Entrevista com Ronaldo Lemos,
Fundador e diretor do centro de Tecnologia e Sociedade de Direito da FGV.
Internet: mundo infinito ou condomínio fechado?
Em 2001, Manuel Castells (no livro A galáxia da internet) fez uma análise interessante sobre o uso da web e os efeitos na cultura e na sociedade. Conectividade não resolveria os problemas da humanidade nem seria a derrocada da vida social. Como fazer uma análise adequada e profunda do tema, considerando-se esgarçamento das relações, solidão, doenças psicossomáticas versus novas sociabilidades, relações mais horizontais, compartilhamento, cultura livre?
O Castells é ótimo, enxergou a internet pela perspectiva de rede e das ciências sociais, o que trouxe reflexões para o ativismo e o papel da internet em mudanças no sistema político. Mas tem um pensamento que eu acho particularmente interessante, que é do McLuhan [Marshall McLuhan foi um teórico da comunicação, que introduziu o conceito de aldeia global para caracterizar a sociedade contemporânea interligada]. Ele lembra que estamos mergulhados em um universo de mídia. Ou seja, toda vez que há uma mídia nova, isso, inevitavelmente, leva a mudanças de vida. A internet, que é a mídia de todas as mídias em toda sua complexidade, flexibilidade e dinamismo, tem um impacto gigantesco na vida de todos.
Sem ser ufanista ou catastrofista
Nenhuma das duas coisas. McLuhan enfatizava o caráter humanista das mídias. Achava que elas extrapolariam as possibilidades humanas, amplificariam os sentidos, nossa capacidade de pensar e nossa memória. Ele via como que uma expansão do humano se materializando naquelas mídias. Eu concordo, mas não sou tão otimista. Ele considerava as mídias um vórtice em que os seres humanos seriam envolvidos e saberiam compreender. Mas hoje a capacidade desse vórtice extrapolou. É tanta informação, dados e coisas acontecendo que nós não temos mais a capacidade de processar e lidar com tudo isso.
Precisamos cada vez mais de ferramentas e é a própria mídia que analisa a mídia. Existem várias estratégias, as curadorias sociais e as curadorias eletrônicas por algoritmo, que é o que o Google faz. O que eu acho importante é que o McLuhan pensava que o homem sempre seria capaz de dar conta do vórtice, mas estamos chegando no momento em que não dá mais.
E as curadorias ainda são feitas pelas grandes corporações, reproduzindo o modelo concentrador do mundo real, não é?
É informação demais e as pessoas não têm tempo para tanto, estão cansadas. Quem fica imerso e conectado precisa de filtros. Hoje, para a maioria das pessoas, os filtros são estes: de um lado o Google [que usa algoritmos matemáticos para descobrir o que é importante e o que não é] e de outro o Facebook, que usa algoritmos, mas também as informações de suas relações sociais. É curioso, porque ele devolve para você o mundo à sua imagem e semelhança, e entrega o que você mais preza, que é você mesmo.
O produto do Face é ser um espelho do usuário, é mergulhar você em uma bolha. Tem gente dizendo que isso aumenta o radicalismo, porque confirma posições e você acaba convivendo apenas com quem pensa da mesma maneira, perde o convívio com o diferente, com o acaso e o contraditório. E isso já é um problema geracional – quem nasceu depois de 1976 tem dificuldade de conviver com contradições e frustrações, as características da geração Y, a geração do ego. Pensando em tudo isso, a promessa original da internet, que é a diversidade, ausência de fronteiras e pluralidade, não se concretizou.
O diagnóstico então é sombrio, porque existe uma concentração nessas ferramentas que determinam o que será a vida social.
Antes um artista importante lançava um disco e as pessoas faziam fila para comprar o disco. Você estava prezando o conteúdo. Hoje as pessoas fazem fila para comprar o iPhone ou o novo aparelho. Não é o artista que importa mais, é o meio que se tornou a estrela, em detrimento do conteúdo. A mídia interessa mais que o conteúdo. Aliás, o conteúdo é X, pode ser qualquer coisa e tem uma validade mínima. Tudo está virando a lógica da moda, você tem alguns momentos de atenção, popularização, começa a decair, até que fica esquecido. Isso se aplica à música, o artista do verão que depois desaparece, e também à informação.
