- Jorge, meu amigo, a vida é assim: cheia de travessias e travessuras. Eu, por exemplo, desdenho regras. Só trabalho com perdidos e achados.
-Labareda, meu irmãozinho de caduceus, se
estou perdido ou achado, não sei, mas te digo: quando eu lia romances emprestados das
bibliotecas, ficava encantado com esse tal de amor platônico. Aquele que
dominava meus quereres sem plasmar ou materializar a pessoa amada. Forçosamente
a vida me empurrou, ladeira abaixo feito carrinho de rolimã, para praticar esse
tipo de amor.
Pois bem, como sabes, o curso de medicina é espartano.
Lamentavelmente o tempo é integral: manhã, tarde e noite, sem contar as
madrugadas que tiramos para as provas. Ainda os finais de semanas em clínicas
e hospitais para pegar um beiradinha do conhecimento daqueles dedicados
médicos, discípulos de Asclépio que, com paciência, me aceitavam nos plantões.
Sem poder trabalhar, não por preguiça ou boçalidade - que até vergonhoso é -,
um marmanjo como eu, sempre liso, era considerado anjo torto. Tinha que pular roleta
de ônibus, caminhar com maestria ao me esquivar das poças d’águas. Andar de
guarda-chuva, pois por Belém sempre tem uma chuvinha no meio da tarde e mangas
despencando do cume das mangueiras.
A bolsa de estudo dava para meio mês; depois o amor
platônico dissolvia-se e, por fim, nascia o amor gastronômico: filava boia na
casa das pessoas que conhecia e de quem mal conhecia, também. Não havia sobra
de comidas, não. Pesava exatamente meus cinquenta e oito quilos, fazendo inveja
às modelos anoréxicas de hoje, que vivem na opulência, apesar da bunda seca.
Minha memória olfativa e gustativa escreveu um livro
tão claro na minha biblioteca, que naquele período se chamava fome a minha alma.
Aquele cheiro delicioso de pizza ao atravessar a praça da matriz era
inspirador. Suspirava ao comer meu pão-bengala com água, temperado com orégano,
oliva e as melhores azeitonas do reino. Ficava delicioso.
Mas o rompimento definitivo com esse amor platônico,
inatingível, nas estrelas, foi com o cheiro vindo da churrascaria, caminho de passagem
para a faculdade, no largo de Santa Luzia. Era uma tortura. A boca ficava cheia
d’água e o estômago não respeitava – roncava -, e às vezes sentia o ardume da
acidez. Ficava aquele sabor impregnado no pedaço de osso com tutano, quando eu raspava
um prato fundo de sopa quente. Eu me inspirava, até ficar deliciosa, naquele
cheiro de defumado. Eu ria muito - ria mesmo. Ainda tirava onda com o pouco de
sonho que me restava - desde aquela época, e ainda não desisti, quis
transformar o mundo.
Ironias do destino: rompi esse amor platônico que
tinha pela gastronomia. Com os meus traquinos oitenta e seis quilos de então, tornei-me
vegetariano sem sofrimento, e sem mágoas com meus ex-amores.
Peguei carona nessa criatividade e não deixei de aprender a fazer pratos
elaborados para aqueles que se deleitam com os prazeres da carne. Alguns
pacientes quando querem me presentear com algum tipo de ser vivo - galinha ou
leitão-, falo que quero um saco de pequi, fruto da região. Logo me indagam se
tenho alguma doença ou faço dieta.
Jorge Ivan e Labareda do bando Corisco