“O acaso é o encontro entre o tempo e o espaço,
mais do que um sonho que eu conto”
Paulo Leminsky, em: “toda poesia”
As horas mortas de aeroportos são momentos cintilantes
para reflexões. A partir de Val-de-Cans, tal como um caixeiro-viajante de idéias,
retiro da bagagem de mão os textos da Cesta do enfraseamento. Eles deveriam ser publicados toda Sexta, após uma sesta do cansaço semanal,
entre uma missão hipocrática e outra, mas o tempo escasseia e o pulsar da loa não
aterrissa.
Aconteceu que achei de tirar folga das idéias, do legado
hipocrático e enfrentar aeroportos em longas esperas. Resolvi viajar. Viajar de
folga é esconder o cachorro debaixo da cama e permitir a grama do quintal crescer.
Eu precisava descansar as pupilas da baia do Guajará, sentir as portas em
automático e chispar. Até Quintana, Sodré e Elias Pinto deixei de ler. O que
fiz foi partir com a minha mãe, por aí, e me encontrar com ela no interior de mim
mesmo. Saímos de mãos dadas e fomos passear onde ninguém pudesse interceptar nossa
prosa.
Assim fiz, por nove dias, que me pareceram representar
todos os anos de minha ausência. Na primeira manhã de passeio, quando estendi minha
mão esquerda e a aconcheguei à sua direita, entrelaçando os dedos, senti o
mundo tremer: tremia meu coração; tremia meu chão; tremiam os pulmões. Eu
guardava a emoção e ela o Mal de Parkinson e seus movimentos autônomos. Os dias
mostraram-me o quanto precisávamos conversar e andar juntos, confessando
pecados, relendo estribilhos da memória e lendo a bula das dopaminas. Ali
saramos feridas da história e refizemos nossas harmonias puídas nos ramais do
passado, pois somos parecidos e nem Deus duvidaria.
Naquele esconderijo do mundo, empurrando a cadeira
de rodas, aprendi a rir para dentro, cantar sem voz, chorar sem lágrimas e
sentir o
sabor do picolé derretido das manhãs de domingo. Foram largos abraços,
intensas tardes e cafunés. Eu beijava minha mãe como nunca fizera antes. Descobrimos
que o tempo tinha corrido e o ponteiro do relógio estava atado em nós mesmos. Naqueles
dias retardaríamos os minutos do tempo para chegar ao umbigo de nossa relação. Regressamos para
além da vida e fingimos sermos nós mesmos olhando para cada curva que dobrávamos
naquela vereda de sonhos - da infância à adolescência, até quando saí de casa.
Ao findar o dia, dormíamos no mesmo quarto, em
camas coladas. Ao soprar a vela, o escuro do quarto invadia as paredes e
embrulhava o sono; as cortinas das pálpebras pesavam pelo cansaço da caminhada diária
e das conversas infinitas. Só restava a emoção guardada nos lençóis e o peso das
minhas panturrilhas.
No segundo dia, como sempre fizera, Marina acordou
e se postou à beira da cama para recomeçar os passeios. À minha frente - e eu
ainda na penumbra do sono - ela fitava aquele olhar maternal. Ela seria dona
de minha alma e proprietária do meu mundo por aqueles breves dias de janeiro. Aquilo parecia-lhe bastar.
No segundo dia ela cantou. A voz lânguida disfarçava
o sofrimento em: “eu vou pra maracangalha, eu vou...”. No terceiro dia esboçava
cansaço físico, mas vigor psicológico entre as árvores daquele bosque. No quarto
dia fizemos compras num local de idosos (presentes para os netos e seu médico). No quinto almoçamos numa churrascaria;
no sexto descansamos; no sétimo fomos à praia; no oitavo arrumamos a mala de
volta e no nono amargamos aeroportos e a sensação do fim.
Ao retornar a Val-de-Cans, antes de ficar órfão,
tudo em mim estava intacto e havia um desejo imenso de continuar sendo
amamentado por aquele leite que me deu vigor para seguir feito gente. No décimo
dia, fora dessa história, eu amanheci trepidando as mãos e sentia
todos os movimentos do mundo parkinsoniano.
Desde então
não sei existir senão na doença de minha mãe, diante de seu vasto mundo. Hoje, cada
passo dado é um cafuné sobre a terra, como se fosse sobre aquela cabeça, que naqueles
dias costumei pentear só para sentir de onde veio o pulsar de minhas artérias.
2 comentários:
eis aí um dos mais belos textos que já li.
reverência ante o sagrado afeto que se tece em cada palavra, em cada frase foi o que senti!
nem sei se devo dizer que os conheço - ao filho e a esta mãe - pois pode parecer um ato de profanação... mas direi, sim, que fui alimentado também pela maternal acolhida da mãe deste amigo de infância em dias idos.
lembro da mesa posta, uma távola redonda, em que na parte central, girava o que os nossos olhos já haviam comido e à boca bastava o restante do processo da mastigação e deglutição. o Neston, que eu não conhecia e o Nescau, misturados, faziam-me a alegria do menino buchudo, enxerido, convidado à festa...
era a casa dos Normandos, na rua JK, em Vila de Rondônia, no antigo Território Federal. lá onde dona Marina reinava, lugar de muito aprendizado e de ternas lembranças. saudades!!
Marido amigo...o tempo permitiu que você, mais uma vez, vivesse o mais nobre dos sentimentos...
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