– Doutor...
– Doutor – repetiu Jane Crawford – que é isto?
McDowell encarou e respondeu:
– Creio que um tumor.
Ela tornou:
Corte essa coisa, doutor! Eu resisto ao sofrimento!...
O diálogo data de 1809. Até então,
as dores de uma operação eram aliviadas pela reza de um salmo em voz alta ou
com pedaço de pano entre os dentes, com a mandíbula em trismo. A obra de Jurgen
Thorwald, O século dos cirurgiões,
atinge, num grau de extremo excesso as mais delicadas – ou brutais – e quase
inatingíveis circunvoluções da memória da cirurgia.
Exploradora desses plainos
abandonados que a brisa do cotidiano sopra, a anestesia só chegaria ao assoalho
dos teatros operatórios 40 anos mais tarde, pela via inalatória, com o éter sulfúrico e o gás do riso. Era o alvorecer do
novo testamento da bíblia cirúrgica, cujas primeiras páginas haviam de ser escritas
por William Halsted.
Pai de grande parte –
senão da maioria – do pensamento cirúrgico americano do final do século 19, e
boa parte do 20, William Stewart Halsted (1852-1922), nascido em berço de ouro,
deixou raízes profundas em seu roteiro de vida. Tomou-se de fama não só pelas
habilidades manuais, mas pela valentia de enfrentar o câncer na ponta do
bisturi, quando só existiam fé em Deus e resignação.
Ele criou a
mastectomia radical, primeira forma de tratamento da neoplasia de mama– hoje à sombra
do passado.A técnica consistia na retirada completa da mama, incluindo músculos
da parede, arcos costais, tecido supraclavicular (incluso a própria clavícula)
e axilar. Alguns de seus seguidores retiravam até tecido mediastinal, passando
a criar a ultrarradicalidade. Assim resplandeceu a “atmosfera halstediana”, que
se tornou boom e percorreu todos os EUA. Também se infiltrou em outras
especialidades, entre elas, a própria cirurgia oncológica pulmonar. A operação de
Halsted desprezava o tamanho e extensão do tumor. O lema era aplicar a “teoria
centrífuga” e realizar a mutilação.
Para o escritor
Siddhartha Mukherjee, essa “atmosfera halstediana” quase secular mereceu
algumas considerações críticas, conforme descreve em seu premiado best-seller O
imperador de todos os males: uma biografia do câncer (prêmio Pulitzer 2011).
Mukherjee faz uma espécie de autópsia da cabeça de Halsted, tentando entender a
raiz daquele roteiro. Ele encena um velório de 90 anos e formula crítica mordaz
à teoria: “o trabalho do cirurgião era conter essa difusão centrífuga, cortando
cada pedaço dela no corpo, como se agarrasse a roda no meio de um giro. Isso
significa tratar de forma agressiva e definitiva o câncer incipiente. Quanto
mais o cirurgião cortava, mais curava”. Fica claro pela narrativa de Mukherjee
que, a teoria de Halsted deixa grande atraso na cura do câncer de mama.
Genius on the edge:
the bizarre double life of Dr. William Stewart Halsted (também de 2011, sem
tradução para o português), obra do escritor e cirurgião plástico Gerald
Imber, revela outra face do que foi considerado o maior cirurgião estadunidense.
Era adicto, rígido, dolorosamente tímido, recluso, inacessível, muitas vezes
severo, sarcástico e até cruel. Em suas reuniões de poucos amigos, substituía o
cafezinho da tarde por doses de morfina, prenunciando o comportamento da era
pré-cocaína de Nova York. Durante as férias em sua fazenda, quando relaxado e
feliz, era um anfitrião encantador. Fica a questão: os delírios límbicos de
Halsted foram responsáveis por esse encaracolamento da história do câncer, ou
era mesmo um cidadão de bravatas? Ainda: seria a evolução natural do
conhecimento, sendo Halsted o mensageiro da agonia?
Para a maioria dos
seguidores de Halsted, seu maior valor está em seu invencionismo frente a
dilemas inestimáveis como o câncer, quando nada se tinha além dos templos sagrados
para orações. Naquele crepúsculo do século XX tentou-se eliminar, sem sucesso,
o tumor de mama somente com radiação. A quimioterapia inexistia e foi somente
em 1970 que apareceu a adjuvância; um pouco mais tarde, em 1986, é descoberto o
HER2, iniciando a terapia-alvo. Nesse diapasão, dada a alta prevalência do
câncer de mama, a arte no cabo do bisturi pedia salvo-conduto, e Halsted
apresentava-se como destemido, fazendo de sua virtude de cirurgião o ideário de
uma época.
A cana de braço com os
halstedianos começa em 1950, quando os Crile – pai e filho –, discípulos do
próprio Halsted, juntamente com Bernard Fischer, reacendem as ideias do jovem
londrino Geoffrey Keynes, que combinava radioterapia a cirurgias econômicas.
Quando expôs seus relatos, em 1924, Keynes foi zombado e suas ideias antirradicalistas
foram sepultadas diante dos musculosos halstedianos.
