Rastros deixados pelo tempo me atraem
Raimundo Sodré, escritor acreano, em: Igarapé
Piscina
Que leitor ainda não se viu numa página de livro? Que cinéfilo ainda não se viu contracenando com Fernanda Montenegro?
Samuel Beckett, escritor irlandês, ao mergulhar em Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, faz conexão visceral – ou xifópaga - com a obra proustiana e acaba emergindo em Proust (1931), um de seus valiosos ensaios. Beckett entregou-se a Proust assim como nos entregamos a Vivien Thomas, em “Quase Deuses”, um filme que marca a medicina e os degraus da academia.
Em prosa despretensiosa, lá pelas ilhargas da praça Batistas Campos, relembrei o filme, de 2004, que relatou a vida e obra de Alfred Blalock, um virtuoso cirurgião estadunidense que empregou Vivien Thomas, um negro sem curso universitário, mas encantado por trabalhar em laboratório. O filme fura a bolha da academia e se emboleta com a questão racial cujo roteiro dá uma tragada na fumaça cinzenta da relação entre um cientista e seu técnico de laboratório. Tal relação beckettiana lembra a de Sergio Lima e o cientista e professor Ronaldo Araújo, pelos barrancos guajarinos.
Araújo, premiado com várias publicações internacionais, ficou
conhecido por suas contribuições para medicina tropical e patologia da Amazônia.
Ele é especialmente reconhecido nas universidades paraenses e brasileira por
seu trabalho sobre arboviroses (transmitida por artrópodes, como mosquitos e
carrapatos) entre vários temas.
Foi premiado pelo governo alemão com um
microscópio de varredura, dispositivo capaz
de gerar imagens de alta resolução. Araújo passaria a produzir material
científico de alta qualidade em plena década de 70.
O ônus ficou por conta da manutenção permanente do aparelho, e a UFPA não disponibilizava
de recursos para mandar buscar técnico da USP, já que era a única universidade no
Brasil com dispositivo semelhante. Aquilo passou a ser um trambolho em seu
laboratório. Araújo esteve por desistir quando recebeu ligação da reitoria
aferindo que existia um jovem funcionário com extrema habilidade em eletrônica,
que consertava desde rádio e televisão a ares-condicionados. O professor bateu o telefone.
O funcionário era Sergio Lima. O jovem dava-se ao luxo de
encarar grandes desafios em ler esquemas de circuitos eletrônicos. Era um
prodigioso funcionário da reitoria. O emprego era só para garantir o apurado, pois
o que o sustentava era a sua oficina de eletrônica. Ronaldo Araújo não teve
saída. Após um segundo telefonema resolveu apostar.
Placa afixada no centro de estudos do hospital de Clínicas Gaspar Vianna |
Certa manhã, Lima estava paginando o Bogliolo (1556 páginas), bíblia da patologia tropical brasileira, quando se deparou com certo autor. Aquilo lhe tomou de supetão. Araújo, ao adentrar à sala, viu Lima com o nariz enterrado no livro. Não conseguiram se disfarçar. Araújo propôs a ele cursar medicina. Sergio Lima estava esperando por isso. Lima entrou no curso de medicina do largo de Santa Luzia aos 32 anos. Foi aluno de Araújo, mas teve que se distanciar do laboratório de Patologia Tropical, hoje um imponente prédio na Generalíssimo, de alta produção científica.
Lima e Araújo em momento social |
Roger Normando é
professor de cirurgia, curso de medicina da UFPA.
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