quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Israel e Palestina



Desde sempre houve conflito de terra por aquelas bandas. Todos sabiam que por ali tinha gente debaixo daquele solo servindo de adubo. Era comum aparecer grileiro de terra nova. Alguns, é certo, amanheciam com a boca cheia de formigas, mas outros, por outro lado, é quem mandavam gente pro campo santo.
Vez por outra a gente ouvia barulho de tiro varando, ecoando e sumindo mata adentro. Dava medo. Ficávamos imaginando, quem era o dono do gatilho ou, quem era o alvo. Às vezes era só caçador atrás de alguma caça. Só que tiro no meio da mata tirava mesmo o sossego da gente.
Não bastasse o castigo do medo, fazia tempo que não caía chuva qualquer. A terra, apesar de aguardar o tão esperado plantio, andava triste por falta d’água. Não havia promessa que resultasse em milagre. Estava há tempos esturricada e o sol cada vez mais escaldante.
Uns diziam que eram as queimadas que mudavam e atrasavam mais e mais a chegada da chuva e faziam daquele pedaço de chão um verdadeiro inferno de tão quente. Porém, o pior era mesmo a briga daquelas duas famílias.
A discórdia era antiga e a cerca que separava as duas terras também. Ninguém tinha registro na lembrança de como aquela rixa começou. Só se sabia que família não suportava família.
 Havia conversa que era coisa de amor: diziam que o velho finado de lá roubou a filha do velho finado de cá. Outros diziam que era coisa de terra mesmo. Até diziam que a cerca já foi puxada para cá e para lá umas quantas vezes, e com isso, levando vidas dos de lá e dos de cá.
Teve até deputado da capital, em tempo de eleição, tentando fazer acordo. Apesar disso, no primeiro encontro teve briga. Só não teve tiro porque o deputado tinha trazido gente da TV. O pai da família de lá, com os olhos fumegando, mirava bufando para o pai da família de cá, que retribuía do mesmo modo. Quase se comeram ali mesmo, em frente a TV. Depois que o deputado foi embora, voltou o medo de andar pela rua. Voltou a sina de morte das famílias. Morria um daqui, a culpa era dos de lá. Morria um de lá, pagavam os daqui.
Os anos não davam trégua e as desavenças eram constantes.  Chegou ano de apagarem oito de cada lado. Aquele foi ano difícil. Não se tinha qualquer tipo de sossego, nem na vila. Fazer procura de moça-dama a gente podia ir. Não podia se expor demais, ou, era certo, pegava um pelas costas vindo lá não sei de onde.
Aquele ano demorou a passar. Até Juventino, que tinha na época pouco mais de cinco anos foi surpreendido usando a Doze do pai. O menino nem sabia o que se passava e já cultivava raiva danada dos de lá. O pai foi descobridor a tempo. Viu quando o pirralho foi saindo pela porta da cozinha, tamanha quatro horas da manhã, querendo pular a cerca e dar fim em todo mundo dos de lá.
O menino até que era bem valente. Porém o que motivou aquele pirralho foi a saudade do mano Bento. Bento tinha se descuidado no bar do Raimundinho, ficando de costas para a rua. Não deu nem tempo de reagir. Pegou só um da Doze e caiu de peito na mesa, em cima dos copos e garrafas. O menino Juventino foi lá ver o irmão. Chorou muito agarrado no braço de Bento. Deu foi muita dó de ver aquela cena.
Coragem mesmo teve Maria Clara, na festa de 15 anos. Ganhou do pai um "Trinta-e-dois" todo niquelado. A mãe achou ruim. Apesar disso, o pai disse que agora a menina-moça precisa aprender a se cuidar. Maria Clara ficou foi orgulhosa - vaidosa como se tivesse ganhado corte novo de chita ou pulseira de prata falsa. Toda amiga, ou amigo que chegasse ela mostrava a “peça” com vaidade e petulância.
Não tardou para chegar a noticia que Maria Clara tinha feito “dois furos”, com seu "Trinta-e-dois", na testa de Guilherme, filho dos de lá. Disse à menina que ele atirou primeiro. O tempo fechou na vila, os irmãos de Guilherme, diziam para quem quisesse ouvir que iam acabar com Maria Clara, mas, só depois de se servirem da moça. E olha que eram 14 machos. Porém, o que assustava a gente era que quase sempre as promessas ditas eram cumpridas.
Um dia, Maria Clara se descuidou. Foi fechar a porteira sem prestar atenção. Os três irmãos mais novos de Guilherme, Brócoió, Cabecinha e Zé Pungué, agarraram a moça e a levaram para o mato. Judiaram muito dela. A moça ficou com a cara toda inchada. Era cataplasma em cima de cataplasma. Muito depois é que ela foi voltando ao normal, era moça bonita. Ficou, depois disso, com olhar perdido, o tempo todo apertado como se mirasse alvo para alguém. Não falou mais palavra.
Os três irmãos viviam dizendo num tom de “boca grande”, que fizeram de tudo e muito mais, não mataram ela não, por que queriam deixar a marca para o pai dela ver. Diziam que o velho ia viver olhando para ela morta em vida. Quando acabavam de falar, caiam numa gargalhada estridente. Coisa ruim de ouvir.
 Maria Clara, numa madrugada, sumiu de casa. Foi lá para o descampado, na casa das moças-damas. Sabia de alguma maneira que iria encontrar os três que se aproveitaram dela. Zé pungué pegou logo um do "Trinta-e-dois" niquelado na boca e caiu de cara no chão. Brócoió levou dois na testa, igualzinho a Guilherme. Cabecinha, esse pegou dois balaços entre as pernas, que foi arrancando as “coisas”. Ficou sem os “documentos”. Ficou ali sangrando, gritando com as mãos entre as pernas, tentando segurar o nada que restou. Dizem que ela não deu fim nele por que queria também deixar sua marca para que a pai da família de lá vivesse olhando ele morto em vida.
Depois desse acontecido passou tempos sem ter vingança ou troça. Foi tempo de descanso e quase sossego para a vila. Não se ouvia falar em ameaças. Até tiros pela mata a gente deixou de se assustar.
A cerca, que separava as fazendas, era tão grande que chegava até no riacho fino. Apesar disso, não parava ali não, seguia mesmo por dentro d’água, e só acabava no limite das terras de Coronel Lóris, passando o barranco seco, quase dez léguas depois do Riacho Fino.
Foi ali na beira do Riacho Fino que Israel viu Palestina pela primeira vez. Ela nem assustou vendo aquele menino de lá, dividindo a água do mesmo Riacho, distante apenas cinco braças dela pela cerca. Continuou dando banho na boneca, enquanto ele lavava aquela bola velha, afundava a bola e soltava. A bola, cheia de ar, dava um pulo para fora da água e ele ficava rindo - gargalhando sozinho.
Ficou fazendo aquilo várias vezes, até chamar a atenção. Depois ficava olhando e rindo. Ela gostou do riso do menino e riu também. Todo final de tarde passou a ser sagrado: lá ia Israel, com algum tipo de brinquedo, lá pros lados do Riacho Fino. Israel sempre inventava alguma para Palestina rir. Ele gostava também do riso da menina. Passaram a se encontrar quase todo fim de tarde por tempos a fio.
No meio do caos, uma simpatia, uma amizade, um amor pequeno surgiu. As famílias sequer sonhavam com coisa dessa. Nunca um filho daqui podia gostar de um filho de lá.
O tempo cresceu lentamente, trouxe barba para Israel e peito para Palestina. Encontravam-se escondidos na velha cerca todo fim de tarde.
Difícil foi quando Palestina falou da barriga. Disseram que tinha que casar. Mais difícil ainda quando ela contou quem era o pai. O céu quase desabou. As famílias sentiram gosto de sangue na boca. Ficaram rangendo os dentes por um bom tempo. Contudo, quando a cria passou de colo em colo alguma coisa mudou. Ninguém acreditava que isso um dia podia acontecer. Todo o mundo e o mundo todo sorriram. O produto do amor de Israel e Palestina uniu as famílias. O ódio transformou-se em amor.
Da união de Israel e Palestina nasceu uma linda menina, que passou a ser o xodó das duas famílias. Esse anjo quebrou todos os rancores e amansou todas as dores. Depois disso, os de lá e os de cá, começaram a se olhar de maneira diferente, tolerantes, quase amorosos.
No domingo do batizado, abriram dez metros de cerca e armaram a mesa do almoço na linha divisória entre as duas terras. Foi bonito ver aquela gente aquietar, foi bonito ver aquelas duas famílias se abraçarem.
Teve leitão assado e muito vinho. Nunca mais houve qualquer tipo de atrito. As duas fazendas se uniram e fizeram uma só.
Da terra antes esturricada e seca, por causa da falta de chuva, agora, via-se sumir no horizonte, para além do Riacho Fino, aquele imenso parreiral, onde são colhidas uvas de primeira qualidade, que produz um vinho com bouquet incomparável.
A menina, que uniu as famílias, recebeu o nome de Maria da Paz. A fazenda, que acolhe agora as duas famílias, recebeu o nome de... Terra Santa.

