sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Amor platônico - diálogo à sombra de um pé de pequi

   Jorge, meu amigo, a vida é assim: cheia de travessias e travessuras. Eu, por exemplo, desdenho regras. Só trabalho com perdidos e achados.
-Labareda, meu irmãozinho de caduceus, se estou perdido ou achado, não sei, mas te digo: quando eu lia romances emprestados das bibliotecas, ficava encantado com esse tal de amor platônico. Aquele que dominava meus quereres sem plasmar ou materializar a pessoa amada. Forçosamente a vida me empurrou, ladeira abaixo feito carrinho de rolimã, para praticar esse tipo de amor.
Pois bem, como sabes, o curso de medicina é espartano. Lamentavelmente o tempo é integral: manhã, tarde e noite, sem contar as madrugadas que tiramos para as provas. Ainda os finais de semanas em clínicas e hospitais para pegar um beiradinha do conhecimento daqueles dedicados médicos, discípulos de Asclépio que, com paciência, me aceitavam nos plantões. Sem poder trabalhar, não por preguiça ou boçalidade - que até vergonhoso é -, um marmanjo como eu, sempre liso, era considerado anjo torto. Tinha que pular roleta de ônibus, caminhar com maestria ao me esquivar das poças d’águas. Andar de guarda-chuva, pois por Belém sempre tem uma chuvinha no meio da tarde e mangas despencando do cume das mangueiras.
A bolsa de estudo dava para meio mês; depois o amor platônico dissolvia-se e, por fim, nascia o amor gastronômico: filava boia na casa das pessoas que conhecia e de quem mal conhecia, também. Não havia sobra de comidas, não. Pesava exatamente meus cinquenta e oito quilos, fazendo inveja às modelos anoréxicas de hoje, que vivem na opulência, apesar da bunda seca.
Minha memória olfativa e gustativa escreveu um livro tão claro na minha biblioteca, que naquele período se chamava fome a minha alma. Aquele cheiro delicioso de pizza ao atravessar a praça da matriz era inspirador. Suspirava ao comer meu pão-bengala com água, temperado com orégano, oliva e as melhores azeitonas do reino. Ficava delicioso.
Mas o rompimento definitivo com esse amor platônico, inatingível, nas estrelas, foi com o cheiro vindo da churrascaria, caminho de passagem para a faculdade, no largo de Santa Luzia. Era uma tortura. A boca ficava cheia d’água e o estômago não respeitava – roncava -, e às vezes sentia o ardume da acidez. Ficava aquele sabor impregnado no pedaço de osso com tutano, quando eu raspava um prato fundo de sopa quente. Eu me inspirava, até ficar deliciosa, naquele cheiro de defumado. Eu ria muito - ria mesmo. Ainda tirava onda com o pouco de sonho que me restava - desde aquela época, e ainda não desisti, quis transformar o mundo.
Ironias do destino: rompi esse amor platônico que tinha pela gastronomia. Com os meus traquinos oitenta e seis quilos de então, tornei-me vegetariano sem sofrimento, e sem mágoas com meus ex-amores. Peguei carona nessa criatividade e não deixei de aprender a fazer pratos elaborados para aqueles que se deleitam com os prazeres da carne. Alguns pacientes quando querem me presentear com algum tipo de ser vivo - galinha ou leitão-, falo que quero um saco de pequi, fruto da região. Logo me indagam se tenho alguma doença ou faço dieta.
Para encurtar a prosa digo: é pura paixão. Dessas que nem Freud, nem Nelson Rodrigues explicam.


Jorge Ivan e Labareda do bando Corisco

domingo, 22 de novembro de 2015

A fronteira da travessia

Depois do mar do Oiapoque avista-se o do Caribe...

 - Pra onde pensa que vai?

- Caiena!

- Qual tua idade?

- Dezessete.

- Não, não. Pode chispar daí se não tiver o dinheiro da passagem.

- O Claude Buchert está me esperando. Vai acertar tudo quando aportarmos.

- Descreio. Não conheço ninguém com esse nome. Mais: os franceses estão restringindo a entrada de estrangeiros pelo Atlântico; ainda: você é de menor!

        O diálogo entre Corumbá e o menino aconteceu em 1987, no porto do Oiapoque, onde começa o Brasil. O pequeno, desacanhado, só queria atravessar a fronteira na busca do sonho de todo artista e não poderia temer o tatuado marinheiro musculoso e bafento.

