sexta-feira, 17 de novembro de 2023

De Corisco a Hamlet: a vida privada da quimioterapia.

 Todo remédio é veneno disfarçado.

Paracelsus, médico do século XVI.



Todo veneno pode ser um remédio disfarçado.

Siddhartha Mukherjee, médico indiano.


Por falar em conflito Israel-Hamas, o que aconteceu na primeira guerra mundial merece ser revisitado. O gás mostarda, introduzido pelos alemães, hoje proscrito dos conflitos (por causar envenenamento, reduzindo a capacidade de combate do inimigo), era um terror. Milhares morreram

Se ali foi o início da guerra química, também foi o pré-laboratório da "oncologia química"... 

(Faz bem saber que as ondas de ontem banham o hoje em busca de amanhãs, atina o poeta Corisco)

Alguns aliados, feridos da primeira guerra, que inalaram o gás mostarda, foram levados às pressas aos EUA para estudos - outros foram à necropsia, infelizmente. Entre os sobreviventes, porém morreram tardiamente, os glóbulos brancos haviam praticamente desaparecido do sangue, e a medula óssea estava depauperada. Conclusão: O gás causava aplasia medular grave.

(Abriu-se a ferida, reluz Corisco...)

...Mas Louis Goodman e Albert Gilman, da Universidade Yale, estiveram interessados em estudar o fenômeno. Tiveram a dedução que o efeito  nocivo da mostarda poderia ser utilizado num ambiente hospitalar, em doses menores e monitoradas, para envenenar o excesso de glóbulos brancos de natureza malignaO duo observou alguns casos de regressão de leucemia em doses clínicas. Os resultados ficaram em sigilo até o fim da segunda guerra. Publicaram os dados em 1946. Foram-se 30 anos na corrida contra o câncer.

A observação científica acendeu a palavra "quimioterapia", logo incluída no dicionário da farmacologia médica, exatamente por ter origem como agente químico de guerra. Com isso, a conexão entre a guerra química do campo de batalha com a guerra química do corpo humano tomou prumo, e uma ficou refém do palavrório da outra. Ou seja, na fronteira entre esses dois temas, definir o momento em que a palavra de um passa a ser de outro é semelhante a criar fronteiras no espaço. Então ressignificados foram criados: "alvo cirúrgico de guerra" e "aliança de combate ao câncer" são dois exemplos do que se ouve nos jornais que noticiam a guerra e nas associações médicas envolvidas com a cancerologia. 

Assim sendo, o discurso de Paracelsus, lá na epígrafe, dá voz e vez a Mukherjee, ao completar uma especialidade para tratar o câncer, vez que cirurgia e radioterapia já tinham seus papeis definidos

A proto-especialidade, que aqui cognominei de "oncologia química", edificou-se no subsolo do Childrens' hospital, pelas bermas da avenida Longwood, próximo à Escola Médica de Harvard e Hospital Brigham. Tudo por conta da abnegação de Sidney Farber, um patologista que abandona o formol e o microscópio em 1947 para se entrincheirar de vez na guerra contra o câncer.  

primeira alça de mira de Farber foi a leucemia linfoblástica aguda — raro tumor sanguíneo que ocupava o centro das atenções do Children's Hospital, em Boston. Ele usou com pioneirismo um derivado do ácido fólico, aquele mesmo que se usa para tratar anemia. De Farber de ontem nasce o Instituto Dana-Farber de hoje, conhecido centro mundial de pesquisa do câncer.  

O problema da mostarda e outros era o efeito colateral devastador, por demasiada toxicidade aos tecidos sadios. Eram verdadeiros bombardeios ao território humano, tal como a guerra, sem diferenciar células malignas das sãs. O inimigo câncer é ardiloso, por isso precisava de abordagem em proporção maior, como bem grifa Sheakspeare, em Hamlet: 

Males que crescem desesperadamente só podem ser eliminados com mecanismos desesperados.

