quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O espírito de natal

     A casa fincada na beira do rio foi construída com esmero. Do açaizeiro tudo foi aproveitado para o assoalho, vigas, paredes, estames e palhas para a cobertura. A estiva que fazia ponte da casa ao trapiche, pronunciada a dez metros no rio, criava um cenário harmonioso e nostálgico àquela palafita.

    José, pescador e carpinteiro, casou-se com Maria. Foram morar ali, na beira da ilha das onças, bem em frente a Belém, às margens do Rio Guamá. Era pôr-do-sol quando Maria chegou ao lar pela primeira vez. Uma leve luz deitava-se sobre a casa e arredores. Ficou encantada com a paisagem. Emocionada mareou o olhar.

    O tempo acompanhou a correnteza do rio. Naquela noite de natal, Maria sentada no trapiche, via José lançar a rede de pesca na esperança de garantir algum peixe para a ceia. Acariciava a barriga de nove meses com ar aflito, uma vez que a escassez de pescado andava rondando o lugar. Apesar de toda dificuldade para andar, no fim da tarde, havia colhido algumas flores de algodão e um bonito galho de goiabeira. Cobriu os galhos com os tufos da flor e pôs na sala sua arvore de natal. Em oração silenciosa pediu fartura e saúde ao filho que chegaria. Ao ver aquela cena José dobrou os olhos. Sabia que estava difícil conseguir algum pescado. Quase nada se tinha em casa para um prato de comida. Ela abraçou o marido e acalentando cochichou: - O mais importante é o espírito de Natal. Dessa vez o marido mareou o olhar.

    Após armar a rede de pesca, José remou de volta ao trapiche e para sua surpresa, o barco a motor “B/M Reis Magos” vindo do município de Abaetetuba para o Natal em Belém encalhou, enganchando a hélice na rede de pesca de José. Maria tomou um susto. José decepcionado retornou ao rio. Um pouco nervoso, resmungou aos tripulantes a falta de atenção. Com a mulher a ponto de parir, queria apenas algum peixe para a ceia. Os três tripulantes velhinhos entreolharam-se, ouviram em silencio, e desculparam-se citando o espírito de natal. José ouviu calado. Desenganchou a rede. Assustou-se quando Maria gritou seu nome no trapiche. Com o coração na mão remou sem se despedir ou cobrar o prejuízo. Correu com Maria para dentro da casa. Uma estrela cadente riscou o céu, espelhando linda luz sobre as águas do rio Guamá, bem na hora que Maria e José recebiam seu filho dentro daquela palafita.

    A porta rangeu lentamente revelando os três velhinhos entrando no ambiente, cada um trazia nas mãos presentes, comida farta, uma rede de pesca novinha, um berço rústico, brinquedos e um presépio todo feito em miriti que foi posto ao pé da arvore feita por Maria. Em silêncio vieram e assim partiram.

    Maria abraçou José junto ao filho, beijou e cochichou em seu ouvido: - Esse é o espírito do Natal. Maria e José emocionados marearam os olhos agradecendo e acalentando o recém-nascido Jesus.

    Texto de autoria do compositor paraense Dudu Neves.

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