O ciclo das notícias está se acelerando, a notícia do dia enquanto a gente conversa aqui é essa tragédia nos EUA em que várias crianças foram assassinadas em uma escola, e o ciclo desses dias será essa tragédia, mas daqui a três quatro dias o ciclo se renova e essa notícia perdeu a relevância e, muitas vezes, nem a memória dela será preservada. A memória em tempos de internet é para mim um tema muito importante.
O tema desta edição é “menos é mais”. Quais “menos” necessários enxerga em sua seara (tecnologia e sociedade)? Menos conectividade, por exemplo, é necessário?
Estamos caminhando para um momento em que a desconexão será um luxo. Hoje a conexão ainda é um luxo, pensando que, dos 7 bilhões de habitantes da Terra, apenas 30% têm acesso à internet. Pensando a longo prazo, e para os que já estão conectados, o fato é que vai ser cada vez mais difícil se desconectar. A internet vai se misturar ao mundo físico. Hoje o acesso é mediado pelo celular, mas estamos caminhando para “a internet das coisas”, em que a rede estará em todos os lugares. Você estará cercado por telas sensíveis ao toque, à voz, à sua movimentação, e o mundo inteiro será um grande aparelho de interação.
Nessa perspectiva, a desconexão será rara e as pessoas vão querer se desconectar em algum momento, porque o equilíbrio é necessário. Ficar conectado o dia inteiro e ser bombardeado de informação gera uma sobrecarga cognitiva. Não sou fatalista, acho que o cérebro tem possibilidades imensas para se adaptar, mas desconectar faz bem. Então, abrir mão da sobrecarga e valorizar outro ritmo é positivo para a inteligência e para o bem-estar.
Quais redes sociais manter e de quais podemos “nos livrar”, em nome da sanidade?
Bem, o Facebook é a praça do shopping, não da cidade. Isso porque ele é privado, com regras próprias, ele diz o que pode e o que não pode e isso não é decidido de maneira livre e democrática. E tem uma frase que um amigo costuma dizer de que eu gosto muito: o Facebook é o condomínio fechado tomando conta da cidade. Esse é o nosso dilema, estamos trocando a cidade ampla, descentralizada, livre, caótica (que é a internet), que está perdendo espaço e virando um grande condomínio fechado, com as ruas todas arborizadas padronizadas.
Podemos pensar então que a internet está subaproveitada?
O potencial dela é quase ilimitado. Pense que a internet é uma infraestrutura em que tudo o que você constrói no topo – foto, vídeo, filme, qualquer aplicação – vai rodar e na base pode ser acessada por qualquer aparelho. Então ela tem formato de ampulheta, roda qualquer aplicação, no topo, e, embaixo, qualquer aparelho. Com qualquer coisa que plugar você terá acesso a todo tipo de suporte que ela pode exibir. Esse caráter de abertura de conteúdos e acesso tem que ser preservado. O problema é quando sites como Facebook, Google e mesmo governos tentam restringir essa estrutura de ampulheta.
O senhor disse em artigo na Folha de S.Paulo que, cedo ou tarde, a educação será revolucionada pela tecnologia. Que o material didático baseado no texto é um descompasso com o mundo multimídia. Mas a inserção de tecnologia nas escolas resolveria estatísticas como a que aponta o Ibope, de que 38% dos egressos do ensino superior no Brasil são analfabetos funcionais, ou seja, mais de um terço dos que completam a faculdade não são plenamente alfabetizados?
A tecnologia sozinha não resolve esse problema. É preciso enxergá-la como integrante de um sistema mais complexo: professores, qualidade do material didático, programa pedagógico bem pensado. Mas a tecnologia é uma ferramenta extraordinária. Chamo atenção para o paradoxo que vivemos. Os alunos convivem com um ritmo e uma intensidade de informações altíssimos fora da escola e, quando chega lá, essa velocidade e quantidade caem drasticamente. A escola se torna um ambiente frustrante do ponto de vista da informação. Se São Tomás de Aquino se materializasse no mundo de hoje, ele se surpreenderia com hospitais, com as estradas, automóveis, mas não se surpreenderia com uma escola.