Até se chegar à terapia-alvo, que usa drogas para bombardear seletivamente células cancerígenas que sofram mutações, provocando menor dano às células normais

(O que dirão que fomos dará o tom do que seremos, finaliza Corisco) 

Na terapia-alvo, o termo "alvo" nasce da guerra, mas a própria guerra não o incorpora, por não dispor de meios que separe as células terroristas da população civil. É o custo da teoria hamletiana; foi o que se grifou na história da oncologia.

sábado, 4 de novembro de 2023

O tubernáculo dos milagres

O vau do mundo é a coragem...

Guimarães Rosa, em: Grande Sertão: Veredas

Duas enfermidades desoxigenam minha humanidade: câncer e tuberculose. Por isso, toda casa que cuida desses enfermos merece gabo, amplexos e apoio. Cognomino tais lugares de tabernáculo da medicina, onde se guarda a hóstia sagrada da cura.

O câncer me fez diferente não só por viver seu cotidiano, mas também por ter lido O pavilhão dos cancerosos, de Alexandr Soljenitsyn. A obra se passa no Ubezquistão de 1950, ao expor uma doença totalmente abandonada. Depois veio O imperador de todos os males, de Siddhartha Mukherjee, já com o olhar contemporâneo da esperança. Obras para se entender o câncer no aspecto histórico, social e científico. 

Sobre a tuberculose não basta A montanha mágica, de Thomas Mann ou o poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira, mas também conhecer os sanatórios, que hoje ganham outra feição e abrem leitos para os oncológicos. A tuberculose já chegou à cura medicamentosa; o câncer vem ganhando efeito, mas a peso de custos excruciantes, por isso as apostas seguem pelos caminhos da cirurgia. Da tuberculose restaram apenas as sequelas e alguns casos de resistência a drogas. É quando a cirurgia pede vez.

Outro dia fomos bater em Macapá. Um ex-aluno, o Fábio, me ligou para ver um caso de sequela de tuberculose que desafiava seu bisturi. Ele pôs na sala e, junto com a minha esposa mais o Nicolás, médico-residente do Chile que passava temporada em Belém, pegamos o pássaro de ferro e pousamos na rua da FAB, no Alberto Lima. Quem nos recebeu foi um velho amigo morador da Lagoa dos Índios que, no interstício das horas, desembrulhou o passado estudantil com boa prosa e muita gargalhada.

Na sala de cirurgia travamos batalha. Operação de quase cinco horas. Outra batalha foi contra anestesista - até para isso os coitados dos tísicos levam ferroada. 

Zarpamos de volta, mas a paciente ficou muito grave, apesar do empenho da equipe do CTI. Costumo chamar esses lugares de Tabernáculo dos Milagres. Para tuberculose, Tubernáculo dos Milagres, mesmo que a morte sempre rodeie. Na mesma semana, já em Belém, operamos um segundo caso, também desafiante. 

Quem acreditou que não seria difícil? Cada milagre é uma conta no misericordioso colar de Deus.

Há alguns anos ouvi um aluno me perguntar, ao pé do ouvido, por que só alguns operavam tuberculose. Levei dez anos mastigando esse pensamento. Ontem o reencontrei e ele abriu o jogo: “na realidade, eles empurravam adiante, pois dá muito trabalho”. Sempre lembro de Nietzche nestas horas: E aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.

Não é que se goste de operar tuberculose, mas ela é chamamento para o octógono em que usamos a luva de látex para lutar contra um inimigo casca dura. É uma operação mais trabalhosa e requer habilidade desafiante: jogo de mão, perna e fôlego. Por isso, de uns tempos para cá, para enfrentar as provocações da cirurgia da tuberculose, resolvi imputar o pensamento socrático na caneta de Guimarães Rosa: “Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa”. Por isso, à luta. 

