sábado, 27 de julho de 2024

Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o esterno

             É sinal de sabedoria apreciar pequenas e inesperadas narrativas, mesmo que possa ser asneira científica. São interpretações benéficas e ofuscantes da arte de viver que derivam de outras épocas e de homens devotados à metafísica e à arte. Mangar disso é jogar pedra na Geni.

Há alguns dias um amigo anestesiologista parou-me no corredor para meia prosa, assaz inebriante, que lhe ocorreu após breve anamnese com seu paciente, na ante-sala de operação para retirada da vesícula biliar. Percebeu que o vovô de 82 anos tinha o peito escavado – conhecido como “peito de sapateiro”. Ele, fortuitamente, interrogou o paciente sobre aquela deformidade. Com intenção de dizer que existe solução cirúrgica moderna para o caso, o paciente respondeu na bucha: - Não faça isso dotô. Essa deformidade já me salvou de perrengues.

Segundo o vovô, certa vez sofrera um acidente de carro e foi levado para o pronto socorro. Meio desacordado e sob efeito do trauma psicológico, o jovem médico, desavisado, viu aquele defeito e achou que a concavidade seria por conta do acidente. Ensaiou chamar o cirurgião, mas o velho amigo de farra cortou e aparou: defeito de infância! "Por um triz eu não fui pra sala de cirurgia".

- Tem mais uma, dotô! Fui nadador dos bons, e essa deformidade dava-me maior tempo de apneia ao mergulhar. Sempre derrotava os concorrentes nesse quesito.

Para ele, o sucesso era por conta daquela afundamento. Leva a vida assim desde então. Para ele nunca foi doença. Só para os cirurgiões. Ou será que o amigo confundiu-se com Peito de Pombo (Pectus Carinado/Carinatum)

Fico a imaginar as histórias que cada médico carrega em seu jaleco. São vivências belas, brilhantes, arrebatadoras. Talvez até mesmo beatificantes. Cabe a cada um, detentor do conhecimento, apenas ter sobriedade para ouvir sem retrucar. Se outrora o espírito não era requerido por um estrito modo de pensar dentro da caixa científica, então a atividade consistia em imaginar símbolos e formas. Há de se perdoar. Não cabe virilidade. 

        Esse relato me espantou pelo fato de, na prática clínica, ocorrer exatamente o inverso. Pais chegam atordoados ao consultório com aquela imagem sinistra de seu filho. A sensação é que aquele esterno curvado para dentro possa espremer pulmão e coração. E não raras vezes o adolescente apresenta cansaços em que culpam a deformidade. 

Recentemente (2024), um estudo da University of Cincinnati revelou, com 274 adolescentes com Pectus Excavatum (peito escavado, peito de sapateiro) tiveram seus fôlegos avaliados. Observaram que os resultados em pouco mais de 20% demonstraram alguma pequena restrição na respiração, mas sem essa de melhorar o fôlego, conforme brandia nosso vovô.

O artigo já encanta no título: (F)utility of preoperative pulmonary function testing in pectus excavatum to assess severity [(F)utilidade dos testes...]

O que se tem feito, e somos adeptos, é esclarecer à família e tranquilizá-los da melhor forma possível, para que se sintam seguros em ser submetido a uma operação que menos parece questão visceral e mais um remodelamento anatômico.

O artigo é muito prático e carrega desde o título a proposta de todo pensamento científico, ou seja, desvendar dúvidas atrozes que se carrega no cotidiano acerca da uma deformidade que maltrata a cabeça dos pais e leva crianças e adolescentes a sofrerem bullying, vergonha e até mesmo depressão.

E o pensamento clínico fica no meio disso, procurando dar pirueta olímpica para decifrar os sentimentos adversários. Essa, aliás, não é uma questão fácil de resolver pelos algoritmos da Inteligência Artificial (IA), pois cada caso precisa ser interpretado de acordo com Inteligência Alheia (Também IA). Por isso devemos agradecer ao grupo de Cincinatti e a grupos brasileiros que sabiamente buscam tais esclarecimentos.

Mas devo confessar que já não me angustia tanto os enigmas em torno das fronteiras entre ficção e fatos científicos. Há médicos em que um dos ouvidos dá voz à ficção; já no ouvido oposto, acústico ao saber erudito, prefere silenciar e deixar que o outro lado não desapareça, pois ainda se precisa desses relatos para deixar a respiração da humanidade mais leve.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Mais que um caso clínico, o passado

Ao final dessa jornada

                     Onde posse vale um nada

Eu diga em contrapartida

Valeram as voltas da vida.

