Cora Rónai, o Globo
Não sou a
favor de corporativismo ou de reserva de mercado em área alguma. Acho
que se o problema da saúde pública fosse única e exclusivamente a falta
de médicos para regiões remotas do país, a importação de estrangeiros —
cubanos, letões, belgas — seria uma ótima medida. Acontece que, do jeito
que estão os nossos hospitais, essa é só mais uma medida populista, uma
cortina de fumaça para esconder a verdade de um sistema falido.
Como bem observou um dos cartazes das manifestações, “importar
médicos para locais onde faltam leitos, hospitais, remédios e exames é
como querer resolver o problema da fome importando cozinheiros para
locais onde faltam panelas, fogão e comida”. Essa síntese é exemplar;
mas nada mexeu tanto comigo quanto o depoimento da médica carioca
Juliana Mynssen, leitura obrigatória para quem quer saber do Brasil. O
contundente texto da dra. Juliana está circulando desde o começo da
semana na internet e, onde quer que seja postado, é logo seguido por
comentários de outros profissionais da saúde, que relatam problemas e
frustrações semelhantes.
Vejam só:
“Há alguns meses eu fiz um plantão em que chorei. Não contei a
ninguém; não é nada fácil compartilhar isso numa mídia social. Eu,
cirurgiã-geral, “do trauma”, médica “chatinha”, preceptora “bruxa”, que
carrego no carro o manual da equipe militar cirúrgica americana que
atendia no Afeganistão, chorei.
Na frente da sala da sutura tinha um paciente idoso internado. Numa
cadeira. Com o soro pendurado na parede num prego similar àqueles em que
prendemos plantas (leia-se samambaias). A seu lado, o filho. Bem
vestido. Com fala pausada, calmo e educado. Como eu. Como você. Como
nós. Perguntava pela possibilidade de internação do pai numa maca, pelo
menos, já que estava há mais de um dia na cadeira. Ia desmaiar. Esperou,
esperou, e toda vez que eu abria a portinha da sutura ele estava lá.
Esperando. Como eu. Como você. Como nós. Teve um momento em que ele
desmoronou. Se ajoelhou no chão, começou a chorar, olhou para mim e
disse “não é para mim, é para o meu pai, uma maca”. Como eu faria. Como
você. Como nós.
Pensei “meudeusdocéu, com todos que passam aqui, justo eu… nãoooo…
porque se chorar eu choro, se falar do seu pai eu choro, se me der um
desafio vou brigar com cinco até tirá-lo daqui”.
E saí, chorei, voltei, briguei e o coloquei numa maca retirada da ala feminina.
Já levei meu pai para fazer exame no meu Hospital Universitário. O
endoscopista, quando soube que era meu pai, disse “por que não me falou,
levava no privado, Juliana!” Não precisamos, acredito nas pessoas que
trabalham comigo. Que me ensinaram e ainda ensinam. Confio. Meu irmão
precisou e o levei lá. Todos os nossos médicos são de hospitais públicos
que conhecemos e, se não os usamos mais, é porque as instituições
públicas carecem. Carecem e padecem de leitos, aparelhos, materiais e
medicamentos.
Uma vez fiz um risco cirúrgico e colhi sangue no meu HU. No
consultório de um professor ele me pergunta: “e você confia?”. “Se
confio para os meus pacientes tenho que confiar para mim.”
Eu pratico a medicina. Ela pisa em mim alguns dias, me machuca, tira o
sono, dá rugas, lágrimas, mas eu ainda acredito na medicina. Me faz
melhor. Aprendo, cresço, me torno humana. Se tenho dívidas, pago-as
assim. Faço porque acredito.
Nesses últimos dias de protestos nas ruas e nas mídias brigamos por
um país melhor. Menos corrupto. Transparente. Menos populista. Com mais
qualidade. Com mais macas. Com hospitais melhores, com mais
equipamentos, e aos quais não faltem medicamentos. Um SUS melhor.
Briguei pelo filho ajoelhado do paciente. Por todos os meus pacientes. Por mim. Por você. Por nós. O SUS é nosso. Não tenho palavras para descrever o que penso da “presidenta” Dilma. (Uma figura que se proclama “a presidenta” já não merece minha atenção). Mas hoje, por mim, por você, pelo meu paciente na cadeira, eu a ouvi.
Briguei pelo filho ajoelhado do paciente. Por todos os meus pacientes. Por mim. Por você. Por nós. O SUS é nosso. Não tenho palavras para descrever o que penso da “presidenta” Dilma. (Uma figura que se proclama “a presidenta” já não merece minha atenção). Mas hoje, por mim, por você, pelo meu paciente na cadeira, eu a ouvi.
A ouvi dizendo que escutou “o povo democrático brasileiro”. Que
escutou que queremos educação, saúde e segurança de qualidade.
“Qualidade”… ela disse.
E disse que importará médicos para melhorar a saúde do Brasil.
Para melhorar a qualidade…?
Senhora “presidenta”, eu sou uma médica de qualidade. Meus pais são
médicos de qualidade. Meus professores são médicos de qualidade. Meus
amigos de faculdade. Meus colegas de plantão. O médico brasileiro é de
qualidade.
Os seus hospitais é que não são. O seu SUS é que não tem qualidade. O seu governo é que não tem qualidade.
No dia em que a senhora “presidenta” abrir uma ficha numa UPA, for
internada num Hospital Estadual, pegar um remédio na fila do SUS e falar
que isso é de qualidade, aí conversaremos.
Não cuspa na minha cara, não pise no meu diploma. Não me culpe pela sua incompetência.
Somos quase 400 mil, não nos ofenda. Estou amanhã de plantão, abra
uma ficha, eu te atendo. Não demora, não. Não faltam médicos, mas não
garanto que tenha onde sentar. Afinal, a cadeira é prioridade dos
internados.
Hoje, eu chorei de novo.”
(O Globo, Segundo Caderno, 27.6.2013)