domingo, 25 de setembro de 2016

Grandes incisões, grandes cirurgiões

Ponto: "Por isso, a história da Cirurgia Torácica confunde-se, em larga medida,
com a história dos artifícios técnicos, criados pelo humano engenho..."
Jesse Teixeira, 1979

Contra-ponto: "O presente se assusta com o futuro e desdenha o passado. Se não somos capazes de adivinhar a próxima descoberta, somos altamente capazes de subjugar o antigo pela coerção mais ignorante que a tecnologia não foi capaz e ofuscar: a que somos o estágio mais avançado da humanidade"
João Pedro Normando, historiador



Em 1978, logo que chegamos à cidade grande ainda éramos meninos, bem dizer, para entender o progresso e o peso da revolução industrial em nosso cotidiano. Costumávamos caminhar pelo centro histórico e rever cada pedra de lióz e comparar com a infância no interior de tempos idos e de textura brejeira. Hoje, andando pelas soleiras de modernas ruas, sob intervenção do progresso, percebe-se que a transformação – inexorável transformação – foi faca amolada em nossos sentimentos de outrora, ao mesmo tempo lentes para nossas retinas de cirurgião congraçado com o presente vistoso.
Esse prelúdio de pensamento ignora o tempo, para e pede silêncio, feito barco ancorado, mas reconhece que a vastidão da tecnologia lustra seus berloques, mesmo sabendo que o caminho por essa dualidade provoca sequidão na garganta.
Na cirurgia torácica, da ótica por onde olhamos, o velho e o novo nos tatuam com flores de ipê - talvez nem seja saudável a comparação -, mas insistimos nesse passado para evitar que nossa memória se desbote diante da avalanche de tecnologias inebriantes, pois há tendência de se descarregar esse decurso no expurgo - o que não é justo.
Destarte, nós, avatares da cirurgia, chegamos aqui por conta desses grandes homens que lutaram e nos deixam esse legado imensurável de bravura e ternura pela profissão. Jurgen Thorwald, em seu viscoso “Século dos cirurgiões”, relata que os grandes cirurgiões do passado se dedicavam a ser mais rápidos nas operações, diga-se de passagem, sem anestesia, sem luvas e sem assepsia. Realizavam grandes incisões e, por isso, poetizavam-se como grandes cirurgiões. Por vezes nos vemos nesta epopeia cuja realidade da época nos deixou estampados o folder da coragem.
Se nossos ancestrais abriam peitos por acessos extensos, com cicatrizes grotescas, fizeram por caminhos cavoucados na solidão do desamparo tecnológico e de novos conceitos. Ampla abertura era o único meio que dispunham para observar a cavidade em suas explorações e, como tal, fizeram muito bem, a ponto de nos beneficiar nos momentos mais críticos da abordagem atual - a do vídeo. O próprio Vicente Forte já nos alertava para a chegada da cirurgia vídeo-assistida, mas brandia para que não abandonássemos o velho traçado circum-escapular. Esse prelúdio de Vicente faz-nos crer fortemente que devemos ter muito cuidado com atitudes e palavras - por vezes jocosas -, quando recobramos o tema.
A operação por vídeo, popularizadas como “cirurgia a laser”, agora tirando onda com a robótica, se aproximou do tórax no final dos anos noventa, autorizada por Sauerbruch. O corte do tamanho de um band-aid trouxe no compasso da evolução tecnológica o passo da revolução industrial, mas toda gente deveria saber que incisão, instrumentais e os uivos de outrora abriram caminhos para o olho mágico de hoje, reduzida magnificamente a uma câmara de 5 ou 10mm, cujo contato entre o operador e o órgão acometido tornou-se por meio de instrumentais apropriados, guiados como um joystick
Portanto, faz-se mister uma postura crítica construtiva alinhavada aos cirurgiões de hoje, pois conquista e tempo são almas que se entrelaçam e se admiram. Para nossa relação com esses homens, valemo-nos da passagem bíblica, quando João Batista viu Jesus Cristo e disse: “Não sou digno de desatar as tuas sandálias”.

Os autores são Roger Normando (PA) e Elias Amorim (MA) são cirurgiões titulares da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica.

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