Ela está no mesmo modelo da Idade Média, que é um professor na frente e um monte de alunos ouvindo. Para a educação é fundamental mudar a dinâmica de como o conhecimento é gerado. A escola precisa ser participativa, os alunos precisam aprender a colaborar uns com os outros.
Hoje o modelo educacional é unidirecional, em que o aluno ouve e o professor fala. Isso ignora que o aluno também é fonte de informação. E essa troca de experiências e informações e visões de mundo tem que ser provocada no ambiente escolar. A escola tem o papel de soltar a força e todo o conhecimento entre os alunos e fazer com que eles colaborem uns com os outros. E a tecnologia é excelente ferramenta catalisadora da colaboração.
Aqui no Rio tem uma experiência bacana, a da Universidade das Quebradas, baseada na ecologia dos saberes, que é pensar a educação pela experiência de todos, unindo prática e a ciência.
O projeto do Gilberto Dimenstein do Bairro Escola é muito interessante. O bairro em que a escola está inserida é usado como oportunidade educacional. Por exemplo, se tem uma oficina mecânica, o mecânico pode compartilhar o saber dele com as pessoas, e o dono da padaria compartilha a informação financeira com os alunos.
O que a tecnologia permite é trazer tudo isso sem necessidade de ir fisicamente até lá, construir as pontes e manter os canais abertos, sem que os alunos tenham que sair com a professora naquela operação que nem sempre é simples. Você pode criar buscadores, fazer videoconferências, abrir janelas para o mundo ou o bairro desde a sala de aula.
A respeito do Marco Civil da Internet, o que está em jogo, por que a votação está parada no Congresso e quais são os ganhos para os cidadãos?
A FGV participou do processo desde o início, em 2007, quando escrevemos um artigo dizendo que a internet deveria ser regulamentada civilmente. Tivemos várias adesões e começou um movimento nessa direção, culminando no projeto de lei do Marco Civil, que ficou um ano e meio em consulta pública e resultou em um documento muito bem feito e sofisticado.
O Executivo abraçou o projeto e o enviou ao Congresso, mas agora ele está enfrentando dificuldades e lobbies. Mas, do ponto de vista do interesse público, ele é importantíssimo. Garante que a internet permaneça internet, ou seja, com os princípios de abertura, decentralidade, isonomia, amplo acesso. Preserva a privacidade, tem disposições muito específicas assegurando que o que está na Constituição precisa estar garantido também na internet. Defende também a liberdade de expressão e incentiva e protege a inovação.
Hoje, quem está barrando o projeto no Congresso são as grandes empresas de telecomunicações, que pretendem transformar a internet em um serviço multimídia.
Este é um debate global, mas tivemos uma vitória recente. [A conferência de uma agência da ONU, realizada em] Dubai disse que qualquer linguagem no tratado internacional de telecomunicações contra a neutralidade da rede deve ser excluída. Ou seja, a rede é neutra e livre. Aqui no Brasil, nossas chances resvalam no sistema político. O que assistimos hoje é que o Marco Civil está pronto para ser votado e o que sobrou foi a questão política.
Vemos de forma clara os partidos comprometidos com o interesse público e os partidos comprometidos com interesses puramente privados ou corporativos, que não estão nem aí para o interesse público e são contrários ao Marco Civil. Houve uma cisão, o cidadão pode olhar os partidos contrários e verá que a razão é de comprometimento privado, porque receberam alguma doação de campanha das teles ou porque estão comprometidos com outros interesses econômicos.
Direitos autorais e propriedade intelectual: como o país se posiciona hoje? A lei ainda penaliza autores e beneficia os intermediários?
A reforma da lei de direitos autorais já se estende por sete anos. É um tema fundamental, porque a lei se descolou da realidade. Se olharmos as práticas de hoje nas bibliotecas, nas universidades e o que os jovens fazem no computador, vemos que a tecnologia trouxe possibilidades que a lei de direitos autorais não dá conta de atender. É preciso reconciliar a lei e a realidade, permitindo que se pense a informação conjugada com o desenvolvimento, dando ao autor a justa remuneração, ao mesmo tempo que fomentam novos negócios e possibilidades de circulação da informação.