Guardei a frase rosiana como se fosse cruz e alho, só para nocautear vampiros que vilipendiam os sequelados da tuberculose. Essas orações literárias nos levam a viver com mais músculo para espantar morcegos e sanguessugas e, assim, não sair desse mundo com malfeituras tatuadas no peito. Há de se viver para criar calos e anticorpos, pular fogueiras e afugentar bruxas.

sábado, 26 de agosto de 2023

Carta a Harvard - pra celebrar "Immersion Course in Minimally Invasive Surgery for Latin America"

                 "[...] this course was absolutelly enlightment. It is beautiful and a privilege to whitness the development of doctors commited to human health and to medical community, and most gratefull to you all for including the latin american community. We are poor, we are behind, but we have the will to carry on."

                         Jasna Radich, cirurgiã chilena, in: Immersion Course in Minimally Invasive Surgery for Latin America.

      

Radich, em suas palavras, deixa um pedaço de latinidade entre os pilares jônicos da escola médica de Harvard – Leia-se Brigham Hospital. Pela contrapalavra, ela sussurra tantos outros dizeres que à contraluz acabamos avistamos outros mundos em suas sombras. E, mesmo na penumbra, vêem-se vestígios lá fora.

         A mensagem ocorreu ao final do curso, por rede social, destinada aos idealizadores do programa, quando já havíamos juntado as tralhas, desmontado a barraca e entulhado a roupa na mala. Ao lê-la debrucei-me à janela, defronte à Arcadian Street para degustar o ouro vivo da cultura médica, a ponto de lambuzar-me feito criança. Sentimos exalar o buquê da lembrança que embalou nossos abraços naquela despedida.

       Foram as últimas palavras? Foi dita com intensidade ou em vão? Ou Estariam os latinos apenas à procura, em si, de abrigo para hospedar essa sabedoria secular? E o que o brasão magenta Ve-Ri-Tas tatuará em nossos pulmões? Teremos ressonância ou falaremos ao vento até faltar o ar?  

    Os dizeres de Radich sussurram no ouvido de todos, desde 2015. Foi quando uma trinca de cirurgiões liderou o movimento na América do Norte, partindo do Canadá (Universidade Laval-Quebec), com o objetivo de estender o braço, mão e coração à América Latina. Portanto, a voz deixou eco, lógico.

     O tema central é a educação médica voltada para o tratamento cirúrgico do câncer de pulmão, com objetivo de atualização clínica, cirúrgica e científica. Após a quinta edição, o curso teve que pausar e esperar o vento torporoso da pandemia passar. Hoje, 2023, sai da Laval (Quebec) e se transfere para Harvard (Boston), por conta da ida de Paula Ugalde, a latina idealizadora do programa. Para os líderes do evento, eu convidaria o poeta Manoel de Barros a expressar o que vivi: "Já pensou na alegria de uma árvore se mil pássaros fizessem ninhos nela! Seria a própria orquestra do amanhecer.”

        Decerto aqueles amanheceres de nossas caminhadas até o anfiteatro foram tingidas pelas casas sem muros adornadas por flores vivas e árvores de intenso verde que a cidade de Boston expõe. Itinerávamos pela rota de nossos desejos até bater à entrada principal, onde ainda se vê os pilares que bem lembram o templo de Partenon - referência ateniense à arquitetura ocidental. Sentados, convivíamos com a palavra e seus sentidos à contraluz, em versão anglo-latina amparada pela sedenta busca do conhecimento.

A edição de 2023 trouxe mais de 75 inscritos, segundo Arianne Pearson, assessora do evento, e mãe da Raphaelle. Além dos cirurgiões locais Scott Swanson e Jon Wee, uma plêiade de convidados participou, a lembrar Jonathan Spicer (Montreal) e Luís Herrera (Flórida). Todos com a anuência de Rafael Bueno, coordenador da cirurgia torácica, e quem abriu as portas do Bornstein Amphitheatre, para sentarmos.           