Keynes tinha visão futurista,
porém só possuía relato de casos ante a grande amostra dos adversários. Sofreu
chacota e teve que sair de cena. Os trials, duplo-cegos randomizados e
meta-análises amadureceram bem depois, e desaguaram no que se conhece hoje como
medicina baseada em evidência, que só começou a gerar algum impacto bem depois
da Segunda Guerra e com a criação da Cochrane Library. Foi nesse suporte
que Crile – pai e filho – e Bernard Fischer traçaram novos caminhos.
Nota-se, ao
longo da leitura, que a tinta da caneta de Mukherjee mergulha em pH ácido e
submete o extrato cirúrgico a uma escala secundária: “Os cirurgiões que tinham
criado o mundo da cirurgia radical, a duras penas não tinham, absolutamente,
incentivo nenhum para revolucioná-la”. O escritor reitera que “o evangelho da
profissão cirúrgica” começou a amarelar suas páginas em 1973 com a chegada
definitiva da “mastectomia econômica” associada à quimio/radioterapia, após
estudo comparativo em larga escala.
Decerto Mukherjee
romanceia o câncer como ninguém, mas deixa Halsted como um malfeitor. Cria uma
aversão ao passado, mas sem dar vigor à quimioterapia, restrita a mostarda,
alcaloides e folatos. A irradiação era com isótopos de polônio e rádio,
estudados pelo casal Curie ainda no fundo de um galpão. Bem depois é que chega a
bomba de Cobalto e as coisas envergam. A arte na ponta do bisturi, não
obstante, era a única forma de desfigurar o rosto infame dos cancros.
Halsted fundou um
séquito gigantesco de estrelas ao criar o primeiro programa de residência
médica na história, no famoso hospital Johns Hopkins, após passar uma temporada
com Theodor Billroth, em Viena. Lá desenvolveu operações originais para hérnia,
bócio, aneurismas, doenças intestinais e da vesícula biliar; foi um dos
primeiros defensores dos procedimentos assépticos; introduziu o uso de luvas
finas de borracha. Sua ênfase na manutenção da homeostase completa, ou
metabolismo corporal equilibrado durante as operações cirúrgicas, delicadeza no
manuseio de tecidos vivos, realinhamento preciso dos tecidos cortados (postulados
de Halsted) e sua criação de residências hospitalares em treinamento
contribuíram muito para o avanço da cirurgia nos EUA e mundo afora, além da criação
de diversos instrumentais cirúrgicos. A mastectomia foi apenas mais uma de suas
vastas contribuições, ou seja, Halsted participa gloriosamente da história da
cirurgia moderna em todos os seus matizes.
Qualquer filósofo
definiria Halsted como um escolástico, ou seja, buscava associar a razão
aristotélica –e platônica– com a fé (na arte), ao viver a experiência do olhar
cirúrgico daquele momento, que acabava de emergir dos teatros cirúrgicos de
Baltimore e Nova York. Mas
Mukherjee leva para sua narrativa o desmascaramento do mito que jamais existiu.
Halsted apenas foi uma forma de vida que surge na história universal com nova
mentalidade, mas foi tratado como se tivesse feito crimes nefandos e de
espectros medonhos. São capítulos de teor antropofágico.
Foi nesse
solo agitado que se semeou o amanhã da terapêutica do câncer. Não foi diferente
na tuberculose, úlcera péptica e esquizofrenia. Para desavisados: o italiano Forlanini
também teria retardado o surgimento da quimioterapia antituberculose ao apontar
o bisturi para o pulmão; diriam o mesmo de Billroth e Latarjet para úlcera
péptica, antes do H. pylori; não seria diferente em relação a António Moniz e Almeida Lima, da Universidade de Lisboa, para a lobotomia frontal no tratamento
da esquizofrenia.
Sobre a cirurgia pulmonar,
é possível que a atmosfera halstediana e a teoria centrífuga tenham passeado
pela calçada de Evarts Graham, ao tratar um nódulo pulmonar com a retirada de
todo o pulmão. Para Rodney Landreneau e Matthew Schuchert (2019), a teoria centrífuga também
foi defendida pela maioria dos cirurgiões torácicos da época ao elegerem a
pneumonectomia como a única ressecção apropriada para o câncer. Embora a
lobectomia tenha começado a ser utilizada em meados do século 20, não foi
considerada uma alternativa até 1962, quando saiu o trabalho seminal de Shimkin
e cols. acerca da equivalência da sobrevida entre lobectomia e pneumonectomia
para câncer precoce.
Mais à frente Mukherjee
amortece o verbo: “para mudar a cirurgia é preciso ser cirurgião” e descreve o
início da jornada da cirurgia conservadora para o câncer de mama, quando
Bernard Fisher emplaca cientificamente a “mastectomia simples” em publicação
revolucionária (1973), com ensaio multicêntrico e rigor estatístico apurado.