O que significa a ampliação da banda larga no Brasil? O que devemos observar sobre a proposta de regulá-la?
A banda larga hoje no País é muito insuficiente. O Brasil tem que ser mais agressivo e enxergar a banda larga como parte da infraestrutura, como a China fez. O salto tecnológico chinês partiu desta premissa, a de que a tecnologia da informação causa impacto em todas as outras áreas.
Aumenta a eficiência da saúde, da agricultura, de todas as outras áreas. Produz externalidades positivas para tudo. O Brasil precisa ser ambicioso, construir redes, receber tecnologias vindas de todos os lugares e fomentar a demanda que o país tem pela conectividade. Permitir que o brasileiro tenha sua internet, de qualidade, com fibra ótica passando nos municípios, pois a qualidade do acesso é tão importante quanto o acesso em si.
E o cabeamento das cidades vai definindo as regiões prioritárias para desenvolvimento. Sou do interior de Minas e vejo a transformação. Minha cidade (Araguari) foi escolhida para um projeto pioneiro de TV a cabo já em 1987. Isso impactou uma geração inteira e vejo claramente a ligação entre conectividade e oportunidade.
Acabei de ir a uma conferência na Universidade Harvard e eles faziam um mapa no qual viam as pessoas que participavam da conferência, tinha gente do mundo todo. Depois pegaram um mapa que mostrava onde existia conectividade em banda larga e o sobrepuseram ao mapa anterior: coincidia exatamente. Estavam ali em Harvard apenas pessoas que habitavam os lugares onde havia conectividade banda larga. Não é uma coincidência, conectividade significa oportunidade.
O Creative Commons no Brasil está fazendo dez anos. Como está a disseminação?
O Brasil foi pioneiro em Creative Commons, em 2004, foi o terceiro país do mundo, logo depois do Japão e da Finlândia. A partir daí, a adoção das licenças públicas só cresceu. Começou muito na música, pelo entusiasmo do Gil [Gilberto Gil, quando ministro da Cultura, levou o Creative Commons para sua pasta], e teve aquela explosão na musica e no audiovisual. Agora, ele chega cada vez mais à educação. É um terreno que está se ampliando.
Existe um movimento global dos chamados
REAs – Recursos Educacionais Abertos. É uma recomendação da Unesco que os materiais didáticos sejam cada vez mais produzidos de forma livre, aberta, de modo a potencializar a educação. Quando o cara tiver um
tablet na sala de aula, o conteúdo que ele vai acessar primeiro é o que estiver aberto e disponível. Se este conteúdo estiver em Creative Commons, é o que ele vai utilizar.
Suas pesquisas são voltadas para tecnologia e periferia, a proliferação das lan houses e o fenômeno do tecnobrega. Agora, o uso da internet já está disseminado em outro cenário. Quais os desdobramentos de seus estudos, para onde caminham?
As pesquisas continuam de vento em popa e cada vez mais descobrimos coisas incríveis. Estamos fascinados com a chegada dos tablets no Brasil. Em 2011 eram 200 mil, no fim de 2012 são mais de 5 milhões. E a maioria deles não são Apple ou Samsung Galaxy, são feitos na China a custo baixíssimo. Desenhados para a população de baixa renda, custam de 60 a 80 dólares com características diferentes dos Apple: pegam rádio FM, TV digital, Bluetooth. Para os de alta renda pode não ter importância, mas para as áreas carentes isso é essencial. Então, a gente está muito fascinado com isso que está dando conectividade para muitas periferias do Brasil. O impacto na educação e acesso ao conhecimento é fundamental.
A pergunta que se faz é qual o conteúdo vai ocupar esses tablets. Como as pessoas vão buscar esses conteúdos, quais os materiais, as músicas, os filmes? A tecnologia está se espalhando, seja por lan house, seja por tablet, ou o que virá depois, o que a gente precisa se preocupar é em dar garantias para que a pessoa tenha acesso ao melhor conteúdo possível. Hoje tem um monte de gente comprando o tablet antes de ter o PC, é isso que estamos enxergando nas pesquisas. Então, os projetos são múltiplos, tentando ver o que vai impactar os próximos dez anos e ajudar a planejar as políticas públicas mais adequadas para aproveitar esses potenciais.