domingo, 17 de outubro de 2021

PELOS VEIOS VIVOS DA MEMÓRIA: DE HALSTED À SEGMENTECTOMIA PULMONAR NO CÂNCER PRECOCE

 

– Doutor...

– Doutor –  repetiu Jane Crawford – que é isto?

McDowell encarou e respondeu:

– Creio que um tumor.

Ela tornou:

Corte essa coisa, doutor! Eu resisto ao sofrimento!...

O diálogo data de 1809. Até então, as dores de uma operação eram aliviadas pela reza de um salmo em voz alta ou com pedaço de pano entre os dentes, com a mandíbula em trismo. A obra de Jurgen Thorwald, O século dos cirurgiões, atinge, num grau de extremo excesso as mais delicadas – ou brutais – e quase inatingíveis circunvoluções da memória da cirurgia.

Exploradora desses plainos abandonados que a brisa do cotidiano sopra, a anestesia só chegaria ao assoalho dos teatros operatórios 40 anos mais tarde, pela via inalatória, com o éter sulfúrico e o gás do riso. Era o alvorecer do novo testamento da bíblia cirúrgica, cujas primeiras páginas haviam de ser escritas por William Halsted.

Pai de grande parte – senão da maioria – do pensamento cirúrgico americano do final do século 19, e boa parte do 20, William Stewart Halsted (1852-1922), nascido em berço de ouro, deixou raízes profundas em seu roteiro de vida. Tomou-se de fama não só pelas habilidades manuais, mas pela valentia de enfrentar o câncer na ponta do bisturi, quando só existiam fé em Deus e resignação.

Ele criou a mastectomia radical, primeira forma de tratamento da neoplasia de mama– hoje à sombra do passado.A técnica consistia na retirada completa da mama, incluindo músculos da parede, arcos costais, tecido supraclavicular (incluso a própria clavícula) e axilar. Alguns de seus seguidores retiravam até tecido mediastinal, passando a criar a ultrarradicalidade. Assim resplandeceu a “atmosfera halstediana”, que se tornou boom e percorreu todos os EUA. Também se infiltrou em outras especialidades, entre elas, a própria cirurgia oncológica pulmonar. A operação de Halsted desprezava o tamanho e extensão do tumor. O lema era aplicar a “teoria centrífuga” e realizar a mutilação.

Para o escritor Siddhartha Mukherjee, essa “atmosfera halstediana” quase secular mereceu algumas considerações críticas, conforme descreve em seu premiado best-seller O imperador de todos os males: uma biografia do câncer (prêmio Pulitzer 2011). Mukherjee faz uma espécie de autópsia da cabeça de Halsted, tentando entender a raiz daquele roteiro. Ele encena um velório de 90 anos e formula crítica mordaz à teoria: “o trabalho do cirurgião era conter essa difusão centrífuga, cortando cada pedaço dela no corpo, como se agarrasse a roda no meio de um giro. Isso significa tratar de forma agressiva e definitiva o câncer incipiente. Quanto mais o cirurgião cortava, mais curava”. Fica claro pela narrativa de Mukherjee que, a teoria de Halsted deixa grande atraso na cura do câncer de mama.

Genius on the edge: the bizarre double life of Dr. William Stewart Halsted (também de 2011, sem tradução para o português), obra do escritor e cirurgião plástico Gerald Imber, revela outra face do que foi considerado o maior cirurgião estadunidense. Era adicto, rígido, dolorosamente tímido, recluso, inacessível, muitas vezes severo, sarcástico e até cruel. Em suas reuniões de poucos amigos, substituía o cafezinho da tarde por doses de morfina, prenunciando o comportamento da era pré-cocaína de Nova York. Durante as férias em sua fazenda, quando relaxado e feliz, era um anfitrião encantador. Fica a questão: os delírios límbicos de Halsted foram responsáveis por esse encaracolamento da história do câncer, ou era mesmo um cidadão de bravatas? Ainda: seria a evolução natural do conhecimento, sendo Halsted o mensageiro da agonia?

Para a maioria dos seguidores de Halsted, seu maior valor está em seu invencionismo frente a dilemas inestimáveis como o câncer, quando nada se tinha além dos templos sagrados para orações. Naquele crepúsculo do século XX tentou-se eliminar, sem sucesso, o tumor de mama somente com radiação. A quimioterapia inexistia e foi somente em 1970 que apareceu a adjuvância; um pouco mais tarde, em 1986, é descoberto o HER2, iniciando a terapia-alvo. Nesse diapasão, dada a alta prevalência do câncer de mama, a arte no cabo do bisturi pedia salvo-conduto, e Halsted apresentava-se como destemido, fazendo de sua virtude de cirurgião o ideário de uma época.

A cana de braço com os halstedianos começa em 1950, quando os Crile – pai e filho –, discípulos do próprio Halsted, juntamente com Bernard Fischer, reacendem as ideias do jovem londrino Geoffrey Keynes, que combinava radioterapia a cirurgias econômicas. Quando expôs seus relatos, em 1924, Keynes foi zombado e suas ideias antirradicalistas foram sepultadas diante dos musculosos halstedianos.

