Vila Ceará - Salvaterra, Marajó, 2001:
panelas de barro sendo feitas por moradores, com a ajuda de Oliva e Mariella. Agora, essas panelas viraram "vasilhames cerâmicos arqueológicos" para o Iphan.
Fotos: Oliva Van Eeghem Coutinho
Brasil continua surreal e não adianta a nossa pose de país de primeiro ranking quando as instituições públicas refletem um nível de amadorismo surreal. O que relato aqui está sendo vivido por minha esposa, Oliva, tendo como protagonista principal uma instituição que nós, até então, considerávamos séria e comprometida com o interesse maior da preservação da memória, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. Em agosto passado, Edinea da Conecição dos Santos, a senhora que se cuida da nossa casa e pousada na vila de Joanes, Marajó, recebeu um comunicado assinado pela superintendente do Iphan no Pará, Maria Dorotéa de Lima. Citando "a legislação maior pertinente à proteção do patrimônio arqueológico, Lei Federal n° 3.924/1961 e a Constituição Federal arts. 23, 215 e 216 cujas cópias seguem em anexo", a superintende aponta que, durante vistoria realizada pelo Iphan nas ruínas da Vila de Joanes, identificou na pousada "o uso de vasilhames cerâmicos arqueológicos como utilitários no local". Em seguida, a superintendente do Iphan avisa que, "para coibir tal procedimento", solicita "a retirada deste material de locais de constante circulação de pessoas para não sujeitá-lo a quebras ou aplicações indevidas de uso". E ainda alerta: "a compra e venda de objetos arqueológicos é crime federal e não deve ser praticada ou estimulada. Portanto, orientamos para que ofertas nesse sentidos sejam direcionadas ao Iphan, ou que os objetos sejam doados à centros de pesquisas ou museus, onde serão tratados e identificados, bem como ficarão acessíveis a uma maior quantidade de pessoas". Bem, se doarmos esses três vasilhames para um instituição de pesquisa científica, a conclusão será: artefatos cerâmicos, datados de 2001 AD, da fase belgo-argentina-marajoara iniciada pela presença de Oliva Van Eeghem Coutinho, belga de origem flamenga, e da argentina Mariella Boschetti, na ilha do Marajó.
A origem dos vasilhames
Reproduzo aqui, a carta que Oliva enviou na semana passada à "super-intendente" Maria Dorotéa de Lima:
En 2001, eu soube que uma família da Vila Ceará – localidade entre Joanes e a sede do município de Salvaterra – fazia e usava ainda panelas cerâmicas segundo a tradição dos seus antepassados.
Como eu mesma tinha seguido uma formação de ceramista, resolvi contatar esse grupo de moradores. Passei alguns dias, em companhia de uma amiga argentina, artista plástica e também ceramista, Mariella Boschetti,junto à comunidade da Vila Ceará. Com a famìlia, fomos ao mangue, buscamos o barro, acompanhamos e a ajudamos na confecção desse tipo de panela que a família ainda usava para cozinhar e também para preparar a tiborna – água ardente de mandioca. Fizemos fotos e trocamos conhecimentos sobre as técnicas cerâmicas das pessoas da família, e depois de terminar o processo dividimos entre nós as panalas. Assim surgiram o que Vossa Senhoria identifica como “vasilhames cerâmicos arqueológicos”. Eu mesma nunca me arrisquei a utilizar as panelas para cozinhar algo porque vi que não resultaram fortes. Preferi utilizá-las para depósito de guarda-chuvas molhados e sinalização de um desnível no chão, como peça decorativa e como vasilha de lixo de mesa. Em anexo, envio as poucas fotos que guardei do trabalho coletivo com a família da Vila Ceará, em 2001.
Na carta, Oliva ainda escreve:
O ofício de Vossa Senhoria nos causou espanto absoluto porque:
1) não é de agora que Vossa Senhoria a e os técnicos do Iphan vão à Joanes e passam pela Pousada. Lembro das primeiras escavações da fase mais recente do Projeto de preservação do sítio arqueológico, que documentei com fotos em fevereiro de 2006. E eu garanto: esses vasilhames estavam lá então, nos mesmos locais que Vossa Senhoria os viu somente em julho deste ano; 2) Vossa Senhoria nos conhece e com certeza deve se lembrar da luta que nós travamos em Joanes pela preservação do Patrimônio Histórico – embate esse que nos causou situações de confronto com as forças mais obscuras da Vila e que, em determinados momentos nos colocou em risco de integridade física tanto a mim quanto ao meu marido, Edvan Coutinho, então presidente da Associação de Moradores de Joanes entre 2005 e 2007. Eu poderia entrar num embate com o Iphan sobre esses vasilhames. Poderia pedir um laudo técnico que esclarecesse a origem, datação e fase arqueológica
a qual pertencem. Mas, não o farei porque acho que seria desperdício de tempo e dinheiro público.
Faço, então, o relato sobre a origem dos “vasilhames cerâmicos arqueológicos”,
relato este que, se Vossa senhoria tivesse nos contatado, antes da comunicação enviada, ouviria e assim poderia evitar o constrangimento atual que, lamento, coloca em dúvida a competência técnica do Iphan, representado, infelizmente, por Vossa Senhoria.
Lembrei-me do personagem de Jô Soares, Sebastião, o último exilado, que telefonava da França no final dos anos 70 e ouvia da mulher, Madalena, relatos surreais do Brasil dos tempos da Abertura e dizia, incrédulo: "Madá, tu não queres que eu volte!!! Chose de loc!!!"