Desde sempre houve conflito de terra por aquelas bandas. Todos sabiam que por ali, tinha gente debaixo daquele solo servindo de adubo. Era comum aparecer grileiro de terra nova, alguns, é certo, amanheciam com a boca cheia de formigas, mas outros, de forma diferente, olhos risonhos e cheios de conversas e boçalidades. Eram os mandantes dos gatilhos. Na origem, os que mandavam gente para o campo santo.
Vez por outra a gente ouvia barulho de tiros varando, ecoando e sumindo estirão adentro. Dava medo. Ficávamos imaginando, quem era o dono do gatilho ou, quem era o alvo. Às vezes era só caçador atrás de alguma caça. Só que, zoada de tiro ecoando nas lonjuras tirava mesmo o sossego do povo.
Não bastasse o castigo do medo, fazia tempo que não caía chuva qualquer, nem chuvisco ou gota de sereno mais forte. A terra, apesar de aguardar o tão esperado plantio, andava triste por falta d’água. Não havia promessa que resultasse, estava há tempos esturricada e o sol cada vez mais escaldante.
Uns diziam, que eram as queimadas que mudavam e atrasavam mais e mais a chegada da chuva, e, fazia daquele pedaço de chão um verdadeiro inferno de tão quente. Porém, a todo custo íamos sobrevivendo, mas o pior era mesmo a briga entre aquelas duas famílias.
A discórdia era antiga e a cerca que separava as duas terras também. Ninguém tinha registro na lembrança de como a rixa começou. Só se sabia que família não suportava família.
Havia uma conversa no tempo que era coisa de amor, diziam que o velho finado de lá, roubou a filha do velho finado de cá. Outros diziam que era coisa de terra mesmo. Destrato de herança sombria. Corria de boca em boca que a cerca já foi puxada para cá e para lá umas quantas vezes, e com isso, levando vidas dos de lá e dos de cá.
Teve até deputado da capital, em tempo de eleição, vindo aqui, querendo fazer acordo, para no fundo, amealhar votos. Apesar disso, no primeiro encontro teve briga, só não teve tiro, porque o deputado tinha trazido gente da TV, padre e força policial. O pai da família de lá, com os olhos fumegando, mirava bufando para o pai da família de cá, que retribuía do mesmo modo. Quase se comeram ali mesmo, em frente a imprensa. Depois que o deputado foi embora, retornou o medo de andar pela rua. Voltou a sina de morte das famílias. Morria um daqui a culpa era dos de lá. Morria um de lá, pagavam os daqui.
Os anos não davam trégua e as desavenças eram constantes. Chegou ano de apagarem cinco de cada lado. Aquele foi ano difícil. Não se tinha qualquer tipo de sossego. Nem na vila, fazer procura de moça-dama, ou prosear dois dedos de pinga na mercearia do seu Osmar. Não era seguro ir. Não podia se expor demais, ou, era certo, pegava um pelas costas vindo lá não sei de onde.
Aquele ano demorou a passar. Até Juventino, que tinha na época, pouco mais de cinco anos, foi surpreendido usando a 12, papo amarelo, do pai. O menino nem sabia o que se passava e já cultivava raiva danada dos de lá. O pai foi descobridor a tempo. Viu quando o pirralho foi saindo pela porta da cozinha, tamanha quatro horas da manhã, querendo pular a cerca e dar fim em todo mundo dos de lá.
O menino até que era bem valente. Imitava. Havia herdado a conduta dos parentes. Porém o que motivou aquele pirralho foi a saudade do mano Beto.
Beto, tinha se descuidado no bar do Raimundinho, ficando de costas para a rua. Não deu nem tempo de reagir, pegou só uma da 12 e caiu de peito na mesa, em cima dos copos e garrafas. O menino Juventino foi lá ver o irmão. Chorou muito agarrado no braço de Beto; deu foi muita dó de ver aquela cena.
Coragem mesmo teve Maria Clara na festa de 15 anos. Ganhou do pai um 32 todo niquelado. A mãe achou ruim. Apesar disso, o pai disse que agora a menina-moça precisava aprender a se cuidar. Maria Clara ficou foi orgulhosa, vaidosa, como se tivesse ganhado corte novo de chita ou pulseira de prata falsa. Toda amiga, ou amigo que chegava ela mostrava a “peça” com vaidade e petulância.
