Roger Normando
Eu vivo sozinha, ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá!
Se algum dentre os homens de mim não se esconde:
— "Tu és", me responde,
"Tu és Marabá!"Gonçalves Dias (1823-1864), em: “Marabá”.
Eu vivo sozinha, ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá!
Se algum dentre os homens de mim não se esconde:
— "Tu és", me responde,
"Tu és Marabá!"Gonçalves Dias (1823-1864), em: “Marabá”.
Foi na Marabá dos tempos de guerrilha, a primeira vez que entrei em cinema. Tinha uns seis anos de idade - por aí -, e fui pendurado no dedo indicador de meu pai. Na porta havia enorme um estacionamento de bicicletas, disso não esqueço. A película se chamava “um diamante e cinco balas” e nela um figurante especial: meu pai. Ainda ferve na memória tal lembrança, tal como “pira se esconde”. Ele fazia o papel de um fanfarrão e só vivia embriagado. Numa cena - que bem lembro - ele sacava seu “colt” da cintura e dava alguns tiros para o teto, acertando as lâmpadas acesas. O estampido reverbera até hoje nos meus tímpanos.
Daí para a realidade pouca coisa mudava na desvairada marabá dos tempos de ditadura. No reveillion, da porta de casa, papai dava tiros para o alto junto com vários amigos, para comemorar a virada. Entre eles, bem lembro de nomes como Vavá Mutran, Miguel Pernambuco e Paulo Noleto. Esta imagem batráquia insiste em impregnar minha memória. Reaviva, vez por outra, quando avisto por Belém carros com dizeres: FILHOS DE MARABÁ. São letras garrafais com o desenho de dois revólveres em direções opostas. Na essência, os decalques equivalem a uma tela de 50 polegadas dentro de um cubículo. Tamanho exato da insensatez do autor.
Seria, por falta de criatividade, cópia estéril da logomarca dos roqueiros do Guns N' Roses? Este tipo de apologia à violência, pertencente à minoria dos marabaenses, fritou meus nervos quando me deparei com uma camionete estacionada no Hospital Metropolitano, em Belém, com a tal esquisitice. Diga-se de passagem, aquele é um nosocômio voltado para cuidar de vítimas da violência, daí o paradoxo estupefaciente.
Disfarçadamente perguntei ao porteiro a quem pertencia o “possante”. “Doutor!”, respondeu sem delonga, “É de um jovem médico por nome de...”. Perguntei: com certeza é de um médico? Ele respondeu na bucha: “Sim, mas começou agora a trabalhar neste hospital”. Seja lá quem, era um trabalhador das trincheiras do trauma, como costumo dizer aos que se dedicam a recuperar as vítimas da violência. Além disso, a imagem perturbante transporta Marabá para um faroeste lendário.
A relação entre aqueles marabaenses que conheci no avant-première, crias do cineasta Líbero Luxardo, com os FILHOS de hoje, parece perpetuada como se fora fenômeno hereditário ou representasse ejaculação de masculinidade pela veia do punho armado, como fizera meu pai-ator naquela encenação.
Mas num caminho inverso encontrei “OS VERDADEIROS FILHOS DE MARABÁ”. Era certa manhã de sábado quando avistei a pequena estampa num carro logo a minha frente (Humaitá com Almirante) sem conter a mesma soberba dos FILHOS... Nele, as rosas substituíam as armas, como uma rima anti-rebeldia. Aliviado fiquei. Estava exposta a outra metade da missão do “Guns”.
O símbolo dos roqueiros faz-nos crer na possibilidade, ainda que onírica, da hibridização entre o passado e o presente num formato único e inteligente. Para isso precisam os FILHOS saber que a origem do nome não vem de “Mara-bala”. A alcunha nasceu, de fato, da poesia de Gonçalves Dias, na epígrafe, que inspirou o fundador e também maranhense Francisco Coelho. Ele afixou na porta de sua vendinha a palavra “Marabá” para relembrar seu cordão umbilical e enriquecer com a venda de cauchos. A partir daí a cidade nasce e prospera célere.
Dos cauchos às pepitas de Serra Pelada, Marabá mais vale do que tantos FILHOS pensam. Lembremos aos VERDADEIROS FILHOS que a visibilidade do belo não nasce de uma imagética pirateada, medieval e servil, mas de uma irrefutável história de desbravamento e poesia, a ser contada por filhos altivos de uma cidade muito próspera de se tornar a capital dos sonhos de Francisco Coelho.