Quando o menino conheceu Claude, francês de Tolouse, tempos antes em Macapá, ganhou a promessa de montar, em Caiena, uma banda que mostrasse a riqueza do ritmo amazônico. Tudo porque Claude, promotor musical, avistou certa vez o tal moleque multi-instrumentista num recanto tucuju e ficou deslumbrado com seu talento.

O marinheiro não permitiu o embarque.

Noite adentro, mar rosnando, Corumbá descobre o moleque encafuado entre outros passageiros, só com a roupa do corpo. Corumbá puxou-o pela gola da camisa para jogá-lo ao mar. O menino aponta para o piso do barco onde há uma fresta por onde mina água. Lá estava fincado o pé direito dele contendo o vazamento, pois a calafetagem havia descolado em plena travessia. Corumbá se viu em apuros e todos apelaram. Ele cedeu. A viagem toda foi o garoto jogando de volta, com uma cumbuca, a água que entrava pela falha.

Do caribe o menino só conhecia histórias do pai músico, que ligava o radinho de pilha para ouvir os ritmos, em ondas tropicais. Mas o menino queria mesmo era atravessar as ondas do rádio, beber da fonte e saber se a velha promessa de Claude ainda estaria no ar... ou ficaria no mar.

A monotonia da viagem foi vencida pelo marmulhar das ondas batendo no casquinho, cujo motor parecia falhar a cada estrondo na lateral. Não havia um trisco de horizonte; a noite era só breu e o céu sustentava estrelas e o sonho do pequeno. Foi-se construindo a esperança a cada hora, mas vez por outra era carcomida pelo medo de emborcar e todos virarem tira-gosto de tubarão.

Ele dizia que sua alma de músico era um rio estagnado, pois nenhum vento enluava a vela de seus sonhos. Por isso estava ali, caolho da vida com a voz trancafiada no amanhecer vindouro. Pelas esquinas de sua cidade vivia à deriva e sob ilusão de acordes e harmonias nas cantorias regadas a incertezas. Sentia-se irmão das coisas sem adjetivos. O próprio nome desafinava entre o sonambulismo de atravessar a fronteira e a esperança de encontrar Claude.

Relembra com exatidão a chegada, após fuga a braçadas até a praia de Montjoly - sem esquecer que o débito da passagem ficou “dependurado”, salvaguardado pelo pé do moleque. Por fim, a experiência jamais lhe saiu da memória e a travessia o assombrou por mais de três anos, até o retorno definitivo pelo mesmo caminho - coisa de memória, antes que a modernidade delete.

Na mochila da volta trouxe não só o culto à língua de Baudelaire, mas a tessitura caribenha transfigurada em zankerada.

Conta ainda que na volta reencontrou o velho marinheiro e fez questão de pagar uma passagem a mais e ainda resistir ao troco. Dívida saldada, Corumbá e o menino Fineias Nelluty se tornaram amigos.
Blog de Rocha/Elton Tavares
Vinte anos após aquele diálogo foi iniciada a construção de uma ponte estaiada na fronteira entre as duas nações, mas ainda se aguarda por histórias de comunhão e progresso, que não devem afogar fecundos relatos de travessias pelo mar da história. Ou como diria na canção "A ponte" de Zé Miguel e Jeresier: Mais c`est bien plus qu`um pont une autre vision..

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Bate aqui. Bate lá. Diferenças entre debate eleitoral na Argentina e no Brasil

Já sei que escrevi sobre eleições na Argentina aqui, na Revista do Brasil e no tuiter. Sei também que alguns já leram algo disso recentemente nos traços de Paulo Henrique Amorim. Mas eu gostaria de acrescentar outros poréns agora, há menos de uma semana para o segundo e último turno de votação.

No decorrer do processo eleitoral, vou ruminando uma comparação amadora com o processo brasileiro. Por exemplo, este ano foi o primeiro em que o país viveu um debate entre candidatos a presidente. A mim pareceu impressionante. O Brasil há décadas espera com ansiedade pelos debates entre os candidatos. E olha que não são poucos, porque cada veículo de comunicação faz um. E existe  ainda toda uma preparação pré debate e repercussões pós debate.

