quinta-feira, 23 de março de 2023

Aos olhos de Golias

    Há mais de ano venho acompanhando o nódulo pulmonar da esposa de meu professor de literatura, da época do segundo grau. Ela foi submetida à retirada da mama por câncer há alguns anos, e o aparecimento da pequena mancha pregou-lhe novo susto. Com características benignas, a imagem vem lentamente regredindo de tamanho nesses quase dois anos de seguimento. Ele a acompanha rigorosamente às consultas e sempre me leva, de presente, um mimo de sua coleção, pois sabe que tenho uma pequena livraria na sala de espera de meu consultório, repleta de clássicos da literatura brasileira e universal. Tudo doação dos próprios pacientes.

    Nessa caminhada com sua esposa, vi outra lição do professor: acompanhar a sua amada, tornando leve as terras mais estranhas. Lutar juntos. Enfrentar!

    Já aposentado, os livros doados pelo professor são todos cheios de intervenções a lápis - da época ativa, em que não existiam marcadores de textos multicoloridos. Naquelas páginas me vejo sentado, assistindo às aulas. É delicioso ficar lendo seus comentários. Depois enfileiro o livro na minha pequena estante, que fica na sala de espera sem wifi e televisão, exposto a novos admiradores.

    Outro dia ele levou um Álvares de Azevedo.

    Curioso sobre a morte do poeta aos 20 anos de idade, ele me sapecou uma dúvida quanto à causa: “alguns dizem que foi a queda de um cavalo, outros  tuberculose”. Ao lado do John Davis (Clinical Surgery), um livro de mais de três mil páginas que guardo há mais de 35 anos sobre minha mesa, expliquei-lhe cientificamente a relação entre o traumatismo craniano provocado pela queda do cavalo e a tuberculose, numa relação incomum, mas plausível. A queda ocorre baseada no estágio avançado da doença, que evolui para grave desnutrição e, consequente fraqueza muscular e quedas. O próprio escreveu sobre a evolução avançada de sua tuberculose:

“Embora – é meu destino. Em treva densa

Dentro do peito a existência finda...

Pressinto a morte na fatal doença.”

     Claro que nos idos de 1852 a “Tísica” tinha prognóstico diferente dos tempos atuais. Por isso, senti-me gigante naquela explicação, ao demostrar conhecimento clínico ao meu admirável professor. Era como se tivesse batido no peito, mostrando que eu sabia muita ciência para explicar muitas coisas, entre as quais, o estudo do nódulo pulmonar e a morte de Alvares de Azevedo. No final, ele arrematou: “ainda bem que sabes muito mais de literatura, afinal, foste meu aluno...”

    Toma-lhe-te! Bem no olho!!!

    Ao fim do dia, senti-me Golias. Aquela pedrada agravou minha cegueira num dos olhos. O outro vai tentar compensar a perda. Ainda há tempo? Só se encompridar a vida...

    Em tempo: vale relembrar que hoje, 24 de março, é o dia mundial de combate à tuberculose. O Brasil registrou, em 2022, 78 mil novos casos — aumento de 5% em relação ao ano anterior.



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