Texto premiado de Dudu Neves (Escritor e compositor paraense)

10 comentários:

Erika Morhy disse...

Que boa dica de texto, Roger. Que todos nos embriaguemos de... Terra Santa. Tim-tim!

Marcão. disse...

Premiados somos nós, por podermos ler um texto destes. meu parceiro de muitas coisas Dudu Neves, com que tive o privilégio de dividir algumas composições musicais. aproveito para brindar, Tim-Tim.

Unknown disse...

Muito bonito. Até parece uma história real lá das bandas do Oriente!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Erika, Dudu tem uma caneta que me fascina. Ele tem outros textos que soltarei aqui na medida que, discussões como a do antissemitismo, passeie por este blog.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

O ponto mais forte de Dudu, acreditem, não é a prosa, e sim a poesia com métrica musical. Já ganhou alguns prêmios em festivais e tem composições que rondam nossas FM em vozes paraenses maravilhosas. O Marcão é parceiro nesse rumo, eu tenho preferido o rumo da prosa, com dois dedos e mais.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Elias,
para você, profundo conhecedor da História das Religiões, esse texto cai como luva para quem vai ensinar. Divulgue pelo Maranhão, mas não deixe o Urubu do Sarney pegar. Ele vai querer dizer que é dele.

Unknown disse...


A miscigenação é a chave da evolução da humanidade . O Brasil ecumênico e miscigenado é prova e ícone desta utopia. Que as crianças olhem mais para a outra margem dos rios .

Walter Pinto

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Walter, eu endosso...

Abel Sidney disse...

Para mim um imenso achado a prosa poética e bem vestida de palavras essa do Dudu Neves, a quem já fui saber quem é e gostei do que soube.

Roger tem andado em muita boa companhia aí por Belém!!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Abel, Dudu deverá mudar de Cidade. A Macapá será seu destino, por convite de uma amigo. Como tenho ido lá uma vez por mês, decerto terei, ainda por algum tempo, a companhia desse escriba e amigo. Macapá passa a ser sua Macondo...