     Ao fim, grifou Alejo, cirurgião colombiano: “Paula, gracias por el espíritu educativo que tanto nos beneficia y por las atenciones recibidas”. Também chamou atenção durante todo curso - hora do recreio - uma criança que acompanhava ativamente o movimento. Tinha os olhos da cor do mar e as bochechas do tamanho do seu sorriso. Ao final, a pequena Raphaelle deixa mensagem em francês, criptografada em seu sorriso: Merci, à la porchaine. Ou seja: ano que vem tem mais.

Roger Normando, professor de cirurgia torácica - Hospital Barros Barreto, Universidade Federal do Pará, Brasil.


    



 


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Agosto Branco, mês da consciência do câncer de pulmão

(*) Deus há de perguntar: “o que fizeste da tua dor?” E você se sentirá desafiado em algum momento a responder.  Muitos ficarão sem palavras, mas você que sabe onde dói, onde doeu, onde está doendo. Você saberá responder. Acolheu? Rejeitou? Lidou? Que fazer com a dor? Ela, ao menos, entrou como figurante em sua história? Meio de te abalar ou apenas um estorvo a evitar? Muitos tentam apagar seus rastros por conta das lembranças penosas... Pensa aí, pois você poderá ouvir Deus a te perguntar: "que fizeste de tua dor?”

 O texto acima é uma adaptação poética. Descreve o ritual de passagem, dor maior. O eu lírico reescreve com os traçados vivos de cada sístole. Como não conseguiu apagar os rastros, as lembranças, como fotografias amontoadas num baú, verteram-se em escrita, seguindo como reminiscências penosas de uma perda por câncer - o de pulmão.

  A história dos tumores malignos do pulmão permanece protagonizando mais histórias com o mesmo final. Eles representam a causa maior de óbito por câncer entre homens e a segunda entre as mulheres, tendo relação direta com o fumo. A criação do movimento AGOSTO BRANCO chega não só para ressaltar essa terrível doença, pois o argumento é forte, mas também para dizer que nossos olhares não estão em conformidade com o cenário atual.

No caso da escolha da cor, chega-se por trajetória já conhecida: outubro rosa e novembro azul, respectivamente para os cânceres de mama e próstata. A mensagem farpante é para conscientizar e mobilizar a população sobre os riscos do uso do cigarro e a gênese do câncer de pulmão. Essa guinada sufragista não poderia deixar de acontecer, sabendo-se da alta incidência e mortalidade, tratamento medicamentoso caríssimo – e distante da realidade SUS –, morte agonizante, dor e metástases. Ou seja, se uma tragada carrega mais de 60 matrizes cancerígenas (formaldeído, benzeno, cádmio, níquel, chumbo, etc.), os matizes da cancerização precisariam ser apagadas pelo veio da prevenção.

Mas pelo lado da prevenção os resultados são questionáveis. Diz-se que o mundo está fumando menos desde as últimas campanhas, conforme a sétima edição do relatório da OMS, em que 17% da população consumiam a substância em 2021, ante a 22,8%, em 2007. Isso é suficiente para os anos todos de restrição? Não temos como melhorar? Se a esperança repousa nesse modelo de prevenção, sem falar do novo desafio dos cigarros eletrônicos, ainda demoraremos a chegar a números aceitáveis. Jesse Teixeira, em seu livro intitulado “Câncer de Pulmão” (1971) cantou a pedra ao aferir que a maior esperança estaria entre os jovens: “Seria falacioso pensar-se em medidas profiláticas contra o câncer de pulmão, pois não se vislumbra no horizonte, a mais tênue esperança de que a humanidade, especialmente a sua fração mais jovem, se disponha a renunciar ao hábito de fumar”. Seria Teixeira pessimista ou realista?

