Coração de gente — o escuro, escuros
Guimaraes Rosa, em: Grande Sertão: veredas
Já quase duas da tarde, num
calor equinocial, eu dirigia pela Generalíssimo quando o telefone tremeu. Reluzia
o nome do amigo maranhense, de São Luiz.
-Alô, Urubu!
-Fale, Urubu!
Encostei o carro à sombra de uma mangueira. Passamos a nos assim depois de termos
lido “Selva Concreta”, crônica policial de Edyr Augusto, premiado escritor que
vive por essas beiradas. O cognome é de um personagem engraçado; repórter investigativo
de crimes da periferia de Belém. Gostamos do livro e adotamos o nome pelo apreço
ao mestre do voo. O chamamento amistoso tonificou-se após viagem para Barcelona,
porventura da visita ao Serviço do prof. Rami-Porta.
- Rapá, eu estou
emocionado.
-Como assim,
Urubu?
Elias é de Pindaré, Maranhão. Vez por outra vem
bater em Belém para prosear sobre amenidades de nossa ciência preferida. Guardamos,
entre poucos gurus e gênios, um que mora no outro lado do país, pras bandas dos pampas. Consideramos
José Camargo não só pela sabedoria, mas pelo seu altruísmo e tudo que
represente generosidade a um ser humano notável e apaixonado pelo traço do
bisturi e da caneta, quando faz vez de escritor. Costuma a nos chamar pelo
nome - coisa de vizinho de porta, apesar de morar tão distante.
Estamos acostumados a convocar
esse gaúcho de quase dois metros de altitude para destrinchar os mais complexos
casos de nossa especialidade: desde a mais simples técnica operatória a mais
complexa etapa de um transplante de pulmão; sempre responde aos pedidos como se
estivesse bebendo água de coco às margens plácidas do Guaíba.
-Rapá, eu liguei para o doutor Camargo para discutir
um caso complexo. De primeira ele não me atendeu, que já achei estranho. Posteriormente
ele me retornou, mas desta vez eu não pude atender, pois estava jogando bola
com amigos de minha Pindaré querida. Cheguei tarde, vi o chamado, mas não quis retornar
para não ser inconveniente. No outro dia, cedo disquei e discutimos o caso de
forma equânime, como sempre.
- Sim, mas o que te fez
emocionar, Urubu?
-É que o homem estava
entrando numa sala de cirurgia.
- Sim, mas qual é a emoção
nisso? É a vida dele!
-Mas é que dessa vez ele ia
ser operado, ou melhor, cravaram um stents nas coronárias dele. Só que antes de adentrar, ainda no corredor e com aquela roupa que deixa os traseiros ao vento, tirou
minha dúvida. Assim... como se fosse assistir a um treino do Grêmio. Pode isso? Fiquei acuado. Ele
poderia nem atender a esse pindaíba de Pindaré. Que
nada! Ele queria era continuar ajudando. Acho até
que seria capaz de operar alguém antes de ser anestesiado, só para relaxar o coração e soltar a musculatura da perna. E,
assim que acabasse, para testar os stents,
seria capaz de realizar um transplante pulmonar duplo.
- impressionados com mais
essa prosa, por fim, desligamos. Acionei a ignição e segui. No caminho tinha a igreja
de Nazaré, onde finda o círio. Fiz umas orações com figa - coisa de quem tem fé - e roguei pro
gigante se aquietar. Era só o que eu sabia fazer; depois segui pro trabalho. Não tive
outra vontade senão a de ligar e dizer que estamos aguardando suas eclusas coronarianas
mais abertas para a nossa medicina cada vez mais escassa de catedráticos.
Três dias depois, ele
recuperado, passei o telegrama achando que agora ele teria de se
aquietar de vez. Respondeu à sua maneira:
-Se com a DA [coronária]
estreitada eu me sentia o máximo, qual o sentido de repouso com a coronária lindamente
dilatada?
... Amém, homem de fé.