Keynes tinha visão futurista, porém só possuía relato de casos ante a grande amostra dos adversários. Sofreu chacota e teve que sair de cena. Os trials, duplo-cegos randomizados e meta-análises amadureceram bem depois, e desaguaram no que se conhece hoje como medicina baseada em evidência, que só começou a gerar algum impacto bem depois da Segunda Guerra e com a criação da Cochrane Library. Foi nesse suporte que Crile – pai e filho – e Bernard Fischer traçaram novos caminhos.

 Nota-se, ao longo da leitura, que a tinta da caneta de Mukherjee mergulha em pH ácido e submete o extrato cirúrgico a uma escala secundária: “Os cirurgiões que tinham criado o mundo da cirurgia radical, a duras penas não tinham, absolutamente, incentivo nenhum para revolucioná-la”. O escritor reitera que “o evangelho da profissão cirúrgica” começou a amarelar suas páginas em 1973 com a chegada definitiva da “mastectomia econômica” associada à quimio/radioterapia, após estudo comparativo em larga escala.

Decerto Mukherjee romanceia o câncer como ninguém, mas deixa Halsted como um malfeitor. Cria uma aversão ao passado, mas sem dar vigor à quimioterapia, restrita a mostarda, alcaloides e folatos. A irradiação era com isótopos de polônio e rádio, estudados pelo casal Curie ainda no fundo de um galpão. Bem depois é que chega a bomba de Cobalto e as coisas envergam. A arte na ponta do bisturi, não obstante, era a única forma de desfigurar o rosto infame dos cancros.

Halsted fundou um séquito gigantesco de estrelas ao criar o primeiro programa de residência médica na história, no famoso hospital Johns Hopkins, após passar uma temporada com Theodor Billroth, em Viena. Lá desenvolveu operações originais para hérnia, bócio, aneurismas, doenças intestinais e da vesícula biliar; foi um dos primeiros defensores dos procedimentos assépticos; introduziu o uso de luvas finas de borracha. Sua ênfase na manutenção da homeostase completa, ou metabolismo corporal equilibrado durante as operações cirúrgicas, delicadeza no manuseio de tecidos vivos, realinhamento preciso dos tecidos cortados (postulados de Halsted) e sua criação de residências hospitalares em treinamento contribuíram muito para o avanço da cirurgia nos EUA e mundo afora, além da criação de diversos instrumentais cirúrgicos. A mastectomia foi apenas mais uma de suas vastas contribuições, ou seja, Halsted participa gloriosamente da história da cirurgia moderna em todos os seus matizes.

Qualquer filósofo definiria Halsted como um escolástico, ou seja, buscava associar a razão aristotélica –e platônica– com a fé (na arte), ao viver a experiência do olhar cirúrgico daquele momento, que acabava de emergir dos teatros cirúrgicos de Baltimore e Nova York. Mas Mukherjee leva para sua narrativa o desmascaramento do mito que jamais existiu. Halsted apenas foi uma forma de vida que surge na história universal com nova mentalidade, mas foi tratado como se tivesse feito crimes nefandos e de espectros medonhos. São capítulos de teor antropofágico.

Foi nesse solo agitado que se semeou o amanhã da terapêutica do câncer. Não foi diferente na tuberculose, úlcera péptica e esquizofrenia. Para desavisados: o italiano Forlanini também teria retardado o surgimento da quimioterapia antituberculose ao apontar o bisturi para o pulmão; diriam o mesmo de Billroth e Latarjet para úlcera péptica, antes do H. pylori; não seria diferente em relação a António Moniz e Almeida Lima, da Universidade de Lisboa, para a lobotomia frontal no tratamento da esquizofrenia. 

Sobre a cirurgia pulmonar, é possível que a atmosfera halstediana e a teoria centrífuga tenham passeado pela calçada de Evarts Graham, ao tratar um nódulo pulmonar com a retirada de todo o pulmão. Para Rodney Landreneau e Matthew Schuchert (2019), a teoria centrífuga também foi defendida pela maioria dos cirurgiões torácicos da época ao elegerem a pneumonectomia como a única ressecção apropriada para o câncer. Embora a lobectomia tenha começado a ser utilizada em meados do século 20, não foi considerada uma alternativa até 1962, quando saiu o trabalho seminal de Shimkin e cols. acerca da equivalência da sobrevida entre lobectomia e pneumonectomia para câncer precoce.

Mais à frente Mukherjee amortece o verbo: “para mudar a cirurgia é preciso ser cirurgião” e descreve o início da jornada da cirurgia conservadora para o câncer de mama, quando Bernard Fisher emplaca cientificamente a “mastectomia simples” em publicação revolucionária (1973), com ensaio multicêntrico e rigor estatístico apurado.