* mais uma bem vinda colaboração de Roger Normando, que este poster recebe por e-mail e publica. Com nossos agradecimentos.
10 comentários:
Olá Normando.
Esse adesivo é motivo de vergonha para os idiotas que emporcalham a imagem do bom povo de Marabá.
Abomino qualquer um que o use. Seu relato de um médico o estampa em seu carro é causa de tristeza e decepção.
A Câmara Municipal de Marabá patrocinou há alguns anos atrás uma campanha para banir essa porcaria, mas, pelo visto, a demência de alguns prejudica a lucidez da maioria.
Parabéns pelo texto.
Ah! Meu pai foi um dos patrocinadores do filme Um Diamante e Sete Balas, de Libero Luxardo.
O filme é sucesso até hoje na memória dos mais antigos de Marabá e Belém.
Roger, espero que sua postagem possa desencadear a retirada ou troca de muitos adesivos bélicos.
Um abraço e volte sempre!
PS: Val, você já pensou que um simples adesivo usado corretamente (ou incorretamente) pelo marketing político contrário ao Estado de Carajás pode mudar o resultado de um plebiscito?
Val.
É verdade. O filme foi patrocinado por grupo de empresários de Marabá e representa uma das mais belas obras cinematográficas do maior cieneasta da Amazonia. Mas fiquei preocupado se eram sete ou cinco balas, mas na verdade são cinco mesmo. Também solicitei a um diretor de um dos jornais de Marabá para publicar o texto. Isso certamente ajudará a varrermos essa tela de 50 polegadas.
Scylla, Acho que não, mas em politica tudo é possível.
Marabá é o 11o. município mais violento do Brasil, com maior peso na casuística de homcídios dolosos. É preciso reconhecer que a violência no sul do Pará não começou hoje, nem acaba no adesivo marabense que faz a apologia imbecil das armas.
A trajetória nefasta da violência no sul do Pará tem sua grande raiz no passado de fronteira capitalista, cenário favorável a capangagem; no secular isolamento geográfico só rompido com a Belém-Brasília de JK; no empedernido coronelismo e por suas alianças locais e metropolitanas para manter manu militari, no Império e na República, a conquista do latifúndio, o registro de seus limites e riquezas naturais até onde a vista alcançasse; a criação de uma ambiência árida a autoridade institucional e de enfraquecimento de direitos pelo recebimento de benesses de cabresto e pela imposição de relações violentas no trabalho, do qual foram vítimas a princípio indio, depois o cabloco, seguido das levas de nordestinos que antecederam as famílias sulistas para lá transplantadas pela Ditadura Militar na década de 70.
Portanto, o texto do Roger expõe as divisões de uma cidade fraturada por tensões sociais seculares, que, sugestivamente, toma no batismo o nome de uma índia, também ela vítima da violência colonizatória e do preconceito do seus. Ainda bem que nos restam a esperança de que as rosas nesse caso falam tanto quanto as armas.
Liguei pro meu pai Normando e o lapso foi meu.
São cinco balas mesmo.
Scylla o modelo do adesivo que usamos na campanha está disponível para visualização em www.estadodocarajas.com.br
Val. Acho que duas foram balas perdidas...eheheh!
Itajaí!
Você fez um belo resumo da raiz política e social da violência do SUL do Pará. Foi muito interessante. Vou colocar este seu texto no bolso, se me permitires. Também devo dizer-lhe que o DIAMANTE, de verdade, é tudo o que você escreveu (socio-politicamente) e que Luxardo usou como metáfora. Como havia muitos goianos em busca de diamantes, o Luxardo usou este diapasão para justificar toda a sua encenação e porque não, a realidade daquele momeento. Hoje poderia o DIAMANTE poderia ser trocado por SERRA PELADA, nos anos 80, ou mesmo BELO MONTE dos tempos modernos. E olha que tem uma índia na história de Belo Monte, lembra? Acho que seu nome é Tuiá. Portanto, Luxardo previu tudo isso com essa bela metáfora. Que interessante.
Roger Normando
Roger, meu amigo, fique à vontade para usar o texto. Apenas peço-lhe o favor de corrigir os meus cochilos gramaticais.
Grande abraço.
Esse Estado, cara, jaz.
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