Com resultados questionáveis das campanhas para apagar o cigarro, a ideia, agora, volta-se para tratar os casos precoces. Para isso, três associações médicas lançaram o desafio do rastreamento por tomografia. O programa usaria a lupa de Sherlock Holmes nas salas da radiologia para buscar lesões suspeitas em assintomáticos, numa abordagem em massa. O programa Propulmão, apoiado por entidades médicas, é exemplo ímpar. Até dispõe de um caminhão com um tomógrafo na carroceria, totalmente adaptado, pronto para pegar a estrada da solidariedade. “Nossos esforços para vencer o desolador panorama atual devem convergir no sentido de investigar novos métodos para melhorar os resultados da cirurgia”, disse Jesse Teixeira, em há 50 anos. Por isso as vozes da mídia na forma de AGOSTO BRANCO, por isso rastrear a população de risco... Por isso nós em solidariedade.

Toma um fósforo, acende teu cérebro, pois podemos avançar na nova ideia do rastreamento. A trinca envolvida na causa é a de cirurgiões torácicos (SBCT), pneumologistas (SBPT) e radiologistas (CBR). A proposta é aclamar a sociedade civil para realizar tomografias em larga escala em fumantes acima de 50 anos de idade, cujo objetivo seja o de flagrar tumores em fase inicial, com altas chances de cura. É fácil entender que, se o tumor é detectado precocemente, ou mesmo num momento em que a neoplasia não tenha ultrapassada as fronteiras do pulmão, a cirurgia exerética é a última quimera. Por isso, vale usar a mídia para marcar esse lema no meio do peito da humanidade, sem deixar as lideranças públicas fora desse ideário.

Sabe-se que os dividendos da cirurgia do câncer pulmonar avançado são, todavia, muito escassos, dito em todas as séries da literatura. Em que pese cirurgiões conseguirem estender ao extremo o limite anatômico e técnico, a possibilidade de ressecar o câncer avançado aumenta a chance de malogros. Por sua vez, ao deixar toda essa população nas mãos do tratamento clínico, de custo elevado e resultado clínico insatisfatório, apesar dos últimos protocolos, é o que mesmo que cortar os pulsos da saúde pública.

A mídia ajudaria, ao receber o AGOSTO BRANCO, familiarizar a sociedade com a importância simbólica da doença e seus matizes. Se hoje nasce em gotas de floral de Bach, à frente o objetivo é atingir em cheio a artéria da consciência.

Se o “cessar fumaça” da prevenção ficou puído pelo tempo, pois já não se sonha mais em vencer a guerra contra o tabagismo, todavia não precisamos enjaular esse tempo em nossas memórias, pois há o olhar que agora renasce pelo rastreio da solidariedade. Há de haver grande impacto na saúde pública, e mirar aquela lamparina no fim do túnel, a se transformar em luz com todos os seus espectros de cores. Seria então o consolo de todos que lidam com a miserável impossibilidade de não poder diagnosticar e extirpar um tumor para remediar a vida de tantos.

Roger Normando. Professor do departamento de Cirurgia - Universidade Federal do Pará (UFPA)-, e editor do Jornal da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica (SBCT)

(*)Poema adaptado, de Abel Sidney, com permissão do autor.

sábado, 15 de julho de 2023

Carta a Eça

             Viajar inunda-nos de paisagens. Põe em banho-maria nossos barulhos e dá voz aos silêncios. Silêncio puxa ideias, logo... palavras, mas antes, vem o verbo amar.

     Amarante é uma cidade miúda, diriam os habitantes do Minho, gira em torno do Tâmega, um rio de águas diáfanas. Com algumas construções medievais, chama atenção a igreja e mosteiro de São Gonçalo, o santo casamenteiro dos portugueses. Entrei ali, despojado, para apreciar a arquitetura. Fiz o pequeno curso pelo átrio, e parei defronte ao altar. De repente, da porta lateral sai uma idosa, que entra no sacrário. Fitei o olhar naquela paisagem humana. 

Como se não bastasse a curiosidade pela idade, a curva anteriorizada da espinha me afogou. Era em torno de 45 graus, ou seja, caminhava olhando para o chão. Olhar para frente caber-lhe-ia um sacrifício grande, por conta da rigidez do pescoço. Ela não demorou dois minutos naquele pequeno espaço. Depositou alguma moeda, arrodeou, e completou a volta em torno do São Gonçalo sepultado, talhado em madeira. Passou a mão, agradeceu, fez o sinal da cruz e saiu com sua bengala tosca, já bastante desgastada.