Houve o debate com todos, todos os candidatos que foram crivados pelas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), em outubro. Dos seis, apenas o oficialista não compareceu. Com o segundo turno confirmado, veio também a garantia de mais um debate, entre o oficialista e seu principal opositor.

Mas tem um detalhe aí nessa história. Quem promoveu o debate não foi nenhum meio de comunicação. Esses tiveram participação secundária: a de escolher um de seus jornalistas para competir por uma vaga como mediador e a de transmitir, se tivesse interesse. Sim, senhor. Isso me pareceu outra diferença significativa. 

Os organizadores do debate foram membros de um coletivo formado especificamente para a missão, Argentina Debate, vinculada à Faculdade de Direito, da Universidade de Buenos Aires (UBA). Mesmo não crendo em neutralidade em canto algum, por simples condição humana que a inviabiliza, eu imaginei que tudo poderia ser um pouco mais limpo. Mas, ora, ora, limpo! Os veículos de comunicação da Argentina não têm nada de diferente dos veículos brasileiros. Sempre tomaram partido. E nisso o oficialismo leva muita desvantagem. Portanto, os mediadores, sendo representantes desses veículos, iriam reproduzir o discurso favorável ou desfavorável a um ou a outro conforme ditam seus patrões. E não deu outra. Foram dois contra um. Dois de veículos opositores e um de veículo próximo ao oficialismo.

O certo é que os mediadores não fazem perguntas, como ocorre no Brasil. Cada um, a seu tempo, ditava os temas gerais previamente selecionados para cada bloco. Se quisessem, poderiam fazê-lo com algum comentário. E foi aí que botaram as garras pra fora, notoriamente.

E digo mediadores também porque, de fato, não havia nenhuma mulher. Sim, eu acredito que o fato de haver uma mulher faria diferença nesse meio de campo. Mas Scioli, o oficialista, tirou vantagem do adversário: lembrou do movimento Nenhuma a Menos, pelos direitos das mulheres, enquanto Macri fechou o atendimento de vítimas de violência de gênero.

E aí entra outro elemento muito interessante também. O coletivo Checado. São eles que ajudam os cidadãos a conferirem o que é verdade ou mentira no discurso dos candidatos. Eles já vinham fazendo este trabalho ao longo do ano, mas acompanharam em cima do lance o debate. Escolhem um dos números ou informação expressada e verificam sua veracidade, divulgando virtualmente.

Particularmente, vejo no rosto de Daniel Scioli um eterno enfado. E isso é ruim para o atual governador do estado de Buenos Aires. Mas o discurso dele é mais consistente do que o do governador da cidade de Buenos Aires, que sempre faz piadinhas desvantajosas - como dizer que “agora me rendo, Daniel” – e tem sempre um riso na venta. 

Aí vai de cada eleitor sentir que conta mais a segurança da fala de Scioli - que insiste em mostrar a diferença entre dois modelos de governo - ou a imagem de um bacana e bonachão Macri. A diferença percentual entre os dois foi muito pequena no primeiro turno, o que dificulta mais ainda um chute sobre o resultado dessa primeira vez na história argentina em que os eleitores terão segundo turno. O jogo só acaba quando o juiz apita. E parece que ele vai apitar por volta da meia noite, porque, afinal, a Argentina ainda vota em papel.

Enquanto isso, seguem os balões coloridos de Macri pelas ruas portenhas e os volantes de Scioli por praças e parques.

O resultado, a meu ver, repercutirá drasticamente na Argentina, mas também na América Latina, porque cada um tem propostas bem diferentes para as relações internacionais. A conferir.

domingo, 15 de novembro de 2015

A dor do rio

Eu me chamo Amazonas,
                     e quero falar de dois irmãos: Doce e Sena
Doce, o patrício, salgaram-no de lama e mercúrio.
O Sena, saiu de cena numa noite de novembro quando suas águas toldaram a minha alma numa lama de sangue.  
Estamos arriados em nossos leitos e calafetados pela dor dos irmãos.
O próximo serei. 
Deus, me acuda!

Como se não bastassem os ribeirinhos 
                              que carrego na proa de minhas canoas,
agora também pesa no ombro 
                    o pêndulo da desgraça por amar o mar e o mundo.
Eu, rio, que deságuo hoje no atlântico com um volume de vida menor,
                                            estou enlutado do amor.
Estou secando ...
                           ...e o que evaporou de mim
e me fez menor ...
                            ...foram as lágrimas.

