sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Como o demônio, o câncer tem olhos reptilianos

      O novaiorquino apaixonou-se pelo Brasil. Morou aqui até albergar em seu peito uma impiedosa dor visceral. Pela Amazônia resguardou na alma um carinho especial, após se aposentar pelo Corpo de Bombeiro de NY. Ao pôr o pijama, Mark teve nova paixão e, de mala e cuia partiu Belém.

Certa vez foi à ilha de Mosqueiro para aproveitar as praias de rio com ondas - que mais parecem mar - e resolveu visitar o Corpo de Bombeiro da vila. Relatou, em conversa amistosa com a corporação, que foi bombeiro militar no fatídico Onze de Setembro. Salvou vidas, mas também adornou esquifes. Guardava carinhosamente em seu coração a memória do tempo de caserna. Os bombeiros da modesta vila se viram diante de um daqueles silenciosos heróis que a história vela. Não faltaram selfies.

 Se no peito guardou nova terra e nova convivência amorosa, no mesmo peito resguardou um câncer, conhecido pelo epônimo de Pancoast (homenagem a Henry Pancoast, radiologista norte-americano que o descreveu). Mas... Quem é, realmente, o câncer? Um demônio de olhos reptilianos a nos ludibriar com sua camuflagem? Ou a despistar-nos com sua pupila em forma de fenda? Seria um tecido biológico impiedoso, repressor e sem remorsos, esperando dar bote? Um militante devorador de existências, que age em nome da diversidade biológica e pela construção de uma natureza equilibrada?

Após sintomas por quatro meses, a doença de Mark já estava sem possibilidade de cura cirúrgica. O tumor envolvia o teto do tórax, vizinho ao pescoço. Estava atochado a nervos importantes, vasos nobres e parte da estrutura óssea da coluna. Resultado: dor lancinante contínua. Precisou ser internado para receber morfina, até se conseguir amenizá-la para realizar a biópsia.

Após confirmação iniciou quimioterapia. Nesse estágio da doença, o oncologista franze a testa, engelha o rosto e cerra a boca. O cirurgião responde com a vista nublada e as têmporas latejantes. É a impotência. Aquele tumor deixara a lâmina do bisturi cega e a família vazia.

Um estudo que mal saiu do forno foi publicado no Portuguese Journal of Cardiac Thoracic and Vascular Surgery, em que tivemos a oportunidade de ser um dos revisores. O grupo lisboeta analisou 11 anos de estudos sobre os cânceres do ápice pulmonar (tumor de Pancoast-Tobias, para não ser injusto).  Chama atenção que a dor no ombro/braço é característica deste tipo de câncer, e pode representar alarme, principalmente se fumante. São pacientes tratados como bursite que, diluído entre ortopedistas e fisioterapeutas, e acabam perdendo a bússola diagnóstica. A imagem poder se confundir com tuberculose em lugares de alta prevalência, como na Amazônia. Chama atenção no artigo, o pequeno números de casos curados. Tradução: em estágio precoce essa dor tem destino: extirpação.

Uma vez definido e abordado precocemente, imuno-quimioterapia e radioterapia devem preceder o tratamento cirúrgico. Nesta abordagem trimodal, os resultados são animadores, como bem ilustra o artigo, mas não foi esse o roteiro daquele salva-vidas, que lidava com a morte iminente todos os dias, e tinha frações de minutos para decidir e resgatar tantas outras. Sem querer que Mark fosse premiado pela imortalidade, emudecemo-nos diante desse redemoinho, cujo demo circula ora dentro, ora fora da palavra; ora fora, ora dentro do alcance cirúrgico.

Na pugna do pântano, entre o homem e o anti-homem, os olhos do réptil saem da forma de fenda e se transmutam nas espirais de Watson e Crick, a boiar em busca de sua próxima vítima. Esse DNA ruidoso, inquieto, sortido e palpitante se apresentará em pouco tempo e o refúgio onde reina a vida, dá fim a mais um modesto heroi das torres gêmeas.

        Resta-nos, à beira do pântano, onde girassóis, ao pôr do sol douram suas pétalas para alumiar os pinceis de Van Gogh, que as invocações às retinas da ciência deem as mãos e formem conexões, por fim, para pôr fim a essas anomalias que carcomem dolorosamente a natureza dos homens  humanos, demasiadamente humanos.

  1. Moita CP, Figueiredo C, Cruz Z, e cols. Pancoast tumors: 11-year single-centre experience. Port J Card Thorac Vasc Surg. Vol. 31 No. 3 (2024): Jul-Sep.  2024.
  2. Teixeira JP. Concerning the Pancoast tumor: what is the superior pulmonary sulcus? Ann Thorac Surg. 1983 Jun;35(6):577-8.
  3. Spengler DM, Kirsh MM, Kaufer H.J Orthopaedic aspects and early diagnosis of superior sulcus tumor of lung (Pancoast). Bone Joint Surg Am. 1973 Dec;55(8):1645-50.
  • Roger Normando. Professor de Cirurgia Torácica, curso medicina da UFPA.
  • Texto no prelo a ser publicado no Jornal da SBCT (Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica)

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