Não tardou para chegar a noticia que Maria Clara tinha feito “dois furos”, com seu 32, na testa de Guilherme, filho dos de lá. A menina disse que ele atirou primeiro. O tempo fechou na vila, os irmãos de Guilherme diziam em voz de grita para quem quisesse ouvir, que iam acabar com Maria Clara, mas, só depois de se servirem da moça. E olha que eram 10 machos. Porém, o que assustava a gente era que quase sempre as promessas ditas eram cumpridas a risca.
Certo dia, Maria Clara se descuidou. Foi fechar a porteira sem prestar atenção nos arredores. Os três irmãos mais novos de Guilherme, Brócoió, Cabecinha e Zé Pungué, agarraram a moça e a levaram para o mato. Machucaram muito a jovem no corpo, entranhas e na alma. A moça ficou com a cara toda inchada. Era cataplasma em cima de cataplasma. Só muito depois é que ela foi voltando ao normal. Era cabrita bonita. Ficou, depois disso, com olhar perdido: olhando o nada. O tempo todo apertando os olhos como se mirasse alvo para alguém. Não falou mais sequer uma palavra.
Os três irmãos viviam dizendo num tom de “boca grande”, que fizeram de tudo e muito mais. Não mataram ela não, porque queriam deixar a marca para o pai dela ver. Diziam que o velho ia viver olhando para ela morta em vida. Quando acabavam de falar isso caiam numa gargalhada estridente. Coisa ruim de ouvir.
Maria Clara, numa madrugada calma, sumiu de casa. Foi lá para o descampado, na casa das moças-damas. Sabia que de alguma maneira, iria encontrar os três que se aproveitaram dela. Zé Pungué, pegou logo um do 32 niquelado na boca e caiu de cara no chão. Brócoió levou dois na testa, igualzinho a Guilherme. Cabecinha esse pegou dois balaços entre as pernas, que foi arrancando as “coisas” do moço. Ficou sem os “documentos”. Ficou ali sangrando, gritando com as mãos entre as pernas, tentando segurar o nada que restou. Dizem que ela não deu fim nele porque queria também deixar sua marca para que a pai da família de lá vivesse olhando ele morto em vida.
Depois desse acontecido passou tempos sem ter vingança ou troça. Foi tempo de descanso e quase sossego para a vila. Não se ouvia falar em ameaças, até tiros pela mata a gente deixou de se assustar.
A cerca, que separava as fazendas, era tão grande que chegava até no riacho fino. Apesar disso, não parava ali não, seguia mesmo por dentro daquele fio d’água, e só acabava no limite das terras de Coronel Lóris, passando o barranco seco, quase dez léguas depois do Riacho Fino.
Foi ali na beira do Riacho Fino que Israel viu Palestina pela primeira vez. Ela nem assustou vendo aquele menino de lá, dividindo o quase nada de água do mesmo riacho, distante apenas cinco braças dela pela cerca. Continuou dando banho na boneca, enquanto ele lavava aquela bola velha: afundava a bola e soltava. A bola, cheia de ar, dava um pulo para fora da água e ele ficava rindo, gargalhando sozinho.
Ficou fazendo aquilo várias vezes, até chamar a atenção, depois ficava olhando e rindo. Ela gostou do riso do menino. Riu também. Rimou a alegria com ele. A partir desse dia, quase todo final de tarde, lá ia Israel, com algum tipo de brinquedo, pros lados do Riacho Fino. Israel sempre inventava alguma para Palestina rir. Ele gostava também do riso da menina. Passaram a se encontrar nessa rotina de fim de tarde pela poeira dos tempos.
No meio do caos, uma simpatia, uma amizade, um amor pequeno surgiu. As famílias sequer sonhavam com coisa dessa. Nunca um filho daqui podia gostar de um filho de lá. Até o nome dos de lá era proibido falar pros daqui.
O tempo foi soprando seus dias, meses e anos, e lentamente, trouxe barba para Israel e peito para Palestina. Encontravam-se escondidos na velha cerca no sagrado fim de tarde. Já havia neles a urgência dos encontros diários. Primeiro foram as mãos, depois abraços através da cerca. Já não bastava. Abriram passagem e os minutos ficaram eternos entre beijos e afagos. Era a brasa começando a aquecer o coração e as partes baixas dos dois. Era a natureza construindo seu caminho.
