quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

o Corre-liso

    A principal avenida de Benquerença é absurdamente enorme. Vai bater no Atlântico, passando por cima de um mangal. Quando os Beatles a conheceram fizeram The Long and Winding Road. Começa no trevo do Morro e termina no mar, em Ajuruteua, por cima de umas tantas pontes. 

    Quando passo por ela, por trás da igreja Matriz, meus olhos, numa molecagem de fazer inveja, desfazem os concretos existentes e refazem o admirável, o inigualável, o insuperável Corre-Liso, o melhor campo de pelada de Benquerença. 

    Ali se deram os maiores embates de futebol: às vezes arte, às vezes desastre, às vezes des-arte, como costumava escrevinhar Manoel de Barros. 

    Ali, também, se consagrou um artista da bola: Hélio Mata Roma - pros pais; pra nós era o Buriri, terror das zagas e goleiros. Rápido como um raio, a bola tinha um chamego especial com seus pés: não se afastava deles. Certa vez ele foi bater uma falta a 35 jardas do gol e a bola entrou na forquilha do Bracáli, goleirão famoso do Remo que andava em férias por Benquerença e achou de tirar barato com o Buriri no Corre-liso. Dizem que o Ronaldinho Gaúcho, ao ser convocado para a copa da Ásia, andou vendo DVD pirateado do Buriri, vendido na feira, às margens do Caeté. O David Seaman que o diga.

Seu irmão, o Galo Rhode, que os pais teimavam em chamar de Iran, pontificava pela precisão das porradas que distribuía em campo. Seu forte era o MMA, esporte iniciado em Benquerença, quando o Corre-Liso se transformava em octógono, sem juiz pra atrapalhar porque era o primeiro a entrar no couro. Tenho uma cicatriz na canela direita com o carimbo do Galo.  

Joguei muito naquela arena esportiva, bem antes de me tornar contador de prosa. Sempre fui um jogador entre o assim e o assado. Não tive a sorte do Labareda que teve o Quarentinha a lhe orientar os passes e passos lá pelas quebradas da Curuzu. 

Meu melhor passe foi numa encenação de sessão espírita pra desalojar um zagueiro perna-de-pau que insistia em quebrar os craques da grande arte. Um tapa no pé do ouvido tirou o beque de campo e o fez correr em meu encalço. Nunca pegou, mas foi desde então que pendurei meu kichute.

Os deuses da pelota nada esquecem e, de súbito, veio "baixando" aquela jogada sensacional que fiz, "matando" a bola no peito e, quando, no ar, preparava o voleio fatal, um despreparado (terá sido aquele zagueiro?) buzinou atrás de mim. A bicicleta, como sói acontecer aos devaneios, foi sumindo no ar... As cortinas do passado se fecharam e a dureza das construções voltou a ocupar o espaço que um dia alimentou a geração que sonhava ser Pelé.

O Corre-Liso não resistiu à necessidade da urbe. Mas, duvide-o-dó se algum atleta peladeiro de Benquerença não guarda, pra sempre, aquela jogada fantástica emoldurada na memória, só à espera de ser resgatada do tempo. 


Corisco / Labareda.

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