Ao meu lado vejo um homem
                         Ele carrega uma lata-dágua na cabeça
e na cabeça só há a lata e o vazio do tamanho do Saara.
A água foi-se na escuridão das noites em que não dormi,
                 ao ver ganância e fundamentalismo no mesmo cântaro,
em vez de água de beber.
Restou-me a sede nos lábios rachados,
Tal como a caatinga do nordeste do olvidado Chico.

Hoje: luto, não sorrio,
                           sou rio que se veste com as cores da dor.


Labareda, do bando de Corisco 

sábado, 7 de novembro de 2015

Bem-aventurado os que têm sede de alegria (com intervenções cirúrgicas do poeta Abel Sidney)

Nos idos de 80, junto com Sergio, Paulinho, Ismael, Zé Pedro e Max, parceiros do mesmo vagão, começamos a frequentar, ainda estudantes, as salas de cirurgia da Beneficente Portuguesa do Pará. Tínhamos ideal de apenas experimentar aquele lado pulsante da medicina e respirar aqueles ares intumescidos de ciência.
A valência que não nos intimidamos. Fomos batendo na porta, vestindo capote, lavando mãos e colocando pantufas. Permitiram e fomos adentrando. 
Cirurgião, sabe-se, tem uma rotina pesada e desafios amargos. O seu deleite não é essencialmente o sorriso, mas o remédio que abranda dor, a pinça que estanca sangramento, ou a manobra que extirpa tumor e drena fleumas, mesmo que signifique talho no corpo e cicatriz indelével. Pela obstinação de cada um, tinha em mim que o ambiente do centro cirúrgico deveria ser carregado, silencioso, repleto de cheiro de éter e de gente chorando, pois assim líamos nos alfarrábios e ouvíamos na sala de aula.
Que nada!
Lá conhecemos uma criatura tagarela e brincalhona que nos fez rever todo esse cânone. Tirava graça com todos; chamava de bonitão do servente ao presidente. Quando perguntei às enfermeiras de quem se tratava, responderam: um baluarte conhecido em todo território nacional. Opera casos complexos e tem aura cintilante que aguça os mais fracos sentidos. 
Pura verdade. Ele operava como se tivesse tomando um Guarasuco. O homem ainda era doce e generoso com seus pacientes. Costumava referir aos familiares que o sucesso ocorria por conta do anestesista ou o clínico geral - nunca dele. Seguia um perfil profissional que não se apregoa nos corredores dos hospitais, universidades e clero cirúrgico. Era assim o Guilherme Guimarães, ou melhor, Gegê, que empunhava na lâmina de seu bisturi toda a técnica e arte e, no cabo, o bom humor.
Pra mim as cores da sua alma tinham matizes que iam do traquejo com as mãos até o humanismo nas atitudes e palavras, feito missionário. Manifestações elegantes, práticas gentis explodidas no meio do caos eram seus tiques. Para nós, ainda principiantes, foram pequenas revoluções num clérigo que, sabemos todos, é de responsa.
Certa noite - quase meia noite -, fui convidado por ele para participar de uma operação de urgência. Com abdome aberto exalando cheiro de podridão por conta de uma úlcera perfurada, ele interrogou:- você quer ser cirurgião, mesmo? Tem que suportar tudo isso com humor sem perder ímpeto e concentração.
Tititi, patatá, ele seguiu, madrugada adentro, operando e ensinando. Vez por outra ralhava, com sutileza, para não perder o foco, mas o que encantava era a maestria de sua arte e o rigor pelos princípios da técnica operatória. Tudo junto e misturado com alegria e sem aperreio. Fazia jus ao legado de Ambroise Parè sem perder o regalo.
Gegê acabou de subir. Vinha sofrendo dos males da idade e o coração não deixou por menos: bateu asas e fez caminho pro infinito. Restou-nos um par de retinas que, voltadas para a ampulheta da medicina, no contraponto do monólito erguido pela cirurgia, ficaram grudados em nós só para passar outra ideia: a de alegrar nossa rotina sem que abandonemos o trilho, como grifaria o poeta: "
Médico vai pro céu?! Se construir asas vai, é lógico!"
          Gegê fez ninho por lá.