domingo, 22 de fevereiro de 2015

Enfraseamento: Amor umbilical (parte II)

“Andei por abrigos extensos.
Mas não encontrei sombra senão nas palavras”
Mia Couto, em: “A confissão da leoa”

Após ver o Momo passar, tentando renascer das cinzas do último texto, e do estio das palavras que me depletaram as circunvoluções cerebrais, encontrei em, “De mãos dadas com Sr. Parkinson”, uma enxurrada de sentimentos de uma relação orgânica interligada pela veia-artéria umbilical, que leva-e-trás a pureza do amor consanguíneo conjugado no verbo “to be” hamletiano, do tempo imperativo.
Eis a questão!
É um resgate de sentimento que se fingia de morto e andava espreitando minh’alma feito fantasma atrás da cortina ou em porta de cemitério. Eis que de repente uma sístole verborrágica inundou esse cérebro engelhado e jorrou para um plano cibernético cujo esguicho atingiu a velocidade dos mil terabytes por milissegundo. O jorro ganhou o infinito sentimento das palavras e atingiu cada um que flutuva pelo www.
Dá-lhe, coração!!! 
Cada resposta uma torrente de serotonina dentro de mim, seja nas redes sociais, telefonemas ou num abraçaço, diria Caetanaço. Mas deixa que também senti um-muito em cada um, em cada resposta sincopada de ternura. Pareceu-me algo vivo, como se todos fossem meus irmãos de artérias e, de mãos dadas, estivessem lendo em sincronia, de modo a formar uma corrente larga e sólida desprendida da vasta estrada do tempo. Pareceu que todas aquelas mães e leitores estavam regidas pelo mesmo parkinsonismo e todos os filhos sentissem o tiritar do Mal e das mãos. Foi um pulsar incomum que calafetou as brechas deixadas pela distância, agora locupletadas por aquela Macondo escondida na paisagem interiorana de cada um de nós, tal como um rio de águas diáfanas, diria Gabo.
Alguns me disseram que o texto os remetera à ternura de nossa infância que o tempo tratou de guardar num baú esquecido lá no velho sótão daquela casa no interior do Acre. Ainda sob a poeira do esquecimento, descemos todos os degraus da velha escada e sentimos ranger a tampa do velho baú, ao abri-lo compassadamente. Ao fundo a felicidade de reencontrar aquela velha fantasia de carnaval, feita à mão - quando ainda tesa -, que havia desbotada no escurão da memória.
Zé disse que aquelas palavras incisaram o peito, feito bisturi lâmina 11, deixando, paradoxalmente, cada um sangrar para se ver mais vivo, exatamente por nos sentirmos impotentes diante do caos de nossa relação com o tempo e a doença.
Depois virou jornal. Foi Paulo (Bandeira) o culpado. Transformou tudo em amor umbilical na quintessência de seu cotidiano de escritor às quintas que se achega às quintas de Antonio, Corisco. Arou e cortou, diria Sodré, o de Xapuri, onde o Acre existe e carrega minhas águas diáfanas.
Eis o que tenho por fazer diante dessa relação com todos vocês: rezar com palavras lavradas fora e dentro da minha ciência preferida; também continuar recolhendo borboletas azuis a cada novo ciclo, logo que botar o pé na rua ou no próximo tema. Depois desse novo ciclo: prolongar-se em busca de novas asas e voar no laivo da palavra, que faz sombra para esse filho perdido na imensidão desse sentimento. Por isso escrevinho desse desajeitado jeito, que lembra um sonâmbulo.

Para agradecer sempre me faltaram palavras... Para isso servem as flores.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Bebamos, enquanto não falta

Já sei, já sei. O Museu Paraense Emílio Goeldi tem um trabalho de extrema importância e já reconhecido no âmbito da pesquisa e extensão, inclusive internacionalmente. É louvável e desejo vida longa, com muito mais atenção do Estado a este gênero de trabalho. Mas, de fato, quando se fala em museu, fora de muros científicos e acadêmicos em geral, tratamos logo de imaginar a variedade da fauna e flora e qualidade da estrutura que oferece a sede da instituição em Belém, para passearmos, com turistas ou não.

Não sei como andam os investimentos em pesquisa, geralmente mais sacrificados na região Norte do país na ocasião da divisão do bolo financeiro. Mas o parque de visitações não me dá boa impressão. Há muito a reserva parece mofina. Certamente não deve ser por falta de comprometimento e dedicação dos gestores. Ainda assim, volto lá, vez ou outra.

Dia desses em que retornei ao parque foi para visitar as exposições na Rocinha. Um encanto. Cada pedacinho de informação esconde um volume muito maior do que se pode sorver ali naquele espaço. Sobre “A festa do Cauim”, do povo Ka´apor, de pronto lembrei do cajuaçu – pra quem não conhece, é uma cachaça feita de um tipo caju, muito comum na cidade de Bragança durante o inverno amazônico. E minha imaginação foi bater lá na zona do salgado porque os índios também fermentam um suco de caju para a festa.

A festa reúne uma série de rituais importantes para a vida comunitária, desde a apresentação das novas meninas que viraram moças até o que seria para os católicos o batizado das crianças, quando se dá o nome às crias.