Consonante a 1973, nasce
a cirurgia oncológica conservadora pulmonar. Foi pelas mãos de Robert Jensik,
de Chicago. A publicação memorável foi no J Thorac Cardiovasc Surg. Ele
relata sua experiência de 15 anos, após sua vivência (e
convivência “na pele”) com a tuberculose. Acabou por transferir ao câncer o
conceito de ressecção segmentar de pulmão, deixando, peremptoriamente, um
contraponto à lobectomia e pneumonectomia em cânceres precoces. Sua refinada técnica,
infelizmente, tornou-se arte perdida por mais de 20 anos, quando Robert
Ginsberg e o Lung Cancer Group (1995) entram em cena e revalidam suas
ideias com o famoso Randomized trial in limited resection in T1N0M0 NSCLC.
Ginsberg fez com Jensik o que os Crile e Fisher fizeram com o Geoffrey Keynes
em relação à cirurgia conservadora da mama, porém sem desqualificar Graham.
Com a crescente da cirurgia
torácica pela VATS/RATS, a segmentectomia encurta os passos na caminhada para a
cura do câncer precoce, conforme revê Ramón Rami-Porta, cirurgião da Catalunya. Ele ainda acrescenta, em suas
caminhadas pelas ruas da pacata Terrassa, que a “linfomania” deve seguir rigorosa.
A criticidade de
Mukherjee tenta arranhar o legado halstediano, que revive duas eternas questões,
descartadas em sua obra: a permanência enraizada da arte no meio cirúrgico –
quando não havia outra alternativa; e os avanços tecnológicos, que fazem
perdurar e seduzir o pensamento clínico como tentativa de corrigir “erros” de
outrora. Se esses dois cognatos ofuscaram nossa alfabetização científica,
certamente não foi por Halsted, conforme retrata Peter Olch, um halstediano
convicto que, se vivo estivesse, rasgaria algumas páginas de a página 243: “A
cirurgia, tradicional machadinha de guerra no combate ao câncer, era
considerada primitiva, indiscriminada e desgastante demais”.
A bem dizer, os feitos
da medicina sempre se instauram a cada cruzamento de achados (papers) na
relação tempo-espaço, de modo a deixar um invólucro do vivencial exposto
em atmosferas acadêmicas, enlaçada por uma discussão ética confortável, mesmo sendo
apenas na hora de tomar um cafezinho em intervalos de congressos. Há de se
ratificar que questões como as das neoplasias fogem a apreciações lineares
diante de tantos alcances e progressos. Mukherjee, um oncologista nato e apaixonado
por literatura, faz uma releitura inflexível da história e deixa seu texto
anacrônico, sem esforçar para reconhecer uma era. Obviamente que o leitor atento,
no alto da montanha, em transe tibetana, não se deixará levar por essa dissonância
cheia de armadilhas em sua intertextualidade. Se a obra premiada procura
negar a autonomia de uma era tribalista, quando só tínhamos o silêncio das
mortes, não podemos torcer o nariz, tampouco jogar ao relento o despertar
daquele homem, mesmo diante de teorias científicas imaturas.
Não há dúvida que a
atmosfera da época, repleta de arte na ponta de bisturi, foi ovacionada e aplaudida,
mas agora, as nuvens de incenso que subiam dos altares erguidos em sua memória,
dissiparam-se pelas ventanias das redescobertas, fazendo surgir novas vertentes.
E assim, foi-se dando terreno às evidências científicas, à interpretação
estatística dos achados, à genética, à farmacologia, à Cochrane… e o mundo viu a
machadinha dos mutiladores serem substituídas por rajadas de agentes químicos e
pequenas incisões.
Aquela atmosfera
halstediana eterniza um momento histórico e arranca um átimo da temporalidade,
conferindo-lhe perenidade ao tempo, sem eliminar o buquê, a marca, ou mesmo o feitiço
que decorrem precisamente de nossa fragilidade científica. Para mudar basta
estar inserido na temporalidade, sem necessitar desenraizar o criadouro, pois, se
as ideias de um novo legado foram ganhando corpo e cabeça, esquartejá-las com
os alfinetes da literatura é o mesmo que olhar o passado pelo buraco da
fechadura.
Em Contos do nascer
da Terra, do escritor moçambicano Mia Couto, um homem deita-se ao chão e
repousa a cabeça sobre uma almofada de areia, até que dorme e sonha com seu
mundo. Ao despertar tenta levantar-se, mas não consegue. Chama a mulher e
pede-lhe ajuda. Ela olha por debaixo da nuca do marido, puxa-lhe a cabeça, mas
em vão. Cavouca e vê que a cabeça do marido criara raízes. Ele pede para
cortá-las. A esposa puxa a faca e dá o talho. Não dói, mas sangra e logo
coagula. Ela desiste. A vizinhança tenta escavar; quanto mais tentam, mais se
chega ao fundo. Retiram toneladas de chão e... nada. Concluíram: as raízes
daquela cabeça davam volta ao mundo.
Texto originalmente publicado no
JORNAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE CIRURGIA TORÁCICA (SBCT)
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