sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Relicário biográfico do Água Preta


 Quem, naquela época,

que fazia parte do círculo de amizade dos Normandos,

que não tenha recebido o afeto de dona Marina

e os seus maravilhosos lanches...

Zeca, filho de nossa infância acreana

 

Deus, como bom relojoeiro, havia construído e dado corda no grande relógio universal. Ao pôr pra rodar os ponteiros do tempo, após esse máximo ato inicial, o Criador teria se retirado, fechado a cortina e deixado a criatura em perfeito exercício para dar os primeiros passos para desvendar Gaia. Depois era só se achegar ao que hoje se conhece como Água Preta e beber um gole de vida.

Foi há cinco anos, em quase quatro horas de voadeira, na maré baixa, que partimos de Santarém, desviando bancos de areia. Atravessamos boa parte do rio Tapajós, singrando o encontro das águas com o gigante Amazonas, no prumo do desconhecido, até varar no que chamamos cafundós do Judas, ou melhor, Água Preta, d’onde minha mãe havia sido parida pelos espasmos da floresta. 

No lugar, distante das ondas cibernéticas, havia uma casa modesta e uns parentes, de bubuia, à nossa espera. Ancoramos, escalamos barranco, proseamos, tomamos café de coador e sentimos a atmosfera do lugar. Ali afoguei a curiosidade em saber como fui parar no útero de minha mãe. Ou seja, precisava entender como o ponteiro giraria para completar a volta do relógio universal.

Tudo porque passamos parte da infância no interior do Acre e Rondônia, ouvindo as vozes daquele lugar, feito um sonâmbulo hamletiano de "ser ou não ser". Só depois é que aportamos em Belém do Pará, mas, à medida que fomos crescendo, ela foi deixando de contar sobre a infância das ribeiras. Paresque ela sabia que a medida que os músculos tufavam e o pomo protuberava já não tinha tanta graça contar sobre sua vida de criança. Haveria, sim, de estar construindo outras infâncias -  as nossas. 

Diferente de nosso pai, com infância mais sofrida em Boa Vista, ele se silenciava. Com alguns goles de cerveja tentava iniciar, mas começava a soluçar e nunca findava. Nem o nome do pai ele dizia, e sequer sabíamos se ele sabia. Só o da mãe, cujo nome foi emprestado a uma de minhas irmãs. Nosso pai ficou como o segredo indecifrável - e já se foi.

Depois da infância, minha mãe aportou em Santarém, para ser criada em casa de família e ajudar em tarefas do lar. Virou aplicadora de injeção na Farmácia Veloso, na Siqueira Campos, a única da cidade, até se casar e pegar o beco, no rumo do Acre, rio Juruá, onde começa nossa história. Também contava versões de sua Santarém, de suas irmãs de trabalho Ilka e Júlia. Suas memórias nos levavam a conhecer Água Preta e Alter-do-Chão, mas o tempo escasso me empurrava pro tatame, até fazer aquela dita viagem.

Minha mãe entrelaçava os filhos tal como fios de palha (ou linho, digamos), aprumando destino na cadência de cada traço, sem deixar de mostrar-nos os nós. Daí foi desatando um-a-um até chegar aos quase 87 e se casar com mister Parkinson. Também teve uma filha que pediu emprestada ao útero da terra e só largou quando já tinha uns quarenta. O mais novo, hoje com mais de cinqüenta, ficou com ela até o ponteiro do relógio findar a volta e esperar o canto do Cuco em pleno outubro dos sinos de Nazaré. Dos seis filhos, chegaram 11 netos e uma bisneta por nome Alice Marina. Esta-umazinha deu fim ao legado que seus olhos alcançariam. Entre os netos, uns tem nome de santo, outros são misturados com a modernidade, sem deixar de escapar outra Marina entre tantos YaNormando - por conta da origem roraimense do patriarca e a intima convivência com os verdadeiro donos da terra.

Ou seja: O tempo não passa impunemente para ninguém, mesmo aos que nasceram com os genes da Água Preta. Ela, sim, forma conosco uma corrente em movimento e de mudança para estarmos juntos, feito dança e pingos de chuva das duas da tarde, representando pra nós, enquanto houver vida em todos os tons, o sentido da finitude, para que nos preservemos até que rasguemos a passagem de volta e nos leve para muito além das aguas do Água Preta.

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