sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Um palimpsesto para “Quase Deuses"

 Rastros deixados pelo tempo me atraem

Raimundo Sodré, escritor acreano, em: Igarapé Piscina

      Que leitor ainda não se viu numa página de livro? Que cinéfilo ainda não se viu contracenando com Fernanda Montenegro?  

Samuel Beckett, escritor irlandês, ao mergulhar em Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, faz conexão visceral – ou xifópaga - com a obra proustiana e acaba emergindo em Proust (1931), um de seus valiosos ensaios. Beckett entregou-se a Proust assim como nos entregamos a Vivien Thomas, em “Quase Deuses”, um filme que marca a medicina e os degraus da academia.

Em prosa despretensiosa, lá pelas ilhargas da praça Batistas Campos, relembrei o filme, de 2004, que relatou a vida e obra de Alfred Blalock, um virtuoso cirurgião estadunidense que empregou Vivien Thomas, um negro sem curso universitário, mas encantado por trabalhar em laboratório. O filme fura a bolha da academia e se emboleta com a questão racial cujo roteiro dá uma tragada na fumaça cinzenta da relação entre um cientista e seu técnico de laboratório. Tal relação beckettiana lembra a de Sergio Lima e o cientista e professor Ronaldo Araújo, pelos barrancos guajarinos.

Araújo, premiado com várias publicações internacionais, ficou conhecido por suas contribuições para medicina tropical e patologia da Amazônia. Ele é especialmente reconhecido nas universidades paraenses e brasileira por seu trabalho sobre arboviroses (transmitida por artrópodes, como mosquitos e carrapatos) entre vários temas.

Foi premiado pelo governo alemão com um microscópio de varredura, dispositivo capaz de gerar imagens de alta resolução. Araújo passaria a produzir material científico de alta qualidade em plena década de 70. O ônus ficou por conta da manutenção permanente do aparelho, e a UFPA não disponibilizava de recursos para mandar buscar técnico da USP, já que era a única universidade no Brasil com dispositivo semelhante. Aquilo passou a ser um trambolho em seu laboratório. Araújo esteve por desistir quando recebeu ligação da reitoria aferindo que existia um jovem funcionário com extrema habilidade em eletrônica, que consertava desde rádio e televisão a ares-condicionados. O professor bateu o telefone.

O funcionário era Sergio Lima. O jovem dava-se ao luxo de encarar grandes desafios em ler esquemas de circuitos eletrônicos. Era um prodigioso funcionário da reitoria. O emprego era só para garantir o apurado, pois o que o sustentava era a sua oficina de eletrônica. Ronaldo Araújo não teve saída. Após um segundo telefonema resolveu apostar.

Placa afixada no centro de estudos do
hospital de Clínicas Gaspar Vianna
 
Lima, por sua vez, lançou-se ao desafio. Traduziu para a sua linguagem todas as equações, até resolver o problema. Araújo deu cambalhotas. Aconteceram mais três vezes; mais cambalhotas. Na quarta, Ronaldo Araújo discou para o reitor e disse que não devolveria o funcionário. A reitoria teve que ouvir, uma vez mais, o telefone desligar. A produção de Araújo ampliou e o jovem passou a compor a disciplina, inclusive preparando lâminas e material didático para aulas, capítulos de livros e artigos científicos.

Certa manhã, Lima estava paginando o Bogliolo (1556 páginas), bíblia da patologia tropical brasileira, quando se deparou com certo autor. Aquilo lhe tomou de supetão. Araújo, ao adentrar à sala, viu Lima com o nariz enterrado no livro. Não conseguiram se disfarçar. Araújo propôs a ele cursar medicina. Sergio Lima estava esperando por isso. Lima entrou no curso de medicina do largo de Santa Luzia aos 32 anos. Foi aluno de Araújo, mas teve que se distanciar do laboratório de Patologia Tropical, hoje um imponente prédio na Generalíssimo, de alta produção científica.

Lima e Araújo em momento social
    Sergio Lima manteve a amizade, mas trabalhou sua carreira clínica. Ronaldo Araújo seguiu venerado, sendo professor de inúmeros médicos paraenses. Ao longo da convivência, suas famílias ficaram muito próximas, tornando-se amigos e confidentes. Araújo morreu por infarto agudo do miocárdio, em 1995, ainda aos 60. Com a notícia, Lima teve um destempero e quase vai. Desde ali começou a adoecer e deixar a vida ao relento.

 Roger Normando é professor de cirurgia, curso de medicina da UFPA.

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