Meus olhos continuaram acompanhando seu caminhar curvilíneo. O vigia, da porta de entrada percebeu meu olhar grudado nela. Ele era um indivíduo esguio, com roupas escuras, encostado à porta, sob uma luz parda; o calor flamejava lá fora. No silêncio vinha das ruas mudas, assim como o sol, que tangenciava meu olhar, se expressava e recolhia minha pupila. E O homem homem me olhava. Tinha linha magra e expressão engelhada do rosto. Um evidente desalento. O cabelo comprido, caído sobre a gola da camisa, era manifestação de um papa-hóstia, e toda a sua magreza se confundia com aquelas pilares arquitetônico, à meia luz. 

Ele tomou a minha direção. O que fizera euA sua fisionomia facial era de um rosto longo e triste, muito moreno, de nariz mouro e uma barba curta e frisada - de Cristo em estampa romântica; a testa era destas que, em boa literatura, se chama fronte: larga e lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago... E que magreza! Quando andou em minha direção, a calça curta torcia-se em torno da canela como pregas de bandeira em torno de um mastro; a aba do chapéu, comprida e aguda era grotescas. Recebeu minha curiosidade num tédio resignado. Um verdadeiro personagem dos contos de Eça de Queiroz, que eu lera na noite anterior.

Passou a mão pela testa com um gesto errante e dolente e disse, sem que eu pedisse, numa voz cavernosa: “ela nasceu em 1928. Está casada há 67 anos e nunca deixaram a aldeia que os viu nascer, próximo dali. Já viu muitas coisas. Há relatos até de ouro. Já houve outro café; já houve restaurante; já houve escola primária, já houve parreiras. Naquela aldeia, lugar de arvoredos, ouve-se ‘já houve’ muitas vezes, em muitas vozes - demasiadas vozes. Já houve mais gente. É a evidente desertificação de Portugal. Aquele local contabilizou cinco nascimentos no ano passado. É uma terra a se encolher no planeta. Nasceram cá e cá morrerão. Nunca emigraram. Nunca saíram dali. Conta-se: foi uma vida de muito trabalho na lavoura, por isso, nunca passaram fome. Só comem alimentos orgânicos. Já houve mais buliço na aldeia deles, porém hoje impera calmaria. Aos domingos fica passeando entre o casario e pequenas vielas, atenta aos nomes das ruas. Aprecia ardósias, que servem para cobrir as casas e as placas de xisto, até chegar à igreja de São Gonçalo. Ela vem para ser abençoada por São Gonçalo, o santo casamenteiro, e sempre deixa uma moeda de agradecimento.

Meu olhar foi ficando vazio. A cada frase, mais distante. Até que ele finalizou, após eu começar a me deliciar naquela história. Minha esposa chegou. Saudou aquele homem.

- Tem uma moeda, aí? Perguntou ele.

- Sim! ela respondeu.

Depois seguiu para o mesmo sepulcrário de onde saiu a idosa. Deixou lá a moeda doada, e desapareceu pela mesma porta que entrou a idosa. Meu casamento se curvou a São Gonçalo.

Viajar inunda-nos de paisagens. Põe em banho-maria os barulhos e dá voz aos silêncios. Silêncios puxam idéias...

domingo, 25 de junho de 2023

TRAQUEOPLASTIA: do projeto ao programa médico-social

              Traqueoplastia (ou laringotraqueoplastia) é terminologia médica, e significa restaurar e remodelar a traquéia e/ou laringe (vias aéreas) por meio de cirurgia e/ou endoscopia. É indicado em pacientes acometidos por  afecção inflamatória/infecciosa, traumática ou cancerosa.