Corisco


"O paciente, em crise de loucura, tentou arrancar o dreno", retrata o cirurgião ao ver que seu paciente retirou o dreno de si, sem anestesia, e com requinte de crueldade. Foi autoflagelamento, diriam, mas por incrível que pareça, ele teve a consciência de não evadir. Relatos como esses não são raros em prontos-socorros.

Teria sido pesadelo? O pesadelo é um sonho desesperado, acordando suado no meio da noite. É quando o marinheiro escuta a tempestade em alto mar; ou barulho da pá do coveiro jogando terra virada para enterrar vítimas de uma pandemia. É o urso rosnando à sua frente numa estrada estreita e sem rota de  fuga. É o que faz chorar o coração. É a abstinência dos adictos.

Levado ao setor de radiografias, o cirurgião ficou surpreso ao ver a imagem de parte do objeto no interior do tórax, cujo dispositivo havia sido colocado na sala de emergência, com todo capricho, por incisão de cerca de 2cm. 

        Decidiu-se pela reintervenção sob anestesia geral. Então o tórax do paciente foi aberto com incisão de quase um palmo, para a retirada daquele corpo estranho, de formato tubular, pouco maior que 30cm. Nessas operações, o que mais maltrata o paciente é a colocação de um afastador, que em metade dos casos acaba fissurando as costelas. A dor pós-operatória é lancinante e pode durar muito tempo. Descobri pela enfermeira de 40 anos de casa, que aquele instrumental ainda era o mesmo desde quando ela chegou, quando ainda era estudante, eu.

           Convidado, decidi ir ao hospital para ver aquela situação inusitada em que o paciente entendia que ele mesmo poderia dar destino ao seu destino. Fui e fotografei, mas o que me faz vir aqui e relatar não foi o caso em si, mas o passado.

          Antes de mais nada, gostaria de pedir licença a esse passado. Até porque tenho muito mais de memória, do que possa ter de vida pela frente. Creio que toda relação com o passado é o que tenhamos de mais afiado para enfrentar o que se enxerga pela frente.

            Gostaria de seguir falando desse lugar íntimo em mim, mas que infelizmente sempre foi abandonado pelo poder público: o Pronto Socorro  Municipal da 14 de março, hoje conhecido com outro nome - que não o mesmo da minha época. Guardamos tantos lugares profundos, que não dá para visitá-los toda hora, sob pena de uma parede da tristura desabar sobre minhas costelas. O HPSM é um desses.

            Neste momento, se há uma voz teclando essas palavras, digo-lhes: não é a minha voz. É um passado doce e suave no pé da orelha que há muito caminha sobre palmilhas, silenciosamente, como uma espécie de esquizofrenia organizada, em forma de crise existencial. Em verdade, quando tento explicar o que estou sentindo, já brota certa nostalgia, e não tem ortografia que me segure... Nem gardenal.

           Foi nesse lugar que comecei minha vida de cirurgião de trincheira, como peregrino em tantos desafios. De lá detenho gratidão, de lá escrevi livro e fiz muitos amigos. Esse texto é aquilo tudo que a gente não precisa esconder do outro. Onde há sentimentos que fingimos não ter e não saborear. Este diálogo está atado no lado oculto de todos nós, sem precisar expressar que EU fiz isso, ou que ali EU fiz aquilo. Deixemos a bravataria para quando estivermos na porta do inferno querendo escapar do fogo, coisa que nem Giordano Bruno conseguiu.    

            Adentrei àquele hospital sem sequer me pedirem documentos. Desde a portaria e por todo o caminho para o centro cirúrgico fui saudado por todos aqueles funcionários de outrora. Velhos amigos, agora grisalhos. O Marco Fumaça, um técnico de enfermagem das antigas, me parou e não desgrudou. Ainda exala o cheiro de cigarro de outrora. Falamos do passado institucional e de várias outras amenidades. Por conta disso, quando cheguei ao quirófano, a operação já havia findado. Só vi o dito dreno fora do tórax, exposto em praça pública para todos verem.

            Eu me lambuzei nos relembrançamentos submersos naquele passado de encantamento. Pena que o cansaço foi mais forte e tive que pedir escolta ao caminhar para o esconderijo do tempo. Deixei-me levar pela vida com menos tormenta e mais aconchego para a minha dor lombar, que ora me pega pela proa e me deixa manco. 

    Mas devo esquecer as tantas madrugadas roubadas de meu travesseiro, para que possa transformar esse passado em amenidades e um pouco de apreço pelo que fui. 

     O passado, já sabemos por escrevê-lo ou lê-lo. Mais parece ficção reconstruída com pequenos pedaços de realidade, ou ilhas móveis em mar de memória, a depender dos ventos da saudade que se deslocam e se reconfiguram.

