De repente Sabá de abadia me vem com essa flecha de jambu, a mirar o marco zero da comunicação e fazer tremer a língua: “O domínio paulatino da
linguagem colocou ordem no verdadeiro caos que eram as sinapses cerebrais dos
primeiros hominídeos. A linguagem colocava ordem no pensamento. Pensamento
domado inicia-se a jornada da auto-expressão humana. Das pinturas rupestres
para a escrita de "No início era o verbo..." transcorreram milhares e
milhares de anos. Uma lenta construção, como se vê. Hoje, estamos a nos
esculpir por meios tantos, mas a palavra, oral ou escrita, segue nos fazendo,
nos guiando, nos desvelando. Evocando a figura emblemática do profeta das
gentilezas, que palavra melhor nos define? Ou ainda: nos desafia, inquieta,
atordoa, ecoa, surpreende?" Mais adiante, Dora Schinitman retrata que a função
primária da linguagem é a construção de mundos humanos. Labareda traduziu: “A
linguagem emana construção de manos mais humanos", com palavras deliciosamente
surrupiada de Joãozinho Gomes em “Ao mano humano”, parceria com Zé Miguel.
Mas, se existe
uma linguagem que desafia a ferro e fogo o humanismo de Schinitman é a da guerra, sem misericórdia, que deixa Alepo
em carne viva e com os nervos expostos. A libertação de Alepo veio - se é que veio – no galope de
tanques de guerra, sob suspiros de uma primavera árabe, em meio a coices de metralhadoras
a cuspir sangue arterial pelas esquinas e se misturar às poeiras de seus
escombros até se fazer sarapatel, e escorrer pelas valas abertas da Síria.
Alepo, foi
(ou ainda é) o campo de concentração que não vivi, e só li nas apostilas da
segunda guerra. Não falo aqui, do leste da cidade, do norte do país, da rosa
dos ventos oestes. Falo, sim, da geografia humana sul-real a deixar Dali
estupefato e fazer tremer o bigode.
A dor escarrada
nas lentes televisivas e no rosto das crianças mudas mudam minha verve
suburbana. Parto aos espasmos para tentar me envolver num pensamento mais universal do
holocausto, ao ouvir o estouro do canhão apontando para o céu na tentativa
de balear deuses. Quando não se vingam, as bala perdidas voltam e acertam a fossa
posterior dos cérebros inocentes ou o peito de uma criança. Assim se faz a
linguagem, oral ou escrita, dessa guerra.
Alepo é o
mais rugoso destroço desse miserável conflito, a preço de uma celestialidade
questionável. O tema é tão frio que me causa dor na espinha e colapso em meus
alvéolos pulmonares. Falta ar. Falta tripa. Falta entender. Só me sobram
tetanias na alma e o coração a fibrilar. Há dor em Alepo, como há em qualquer guerra
onde se vê crianças e inocentes a cristalizar o cerebelo na ideia de divagar a
esmo, em marcha ebriosa que faz o Oriente caminhar entre fronteiras. As lágrimas das mães escorrem no rosto sujo dos escombros, deixando a
impressão de que um rio de dor passa por ali, e são insuficientes para lavar
a alma desses espartanos.
Os valores
do fundamentalismo e o caráter barulhento dessa ideologia lembram folhas de
zinco entregue às chuvaradas de inverno caindo no teto de de minha casa de
infância de calmaria - perturbam minha verve.
Dá até para
limpar as lágrimas, mas regressar à normalidade da segunda-feira é bem mais difícil, pois somos sentimentos
disfarçados e imiscuídos em palavras algemadas àquele aldeão, conforme retrata Corisco: "A paz é um tropeço, um acidente, um soluço da guerra [...] Apenas um hiato entre o sonho e o fato".
2 comentários:
...como dói sentir-me impotente...
Inegável é que as guerras de todos os matizes são tragédias humanas. Os confrontos em Alepo não ficam à margem da doutrina da "Bellum iustum", em que as ações fratricidas são havidas como moralmente justas por quaisquer dos lados. É inerente à filosofia política. A pena realística do Dr. Roger nos comunica a repulsa imanente no sentimento pacifista comum em muitas das gentes. Quando haverá paz entre os homens? E em que lugar? Homo homini lupus; lamentável, mas real.
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