a
linha do tempo. Esta condição o mantinha enredado aos minúsculos detalhes do carnaval de
rua, apesar da simpatia pela Sapucaí.
Sofria pelos mais insignificantes
percalços econômicos e havia deixado de rir fazia muito tempo, porque o escorbuto
tinha lhe deixado banguela. Mas tudo era adorno para a sua fantasia.
Blocos pra lá, blocos prá cá. Faltava-lhe
força para acompanhar o ritmo dos brincantes, pois, de sarado mesmo só a gripe
andina, os demais, tiraram uma lasca de sua fantasia genética.
Sob o calor de quase 40 graus,
ele via à sua frente o bloco “Levanta meu catete”. Ensaiou acompanhar a
marchinha, mas esmureceu. Ficou com medo de invadirem sua aura misteriosa e
roubarem-lhe toda aquela história de luta, quando foi protagonista em “Cem anos
de Solidão”, de Garcia Márquez. Permaneceu defronte àquela casa escambibada com
amontoado de blocos e mais blocos de tijolos dos escombros.
A bandinha seguiu até o coreto da
praça e continuou tocando. Parou por lá. Tinha bumbo, tarol e diversos
instrumentos de sopro. Todos entoavam velhas marchinhas; todos ululavam. Melquíades
ouviu um samba que lhe tocou profundamanete ao ponto de ameaçar atravessar a
rua em direção ao coreto, logo à frente, para pular, como todos os brincantes faziam.
Ao retomar o olhar para o casebre, no meio do caminho, resolveu voltar. Parecia
estar arrependido, ou mesmo receioso, ou ainda confuso pelos versos daquela
musiquinha.
Acocorou-se na beira de calçada
enquanto aquela sonorização inundava sua alma lúgubre e seu pé empoeirado
sobressaindo a sequela do Pênfigo que adquirira no Zaire. Adentrou e apanhou um
dos blocos de cimento da velha casa em demolição e, com bastante sacrifício, esbaforindo,
colocou-o bem no meio da rua e gritou, acompanhando a melodia que ainda ressoava
do coreto:“Eu quero é botar meu bloco na rua/Brincar, botar pra gemer/Eu
quero é botar meu bloco na rua/ Gingar, pra dar e vender.
E
assim ele, no sufocante calor de meio-dia, revelou seus segredos. Depois
recebeu uma ducha de água do caminhão-pipa do corpo de bombeiros.
O carnaval enxágua a
alma.
2 comentários:
Melquíades é o tal; é aquele um; é o que sabe; o doutor..... Muito bom!
É um texto, na sua grande maioria, descaradamente retirado de "cem anos de solidão". Apenas adaptei ao carnaval de rua do Rio. Ave Gabo. Salve Melquíades, esse cosmopolita que vive em cada esquina de nós.
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