Com número grande de doenças nas vias aéreas como resultado de internções prolongada em CTI, o governo do Estado do Pará criou um programa chamado TRAQUEOPLASTIA, por meio da Secretaria Estadual de Saúde (SESPA), após intervenção do Ministério Público Estadual (MPE) a partir de 2015 por meio judicialização. O programa social iniciou em 2016.

A história começa quando o MPE ouve a queixa de cerca de seis familiares, liderada por uma jovem estudante de direito, de origem marajoara, cujo irmão, um vaqueiro, havia levado um tiro na cabeça ao defender de assalto a fazenda de seu patrão. Foi acudido e levado ao maior centro de trauma de Belém. Lá ficou entubado por vários dias. Sobreviveu a todas as complicações possíveis, mas saiu com seqüela na respiração, por isso carregava uma cânula de traqueostomia no pescoço, que também ocultava a voz. A irmã, que tratou de procurar um serviço público para sanear a questão, achou no hospital universitário Barros Barreto (UFPA) a especialidade Cirurgia Torácica. Depois de quase um ano na lista de espera, resolveu procurar seus direitos no MPE.

Não obstante, a jovem estudante tentou avaliar a possibilidade de tratamento privado, mas logo percebeu que não tinha reserva financeira pra arcar com tantas despesas. A complexidade do caso, assim como o tempo necessário para o tratamento, deixou-a angustiada. Ganhou espaço num dos jornais da cidade para denunciar a lentidão do hospital e o grande drama que viviam esses pacientes.  A diretoria do hospital universitário nos convocou para responder à imprensa, pois aquele hospital não era referência em cirurgia para correção de defeitos da traqueia - aferiu o diretor. Em princípio discordamos, mas depois revimos as condições hospitalares, pois este tipo de operação precisa de material específico e cuidado diferenciado. Percebemos que ali estávamos diante de um tema complexo, cujas complicações são elevadas e graves, mesmo em centros mundiais referendados.

Pela falta de um centro de referência e o isolamento geográfico da Amazônia, o MPE impôs à SESPA a criação de um centro especializado em Belém. Coincidentemente, por ter expertise no tema, fomos convocados, agora para montar o projeto. Com multas bastante elevadas estipuladas pelo MPE, a SESPA teria que se desdobrar para montar o serviço, do contrário, o Estado teria que ressarcir aquele jovem vaqueiro e mais meia dúzia que amontoaram queixas ao MPE. Asfixiada, a SESPA se viu na obrigação de criar um programa para durar seis meses, especificamente para tratar aqueles pacientes judicializados e dar resposta ao MPE.

Demorou mais de ano entre idas e vindas à SESPA, pois o projeto teria que ainda tramitar por diversos setores do governo até se concretizar. Em agosto de 2015, recebemos chamado que havia sido aprovado. Em outubro de 2016 o serviço foi implantando, inicialmente para durar apenas seis meses.  

Seis meses após o início, mais de 20 pacientes traqueostomizados se apresentaram ao ambulatório. E o que era para seis meses dura até hoje, com novos e novos casos, cada vez mais complexos, até se transformar nessa representação nacional.       

Durante esse período já realizamos mais de dói mil procedimentos endoscópicos, o triplo de consultas e cerca de 120 pacientes com operações abertas complexas.

            Realizamos simpósio com transmissão ao vivo para todo o Brasil; recebemos mais de 20 cirurgiões torácicos brasileiros e alguns estrangeiros. Vários residentes já passaram por lá, de diversas especialidades ligadas às vias aéreas. Dois deles vieram do Chile, e passaram dois meses em atividade, participando dos procedimentos endoscópicos-cirúrgicos.

            Recentemente, durante o XXIII de cirurgia torácica da SBCT (Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica), realizado em São Paulo, fomos laureados com o prêmio Antonio Ribeiro Netto, pelo desafio social do programa social na Amazônia. Igualmente, ganhamos o terceiro lugar entre os pôsteres apresentado, que deverá se tornar um artigo científico.

