quinta-feira, 4 de março de 2021

O insólito perguntador

 A gente não se dava com ele, mas ele se dava com a gente.

Não fazia parte da turma, mas vez ou outra aparecia na casa do Caíca e ficava peruando nossa conversa, o pif-paf, pegava as mangas do quintal, folheava O Cruzeiro e ainda fazia mímica facial em cada virada de página; ria sozinho do Amigo da Onça, enfim...não se abatia com nossa pose de "não te conheço".

Quando estava conosco participava de tudo. Se íamos brincar bola, ele ia; se íamos pro igarapé, ele ia; empinar papagaio, jogar peteca, pião, fura-fura, brincar de pira, tudo, tudo, tudo. Era um chato. Mas, então, por que o aturávamos?

Porque éramos um tanto quanto metidinhos a sabichões. Estudiosos, filhos de professoras, boas notas, e o nosso "amigo", calado a maior parte do tempo, fazia umas perguntas que nos liquidavam. Tipo: "Que dia começou a Idade Média?" Pronto. Era o bastante pra nos tirar do prumo. Disfarçávamos. Dizíamos: "mamãe tá chamando" e saíamos correndo em busca de livros à procura da resposta. 

O que tinha na época era o almanaque Abril; quando estávamos dispostos, corríamos até a casa de seu Manolo que guardava uma edições amareladas da Barsa. Quando a gente mais precisava de certo assunto, a página faltava. Chegamos até a desconfiar que aquele moleque entrava ali, rasgava a página e depois ia desafiar a gente.

Decidimos contratar o Maricélio pra seguir o "amigo" e descobrir onde ele morava, estudava; quem eram os pais, etc... essas coisas básicas.

Foi um investimento perdido. Cada um de nós pagou uma peteca boliviana, daquela multicolorida, e nada. O Maricélio disse que era prá lá do campo de aviação, só que o moleque sumia por um caminho estreito, de mata fechada, onde se dizia que existia uma sussuarana, felino valente.

Devia ser uma entidade, aquele pirralho.

Seus questionamentos, num tempo sem Google, eram um desafio e tanto.

Acostumamo-nos com sua presença e sumiço, até que ele evaporou de vez.

Benquerença é tão cheia de mistérios.

Conto isso porque creio que esse nosso "amigo", com suas perguntas estranhas e provocantes, foi fundamental pra nos despertar o interesse pela busca, por querer saber, por ir além do aparente... É certo que não encontraremos respostas para tudo, e as páginas desaparecidas do saber persistem até hoje. O que ficou gravado na gente, é que a gente tinha um desafio pela busca. 

Lembrei dessa história porque, nesses tempos esquisitos, haja o mundo a falar de ciência: de pesquisa, de randomização, duplo-cego, multicêntrico. Essas coisas que nos deixam catatônicos. 

Pra mim a ciência é cheia de mistérios, assim como esse amigo do elo perdido. Uma hora é uma coisa, outra hora é outra coisa, depois não é nem uma nem outra e sempre tem um perigo, uma escuridão no caminho - um medo de ir em frente por causa da sussuarana e dos descaminhos. A ciência, de uns tempos para cá, começou a rebuscar em mim, e eu a pensar onde tudo começou. Começou na casa do Caíca, lá em Benquerença, quando investimos no Maricélio e não deu em nada.

Lembro bem da sua última pergunta, em meio a uma porrinha pra ver quem ia comprar o Q-Suco da merenda junto com pão-doce. Ele, sem a menor compostura, perguntou de chofre: "Que horas morreu a Renascença?"

 

Corisco e Labareda

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