        Lembrar-se vagamente é dos alentos que podemos nos propor, em prece, pedindo aos céus que a parte submersa seja sempre a mais contundente e expressivamente maior.


Texto impulsionado pelas palavras de Corisco e Sabá de Abadia, do bando de Corisco.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

As trincheiras espinhosas da cirurgia


                                                                                If didn’t kill you, surgical training made you stronger

Paul Riggieri, cirurgião e escritor em:”Confessions of a surgeon”

 

Coisas das que mais gosto é flanar por livrarias - ou bookstores para os amantes de viagens internacionais. Tenho predileção pela livraria da Travessa, em Botafogo, quando visito parentes no Rio de Janeiro. É difícil sair dali sem deixar uns dinheiros por lá.

Há as bookstores, e a minha turma do “Urubooks do Ver-O-Peso” bem sabe disso. Numa dessa viagens, no aeroporto de Quebec cujo nome não vou lembrar agora - mas também não vou consultar o Google-, deparei-me com o Medicine Walk, de Richard Wagamese, escritor canadense. Era um quiosque comum. Acheguei-me pelo título, mas comprei após biopsias retinográficas de algumas páginas - como sempre faço. Ademais, gosto de autores desconhecidos. Nesta ida, estava aventurando-me pelo Institut Universitaire De Cardiologie Et De Pneumologie - Québec.

Por circunstâncias outras, voltei a ler o bendito “Medicine Walk” (sem tradução para o português) recentemente e me vi num fragmento que bem descreve as trincheiras de cirurgião.

No romance o jovem Franklin Starlight, 16 anos, sai em busca de seu pai, perdido na floresta. Caminha montado num cavalo, por trilhas estreitas. Numa delas depara-se com um urso. Percebe ameaça a uns oito passos.  Para e fica no dilema entre voltar para casa ou enfrentar a fera e tentar salvar o pai. Foi quando o animal rosnou forte à sua frente, obstruindo toda a trilha. Ele manteve a posição, apesar de estar tenso. O cavalo, por sua vez, tremia. Resolveu lentamente se achegar, a ponto de começar a sentir o pixé do urso. A primeira coisa que pensou foi que suas costelas seriam esmisgalhadas e seu sonho de achar seu pai ficaria ali. Manteve-se teso. O urso segurou o olhar e elevou o focinho para farejar. O coração do garoto batia mais forte; ameaçava sair pela boca. Entrou em outro plano e avançou pouco mais. De repente o garoto exalou o ar pela boca, colocando pra fora o máximo de volume residual pulmonar, ao mesmo tempo que levantou os braços. O urso quebrou. Virou-se e saiu andando lentamente para o interior da floresta. O menino viu o caminho livre e seguiu mais aliviado. Olhou para trás mais uma vez, de soslaio, mas com receio.

Continuou, mas ainda com a sensação de ameaça. O cavalo permanecia assustado e aparentava estafa. O cheiro amargo do urso permaneceu em suas narinas por toda a caminhada. Ao fim, ele encontra seu pai desnorteado e saem dali. A primeira coisa que fizeram foi ir até um centro religioso para agadecer.

A versão da literatura realista de Waganese realça a filigrana do gesto, principalmente quando há adversidades.  A palavra, por vezes vira razão, por vezes salvação; vira agressão, por vezes fracasso. O gesto não. Não há dúvida que, se o jovem, em apuros, estivesse com uma bereta, ou mesmo um estilingue, lançaria mão da arma para aniquilar aquela ameaça e salvar seu pai. Não tendo arma e não podendo se comunicar com palavras para explicar o seu objetivo, ele lançou mão de gestos ameaçadores. Só assim viu seu caminho aberto.

Não há dúvida que o jovem Franklin Starlight foi sobre-humano e já carregava luz e estrela no próprio nome. Se o comum seria recuar, ele usou a força dos pulmões para mostrar sua grandeza, mesmo sabendo dos riscos de expor suas costelas e, por conseguinte, a respiração parar.

Cirurgiões de trincheira são sobre-humanos? Têm luz e estrela no nome? Nada disso. Apenas aparentem super-homens, a despeito do ofício. Têm seus dias que precisam decidir mais fora do que dentro do campo cirúrgico. Há dias em que precisam explicar a uma família que o câncer está disseminado e não tem como erradicar a doença com as mãos da cirurgia. Por outro lado, existem as decisões acertadas. Todos os dias enfrentam seus inimigos, sejam moinhos de ventos ou um ser humano vestido de urso.