Consonante a 1973, nasce a cirurgia oncológica conservadora pulmonar. Foi pelas mãos de Robert Jensik, de Chicago. A publicação memorável foi no J Thorac Cardiovasc Surg. Ele relata sua experiência de 15 anos, após sua vivência (e convivência “na pele”) com a tuberculose. Acabou por transferir ao câncer o conceito de ressecção segmentar de pulmão, deixando, peremptoriamente, um contraponto à lobectomia e pneumonectomia em cânceres precoces. Sua refinada técnica, infelizmente, tornou-se arte perdida por mais de 20 anos, quando Robert Ginsberg e o Lung Cancer Group (1995) entram em cena e revalidam suas ideias com o famoso Randomized trial in limited resection in T1N0M0 NSCLC. Ginsberg fez com Jensik o que os Crile e Fisher fizeram com o Geoffrey Keynes em relação à cirurgia conservadora da mama, porém sem desqualificar Graham.

Com a crescente da cirurgia torácica pela VATS/RATS, a segmentectomia encurta os passos na caminhada para a cura do câncer precoce, conforme revê Ramón Rami-Porta, cirurgião da Catalunya. Ele ainda acrescenta, em suas caminhadas pelas ruas da pacata Terrassa, que a “linfomania” deve seguir rigorosa.

A criticidade de Mukherjee tenta arranhar o legado halstediano, que revive duas eternas questões, descartadas em sua obra: a permanência enraizada da arte no meio cirúrgico – quando não havia outra alternativa; e os avanços tecnológicos, que fazem perdurar e seduzir o pensamento clínico como tentativa de corrigir “erros” de outrora. Se esses dois cognatos ofuscaram nossa alfabetização científica, certamente não foi por Halsted, conforme retrata Peter Olch, um halstediano convicto que, se vivo estivesse, rasgaria algumas páginas de a página 243: “A cirurgia, tradicional machadinha de guerra no combate ao câncer, era considerada primitiva, indiscriminada e desgastante demais”. 

A bem dizer, os feitos da medicina sempre se instauram a cada cruzamento de achados (papers) na relação tempo-espaço, de modo a deixar um invólucro do vivencial exposto em atmosferas acadêmicas, enlaçada por uma discussão ética confortável, mesmo sendo apenas na hora de tomar um cafezinho em intervalos de congressos. Há de se ratificar que questões como as das neoplasias fogem a apreciações lineares diante de tantos alcances e progressos. Mukherjee, um oncologista nato e apaixonado por literatura, faz uma releitura inflexível da história e deixa seu texto anacrônico, sem esforçar para reconhecer uma era. Obviamente que o leitor atento, no alto da montanha, em transe tibetana, não se deixará levar por essa dissonância cheia de armadilhas em sua intertextualidade.  Se a obra premiada procura negar a autonomia de uma era tribalista, quando só tínhamos o silêncio das mortes, não podemos torcer o nariz, tampouco jogar ao relento o despertar daquele homem, mesmo diante de teorias científicas imaturas.

Não há dúvida que a atmosfera da época, repleta de arte na ponta de bisturi, foi ovacionada e aplaudida, mas agora, as nuvens de incenso que subiam dos altares erguidos em sua memória, dissiparam-se pelas ventanias das redescobertas, fazendo surgir novas vertentes. E assim, foi-se dando terreno às evidências científicas, à interpretação estatística dos achados, à genética, à farmacologia, à Cochrane… e o mundo viu a machadinha dos mutiladores serem substituídas por rajadas de agentes químicos e pequenas incisões. 

Aquela atmosfera halstediana eterniza um momento histórico e arranca um átimo da temporalidade, conferindo-lhe perenidade ao tempo, sem eliminar o buquê, a marca, ou mesmo o feitiço que decorrem precisamente de nossa fragilidade científica. Para mudar basta estar inserido na temporalidade, sem necessitar desenraizar o criadouro, pois, se as ideias de um novo legado foram ganhando corpo e cabeça, esquartejá-las com os alfinetes da literatura é o mesmo que olhar o passado pelo buraco da fechadura.

Em Contos do nascer da Terra, do escritor moçambicano Mia Couto, um homem deita-se ao chão e repousa a cabeça sobre uma almofada de areia, até que dorme e sonha com seu mundo. Ao despertar tenta levantar-se, mas não consegue. Chama a mulher e pede-lhe ajuda. Ela olha por debaixo da nuca do marido, puxa-lhe a cabeça, mas em vão. Cavouca e vê que a cabeça do marido criara raízes. Ele pede para cortá-las. A esposa puxa a faca e dá o talho. Não dói, mas sangra e logo coagula. Ela desiste. A vizinhança tenta escavar; quanto mais tentam, mais se chega ao fundo. Retiram toneladas de chão e... nada. Concluíram: as raízes daquela cabeça davam volta ao mundo.


Texto originalmente publicado no 

JORNAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE CIRURGIA TORÁCICA (SBCT)

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