He wear no shoeshine...
“Come Together”, do disco: Abbey Road
Já passam das dez da manhã e o frio londrino de final
de outono dá trégua. Partimos do sul de Greenwich, pela estação Blackheat,
para então pegarmos o metrô no sentido leste e conhecer Abbey Road, a
famosa travessia pela faixa de pedestres que ficou consagrada pelos Beatles, em
1969, na capa do Disco “Abbey Road”.
Acontece que, quando chegamos à estação só havia o silêncio do nada
– estávamos perdidos em Abbey Road. Com algum custo identificamos
uma placa pequena com dizeres: Get back,
mas compre seu Ticket to ride até a
estação St. John’ Woods, pela via Jubilee. Havíamos confundido a estação com o estúdio. Rimos da gafe e tivemos que suportar o
humor londrino e engrossar os arquivos de viajante errante.
Meia volta volver quando, enfim, desembarcamos no sítio certo.
Uma chuva fina avisa que um músico toca, indiferente ao alheamento, sua flauta
à porta do metrô - por coincidência, Ticket
to Ride. Ri pra dentro. Ao lado, um grupo de menininhos loirinhos vestidos de duques acabava de sair da escola e ululavam enquanto o chuvisco crispava. Ouvíamos o flautista, com longas tranças
de cabelo afro, até a chuva ceder e retomarmos a caminhada até aportar, de vez, no
destino certo. Abbey Road estava na próxima curva à direita,
esperando-nos há quase 50 anos.
Por vários minutos, sentado no muro baixo e apreciando aquele movimento,
em ponteiro de relógio tipo Big Ben, eu via naquela travessia os carros
respeitarem a vez dos fãs-transeuntes. Entre tantos, esseunzinho, pensando naquela imagem "bitouniana" tão urbana.
Guimarães
Rosa, em "A terceira margem do rio", relata que “o real
não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia”. Apesar da trepidação da partida e do freio
estanque da chegada, é na travessia que nos fazemos gente para superar obstáculos
não só pra memória em nossos slots
cerebrais, mas pra sentir emoção, tormenta ou mesmo o labirinto da caminhada.
Calculei
essa travessia como um simples topógrafo, ou seja, de algum ponto equidistante entre a partida e a
chegada, desde que coubesse na minha geometria analítica que aprendi na cozinha de
minha formação básica.
Talvez
Abbey Road, na outra banda da terra, represente a travessia mais popular da
historia da humanidade, se olharmos os pés descalços de Paul na capa do álbum. Não
que Ringo, John e George estejam soberbos com seus pisantes, ou representem o dilúvio de nossos inconsistentes
desperdícios, mas pés descalços sobre asfalto representam desassossego,
desenxabimento, eterna inquietude de nossa jornada e dos que se arvoram a
costurar desafios com as mãos da tecnologia ou com as próprias mãos - e pés -, deixando-se ser embrulhado pelas malhas abertas do desafio.
A
jornada desse roteiro londrino, a cada passo serve para rever, feito os
caminhos que os levaram de Liverpool, ou do Cavern
Club, que existe em cada ermitão que nos domina e nos arrasta pelas frestas
do espaço viscoso do subsolo da alma.
Mas o que
vale mesmo, de permeio, são as ilusões escondidas em Strawberry Fields, que funcionam como combustível para a travessia, o mesmo que nos
leva a Penny Lane e nos deixará descansando ao lado de Eleanor
Rigby, feito o que não fomos e que ficou nos sonhos alados.
9 comentários:
Linda descrição de um momento único e universal de sentimentos embotados/expostos de maneira urgente, real, apressada, onírica.
Parabéns por devolver a paz em momentos tão angustiantes pra quem ainda sonha com o "sleeping bag" metafórico do "real dream"
"Tudo que é bom dura o tempo necessário para ser inesquecível" - Fernando Pessoa.
Então, Plaça, continue sonhando, porque "sonhos não envelhecem". O meu durou quase 50 anos. Isso é pouco para quem sonhou a vida inteira. Prossiga...
Receber Fernando é receber o pão do cotidiano para se comer com geleia de morango, feito menino, até se lambuzar. Aliás a vida foi feita para se lambuzar até o necessário, o extraordinário é demais. Volte sempre Fernando, volte...
Uma jornada londrina que nos leva a lugares e épocas que só a destreza com as palavras que este raro escritor possue. Não fosse um dos melhores bisturis do Brasil, certamente ganharia seu pão com geleia de morango fácil com a emoção que marca suas letras.
Clarice, seu comentário me emociona, ao ponto de ter vontade de sair correndo pelo mundo e continuar ouvindo seu ritual. De Clarice - a Lispector - vem uma frase sensacional que sempre que leio me emociona: "Viver é mágico... e inteiramente inexplicável". Assim, com duas Clarice, saio levitando feito pena leve que se desatarracha de sua membranana pilosa e vem fazer a gente sorrir feito criança de pele macia.
Alegria e emoção em seu texto! Que na sua travessia em sua vida, tenham poucos obstáculos! Mas que cada um deles seja ultrapassado de forma simples e fácil, como consegues juntar letras e palavras para formar maravilhas para nos encantar
Vejo alegria e emoção em suas linhas, meu amigo!!!!
Que nas travessias de sua vida, supere os obstáculos, de forma simples e fácil, como consegue juntar sabiamente, letras e palavras para assim, nascer textos maravilhosos para encantar nossos dias
Um poeta, eterno menino na capacidade de ver a vida com as cores da alma .... Nos surpreenda sempre Roger, com seus incríveis textos irretocáveis.
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