Berto,
garçom de pouco mais de 30 anos que costumava fazer bicos em festas de famílias
adentrou ao ambulatório. Carregava um tumor de baixo do braço, como se fosse
uma bola. Tinha fascies de dor e, antes de sentar para
confessar sua doença, percebia-se que escorriam lágrimas de suplício. Fez o
pedido: "-dotô, me tire esta coisa; me tire esta dor."
Conseguiu-se
a internação de urgência, indo pra sala de cirurgia na manhã seguinte, impelido
pelo apelo. Na operação tirou-se quase um quilo de tumor e outra pequena
amostra do tamanho de uma bola de gude (linfonodo sentinela1). Com
sangramento controlado, a operação terminou em pouco mais de uma hora e o
paciente seguiu para enfermaria, que dividia com mais quatro, num calor
infernal. A felicidade no rosto da esposa, após a boa notícia, foi convertida
em lágrimas de esperança, apesar de ainda ser necessário o exame do tumor
extirpado.
Lesões
como esta devem inicialmente ter biopsias e só então se decidir pelo tratamento –
clinico, cirúrgico ou misto. Neste caso, a regra foi atropelada por conta da
dor lancinante.
A alta ocorreu sem complicação. Berto saiu servindo sorriso.
A alta ocorreu sem complicação. Berto saiu servindo sorriso.
Após dois
meses, a esposa volta chorando ao ambulatório:
- "Berto está à beira da morte no Pronto-Socorro."
- "Berto está à beira da morte no Pronto-Socorro."
- "Como
assim? Cadê o resultado da biopsia?" Perguntou o cirurgião.
A esposa soluçava
muito até chegar ao fim da história, deixando ar de apreensão na narrativa. Com
dinheiro curto para pagar o exame das duas peças, escolheu a mais barata - a
menor - e mandou ver. Esperou o resultado e, para alegria deu que não fora
encontrada doença feia, contrariando a evolução clínica.
- "Mas
esse é apenas o linfonodo sentinela. Onde está o resultado da peça grande, o
tumor?"
- "Dotô,
eu deixei a peça dentro do saco com formol e guardei na geladeira da mãe dele, até que
tivéssemos o apurado para pagar o exame, já que o estado não dispõe. Quando
arrecadamos fui pegar a peça, mas chegando lá
nada mais havia. Indaguei a todos os cinco irmãos e ninguém se acusou, nem os pais.
Então achei que a peça tivesse sido extraviada e ido pro lixo. Sem saber o que
fazer, deixei de lado, confortada pelo resultado da peça menor, o tal
linfonodo sentinela. Depois de mês o tumor de Berto voltou no mesmo lugar,
junto com a dor. Fiquei desesperada. Era dor demais pra pouco tamanho."
- "Numa
dessas madrugadas, ele já internado no corredor do Pronto-Socorro, vi a mãe
sentada num canto da casa, choramingando, sem aparente explicação. Cheguei
perto e forcei. Ela me confessou que abriu um pequeno buraco no fundo quintal e
enterrou “aquela coisa”. Na cabeça dela tudo que é tirado do corpo da gente
deve ser logo enterrado."
Berto
ficou a base de morfina, até morrer uma semana depois.
No caminho
de volta pra casa aquele cirurgião viu as ruas vazias, sentinelas vigiando a cidade que dormia no
ritmo monótono da noite ameaçada de chuva. Lá fora um marinheiro tropeçava,
discutia com o poste, errava o coice e caia de nariz sobre o esgoto aberto.
Lambeu água da vala e ali mesmo incinerou a ciência pela absurda forma de olhar
a vida amazônica.
É na volta pra casa que os náufragos da cidade se encontram. Durante a madrugada, antes de o sono chegar, o céu ribombou e, pela vidraça, escorria o soluto e a ventania fazia a janela tremular. Existia uma lâmpada amarela, de luz doentia, no outro lado da rua, que o espreitava. Foi o último facho de luz daquela dia.
É na volta pra casa que os náufragos da cidade se encontram. Durante a madrugada, antes de o sono chegar, o céu ribombou e, pela vidraça, escorria o soluto e a ventania fazia a janela tremular. Existia uma lâmpada amarela, de luz doentia, no outro lado da rua, que o espreitava. Foi o último facho de luz daquela dia.
1. O
linfonodo sentinela é aquele que primeiro recebe a drenagem linfática de um
tumor maligno.
8 comentários:
Até quando a ciência médica deve ficar à mercê da economia? Até quando as intervenções cirúrgicas operadas por mãos e cérebros abençoados nos hospitais públicos, e privados,não vão além de, ao tempo e a hora, resultarem num diagnóstico confirmado por exames posteriores, como no caso desse Beto de iguais multiplicações? Culpa não é do médico, mas de médicos que são os gestores de "sistemas" viciados e de pouca autonomia e eficiência. A realidade narrada com estilo pelo Dr. Roger, senão uma denúncia cabal do descalabro que vivemos em tema de saúde, serve de bálsamo para difundir entre todos que é preciso ser evitado, com razoabilidade, a injunção da "sabença" popular desavisada que tornou, como no caso, impossível a confirmação do que já indica ser uma suspeita de doença feia.
Roger, texto muito bem escrito! Mostrando realidades, infelizmente cotidianas!!!!!
E nossos sentinelas nem sempre nos guardam..... no corpo, nas ruas, na vida.....
Muita pena do Berto ! Perecia ser boa gente! Associei-o ao nosso querido Valentin!
Querido Alfredo, muito bom vê-lo por aqui destilando comentários virtuosos sobre a realidade embaçada do nossos sistema de saúde. Seu comentário, grudado na visão real, é bastante reflexivo.
Ana, querida, talvez a missão do relato seja tão triste quanto o realismo do nosso cotidiano. Penso que deva ser relatado, mesmo que nos conduza ao naufrágio de todos os dias.
Simone, o papel natural do linfonodo sentinela, nesse caso, denunciava prognóstico melhor, mas o destino foi outro sem a QT.
Temos Bertos em cada esquina com as valentias de todos nós quando passamos a adoecer. Esse foi valente demais, mas foi driblado pelas situações agoniantes do sistema.
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