Difícil foi quando Palestina falou da barriga. Disseram que tinha que casar. Mais difícil ainda quando ela contou quem era o pai. O céu quase desabou. Um turbilhão em fogo ardeu na garganta de todos. Os dois lados, nesse dia sequer pregaram os olhos. As famílias sentiram gosto de sangue na boca. Ficaram rangendo os dentes. Limpando armas e sujando o pensamento por um bom tempo. O cavalgar dos dias foi veloz.
O cuidado com a gestação de Palestina ficou à frente. A ira trotando sempre ao lado, par em par. Com Israel não foi diferente. Olhar sisudo dos irmãos e quase nada de conversa por longo tempo. Gritos e socos na mesa e nas paredes foram escasseando lentamente. Israel não dava palavra. Contudo, após o desabrochar da nova vida, a noticia transbordou os além-cercas, os cenhos foram dissolvendo, trocando lugar para a curiosidade do recém-chegado. A sanha perdeu a vez para a postura firme do abrigo, passaram por cima da discórdia e da cizânia, desenhou-se e assentou-se o armistício.
Quando a cria passou de colo em colo alguma coisa mudou. Não se sabe se foi o cheiro de bebê ou o riso lindamente desenhado e farto nos lábios da criaturinha, que aos poucos foi encantando, quebrando todas as barreiras e porteiras armadas nas tronqueiras de décadas. Cada lado dizia cada um ao seu tempo, que a bebê era cuspida e escarrada com a avó, com o avô, e ainda, que os pés e as mãos eram idênticos aos da tia tal. Porém, a criança tinha olhar carinhoso cheio de brilho e alento, olhava fundo dos olhos de cada um que a punha no colo, arrancando olhos mareados e bem querer.
O sorriso tomou o lugar da ira nos dois lados da cerca. Ninguém acreditava que isso um dia podia acontecer. Todo o mundo e o mundo todo sorriu. O produto do amor de Israel e Palestina uniu as famílias. O ódio transformou-se em amor. Na vila todos suspiravam aliviados. Teve até brinde farto na mercearia do Osmar e algazarra na casa das moças-dama.
Não se tocava em má palavra ou lembrança de dor. As armas foram depositadas bem longe dos olhos e as armaduras lançadas na desmemória. O olhar firme nos olhos dos graúdos determinava acordo e respeito, trégua e deslembrança.
Da união de Israel e Palestina nasceu uma linda menina, que passou a ser o xodó das duas famílias. Esse anjo quebrou todos os rancores e amansou todas as dores. Depois disso, os de lá e os de cá, cruzaram caminhos sem esbarrão e fustigamentos, de maneira diferente, tolerantes. Aquele rascunho de acordo transformou-se em traço forte e firme.
Nas primeiras luzes do sol de domingo do batizado, sem combinarem previamente, os graúdos e as graúdas dos dois lados, abriram dez metros de cerca e armaram a mesa do almoço na linha divisória entre as duas terras. Afirmavam, sem palavras e com olhares concedentes e outros sorridentes, mesas, cadeiras e comilanças se achegavam. Foi bonito ver aquela gente aquietar, foi bonito ver aquelas duas famílias quase se abraçarem.
Teve leitão assado e muito vinho. Bolo de milho e macaxeira frita. A meninada, agora misturada, corria pelo terreiro, gritando e gargalhando como só as crianças sabem fazer. Era sinfonia doce aos ouvidos quase esquecidos de momentos assim. Nunca mais houve qualquer tipo de atrito. As duas fazendas se uniram e fizeram uma só. Os graúdos e graúdas aproveitaram a achegação, e, talvez o cansaço da vida de discórdia. Cozeram a paz e futuro de mansidão por aqueles lados.
Da terra antes esturricada e seca, por causa da falta de chuva, agora, depois do poço para irrigação, cavado pelas mãos comunitárias das famílias, via-se sumir no horizonte, para além do Riacho Fino dquele imenso parreiral, onde são colhidas uvas de primeira qualidade, que produz um vinho com buquê incomparável.
A menina, que uniu as famílias, recebeu o nome de Maria da Paz. A fazenda, que acolhe agora as duas famílias, recebeu o nome de... Terra Santa.
Autor: Dudu Neves
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