Vi tantas semelhanças, ainda que diante de tantas diferenças culturais, que quase paralisei, perguntando a mim mesma que diabos fazemos com gente como a gente. A hidrelétrica de Belo Monte é apenas uma das atrocidades, e das grandes, contra os povos indígenas. Imaginei como reagiríamos em Belém se um projeto desses fosse ser implantado dentro da cidade, com todos os danos previstos e com as condicionantes não cumpridas e as leis, como a de consulta prévia, desobedecidas...

O mais incrível foi ver, ainda na Rocinha, que assim como há uma cultura fincada na floresta, há outra metida numa geografia árida. “Visões. Arte rupestre em Monte Alegre” é de saculejar os miolos. O Pará tem um terço dos cerca de 300 sítios arqueológicos já identificados no Brasil. Ainda que cheio de mistérios para a Arqueologia e outros saberes, chegou-se à informação de que a gruta do Pilão ou da Pedra Pintada está marcada há mais de 11 mil anos.

Só posso desejar vida longa a trabalhos como esses. E que mais gente possa beber dessa água, enquanto ela ainda não está em falta.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Enfraseamento: De mãos dadas com o Sr. Parkinson



O acaso é o encontro entre o tempo e o espaço,
mais do que um sonho que eu conto
Paulo Leminsky, em: “toda poesia”

As horas mortas de aeroportos são momentos cintilantes para reflexões. A partir de Val-de-Cans, tal como um caixeiro-viajante de idéias, retiro da bagagem de mão os textos da Cesta do enfraseamento. Eles deveriam ser publicados toda Sexta, após uma sesta do cansaço semanal, entre uma missão hipocrática e outra, mas o tempo escasseia e o pulsar da loa não aterrissa.

Aconteceu que achei de tirar folga das idéias, do legado hipocrático e enfrentar aeroportos em longas esperas. Resolvi viajar. Viajar de folga é esconder o cachorro debaixo da cama e permitir a grama do quintal crescer. Eu precisava descansar as pupilas da baia do Guajará, sentir as portas em automático e chispar. Até Quintana, Sodré e Elias Pinto deixei de ler. O que fiz foi partir com a minha mãe, por aí, e me encontrar com ela no interior de mim mesmo. Saímos de mãos dadas e fomos passear onde ninguém pudesse interceptar nossa prosa.

Assim fiz, por nove dias, que me pareceram representar todos os anos de minha ausência. Na primeira manhã de passeio, quando estendi minha mão esquerda e a aconcheguei à sua direita, entrelaçando os dedos, senti o mundo tremer: tremia meu coração; tremia meu chão; tremiam os pulmões. Eu guardava a emoção e ela o Mal de Parkinson e seus movimentos autônomos. Os dias mostraram-me o quanto precisávamos conversar e andar juntos, confessando pecados, relendo estribilhos da memória e lendo a bula das dopaminas. Ali saramos feridas da história e refizemos nossas harmonias puídas nos ramais do passado, pois somos parecidos e nem Deus duvidaria.

Naquele esconderijo do mundo, empurrando a cadeira de rodas, aprendi a rir para dentro, cantar sem voz, chorar sem lágrimas e sentir o sabor do picolé derretido das manhãs de domingo. Foram largos abraços, intensas tardes e cafunés. Eu beijava minha mãe como nunca fizera antes. Descobrimos que o tempo tinha corrido e o ponteiro do relógio estava atado em nós mesmos. Naqueles dias retardaríamos os minutos do tempo para chegar ao umbigo de nossa relação. Regressamos para além da vida e fingimos sermos nós mesmos olhando para cada curva que dobrávamos naquela vereda de sonhos - da infância à adolescência, até quando saí de casa.

Ao findar o dia, dormíamos no mesmo quarto, em camas coladas. Ao soprar a vela, o escuro do quarto invadia as paredes e embrulhava o sono; as cortinas das pálpebras pesavam pelo cansaço da caminhada diária e das conversas infinitas. Só restava a emoção guardada nos lençóis e o peso das minhas panturrilhas.

No segundo dia, como sempre fizera, Marina acordou e se postou à beira da cama para recomeçar os passeios. À minha frente - e eu ainda na penumbra do sono - ela fitava aquele olhar maternal. Ela seria dona de minha alma e proprietária do meu mundo por aqueles breves dias de janeiro. Aquilo parecia-lhe bastar.

No segundo dia ela cantou. A voz lânguida disfarçava o sofrimento em: “eu vou pra maracangalha, eu vou...”. No terceiro dia esboçava cansaço físico, mas vigor psicológico entre as árvores daquele bosque. No quarto dia fizemos compras num local de idosos (presentes para os netos e seu médico). No quinto almoçamos numa churrascaria; no sexto descansamos; no sétimo fomos à praia; no oitavo arrumamos a mala de volta e no nono amargamos aeroportos e a sensação do fim.  

Ao retornar a Val-de-Cans, antes de ficar órfão, tudo em mim estava intacto e havia um desejo imenso de continuar sendo amamentado por aquele leite que me deu vigor para seguir feito gente. No décimo dia, fora dessa história, eu amanheci trepidando as mãos e sentia todos os movimentos do mundo parkinsoniano.

Desde então não sei existir senão na doença de minha mãe, diante de seu vasto mundo. Hoje, cada passo dado é um cafuné sobre a terra, como se fosse sobre aquela cabeça, que naqueles dias costumei pentear só para sentir de onde veio o pulsar de minhas artérias.