segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Um conto de fé

"Ali somos louvores indizíveis, emoções libertas,
sintaxes fervorosas de outubro"
Raimundo Sodré, escritor
   
 Dois eram os irmãos da mesma mãe, mas de gametas masculinos tantos. Mesmos adultos, fervilhavam-se em ódio cultivado desde a tenra meninice, como os gêmeos Yaqub e Omar, de Milton Hatoum, vistos como Caim e Abel dos tempos de hoje. Um era depressivo, que chamaremos de Yaqub. Este tomou chumbinho numa caneca de lata na aventura de espiar o outro mundo pela fresta do ataúde. Não demorou a entrar em coma e passar direto pro CTI.

       Omar ignorava o acontecido, mas tratou de acalentar a dor da mãe, levando-a todos os dias para visita, mesmo sem Yaqub esboçar qualquer recuperação. Sequer entrava no hospital.

       A mãe rezava ao pé do leito, disputando a voz com o piriricar dos monitores. Rogava e prometia: se o moço Yaqub ressuscitasse, viraria promesseira, daquelas de carregar cruz nos ombros por todo o trajeto do Círio de Nazaré.

      Deu que certa madrugada bandidos invadiram aquela casa, mataram a mãe e balearam Omar no peito e no abdome. Omar foi para o campo cirúrgico, depois direto pro CTI, bem dizer, a beira da morte. O destino pôs irmão ao lado de irmão. A mãe seguiu outro caminho, o do campo-santo, em marcha fúnebre que mobilizou toda Marituba.

      Acabou que, passado mais de dois meses, os dois se recuperaram, ao peso de sequelas. Na volta para casa deram por falta da superiora.
      Ao se aproximar o Círio de Nazaré os dois enterraram suas discórdias naquele quintal de ódio e seguiram, de braços dados, encordoando a procissão, atrás do perfume da mãe. Decidiram carregar, em revezamento, a cruz chumbada em angelim-pedra, que havia sido promessa dela. Yaqub e Omar diluíram-se no mar de gente que flutua de pés descalços sobre o real espírito de fé, e partiram.
Foram os últimos a chegar, sob sol castigante. A cura da desavença veio na crença e na fé daquele trajeto. Caminhavam sem olhar para os lados, apenas focados na mãe que construiu suas memórias e passou a vida inteira tentando corrigir um erro que não soube como existiu.
        Para eles, desde então, o Círio tem uma única estrela: aquela imagem envolvida em manto sagrado na berlinda enfeitada de lírios brancos, protegida de chuva e sol. Só isso- nada mais. Outras estrelas como Padre cantor, eles acham que deveria ser banida, assim como todas as outras vozes de microfones que oram mais alta que romeiros. Palco com socialaites deveria ser derrubado com motoserra. Ficariam apenas as janelas que chovessem pétalas e fervessem fé. Os vendilhões de todos os templos e ruas seriam jogados na baía. Não haveria corda, pois fé não se amarra, move-se, seja no olhar estupefato da resignação de uma dor ou no roçar das peles breadas.

         Certamente os dois irmãos e todos os verdadeiros romeiros não pedem, só agradecem; fartam-se no amor ao próximo, mesmo tantos anos distantes, em que agora Maria fez aproximá-los. Passaram a se vestir numa só alma durante o cortejo de outubro e de todos os dias.

       No Círio de cada romeiro toda súplica vira lágrima, escorre até o chão e se mistura com os pés fissurados pelo asfalto e obstinados pela cura da dor alheia, que passa a ser de todos.

        Círio é um delírio que se carrega poarafusado na alma e quando dá de ser, vira encanto, frenesi e faz a gente se unir para intumescer palavras e sentimentos.

Corisco e Labareda

3 comentários:

Valéria Normando disse...

Compartilho com Yaqub e Omar...viver o Círio é sentir no silêncio a oração.

Unknown disse...

Por 6 anos morei em Belém e fugia do Círio para retornar à minha cidade natal e ver minha família.
Hoje, na iminência de terminar meu curso e ir embora de Belém, participei pela primeira vez.
Fui na intenção de ver o Círio passar. Mas sentir o Círio fez mais sentido para mim!
Voltei para casa sem entender porque reclamam do calor do Belém, do cansaço do Círio, do desgaste de acompanhar a procissão.
Voltei para casa molhada, sem calor, sem cansaço, com gratidão no coração!
Minha alma e minhas mãos me fizeram sentir o Círio em cada garrafa de água que eu jogava nos romeiros, em cada copo de água que eles pegavam da minha mão! Eu jogava a água, olhava dentro dos olhos deles e falava dentro do meu coração: que o mundo abençoe sua fé!
Ajudei os romeiros do Círio. Acima de tudo, ajudei a minha alma.
A partir de 2015, voltarei para Belém todos os anos para viver e sentir o Círio, não apenas olhar!
Viver essa experiência no último ano de faculdade criou um laço com Belém que, até então, eu pensava que não existiria após o término da minha vida acadêmica.
Obrigada Belém! Obrigada à cada paraense que torna o Círio de Nazaré uma corrente de força, bondade e coragem!
O Círio não mudou, meus olhos que mudaram!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Anny, bela mensagem...