O hospital Galileu, onde é desenvolvido o programa é um hospital de 100 leitos, localizado na Grande Belém, distante 20 minutos do centro.

No primeiro dia de atendimento, já havia vários pacientes. Escolhemos como primeiro caso para operar - o mais simples. Depois vieram mais casos, até pegar embalo. Nosso maior medo, o de encontrar casos bizarros e complexos, foi lentamente superado a cada resultado cadenciado pela boa resposta pós-operatória. Três elementos foram fundamentais, do ponto de vista técnico: estudar bastante, ler obstinadamente outros autores, praticar e convidar grandes cirurgiões de fora de nosso Estado para analisar criticamente o programa. Do Oiapoque ao Chuí, literalmente, fomos recebendo cada um. As operações complexas foram ficando simplificadas, até se tornar rotina. Outrossim, desenvolvemos adaptações às clássicas técnicas, a qual tomamos como melhoramentos.

O programa se desenvolve em apenas um dia da semana, aos sábados; realiza-se cerca de três a quatro procedimentos endoscópicos ou cirúrgicos por cada dia, mas sempre estamos ultrapassando a meta. O programa sobrevive com tecnologia básica, pois ainda não temos acesso a dispositivos de ponta. Ou seja, o lema é: fazer bem o básico.

Mais da metade dos pacientes procedem do interior do Estado, que é composto por oito milhões de cidadãos e tem o tamanho equivalente à vizinha Colômbia, o terceiro país em extensão da América do Sul.

Três cirurgiões titulados pela SBCT compõem o serviço e são os autores deste livro. Existe um CTI de cinco leitos específicos para cirurgia de vias aéreas, além de enfermarias com médicos clínicos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos com vivência no tema e visitas diárias. O Hospital não dispõe de sala de emergência, mas há um CTI preparado para receber pacientes que necessitem de urgência e emergência, com todo material prontamente disponível para se realizar desde traqueostomia a dilatações e entubações, sempre com um dos cirurgiões de sobreaviso e a presença do intensivista.

O programa é administrado atualmente pela OS ISSAA, que sempre tem apoiado, juntamente com a própria SESPA, grande fomentador. Entretanto ainda estamos carentes de alguns pontos na área de tecnologia, por exemplo, ainda usamos cânulas metálicas em nossa rotina, já bastante ultrapassadas; carecemos de moldes laringotraqueais, de laser e de broncofibroscopia. Na área humanitária, ainda nos falta um serviço voltado para crianças, outra área delicada, pois não são poucas as que necessitam de uma abordagem com expertise.


Texto: Roger Normando, Responsável Técnico pelo Programa TRAQUEOPLASTIA e Professor da disciplina de Cirurgia Torácica - Curso de Medicina - Universidade Federal do Pará

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Minha aldeia, minha tribo...

    "Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens."    

Manoel de Barros, poeta.

    

        Morei quase cinco anos no Rio de Janeiro, logo após a graduação. Quando cheguei por lá, beirava os 24 e tinha sonhos na profissão - como qualquer um. Mas coexistiam medos: Rio é bem maior que Belém, assim como Belém é bem maior que os interiores do Acre e de Rondônia, de onde brotei. E isso é o suficiente para encarar os enfrentamentos.

        Vencida essa etapa, acenei, ao final do período de residência médica, que gostaria de voltar para minha tribo. Confesso que o chefe da aldeia carioca, um desses tupinambás aguerridos, já havia me convidado para ficar, mas suas palavras não tinham o prego que sustentasse minha alma à cruz do Corcovado. Veio também convite da universidade onde fiz mestrado. Claro que fiquei honrado, mas preferi regressar.

Já em Belém, volta e meia recebia ligação para voltar. Ainda não tinha filhos e vivia num apartamento mirrado, no Souza, bairro afastado do centro. Andava de ônibus e meu apurado vinha do trabalho como oficial temporário do exército, mais alguns plantões de CTI. Passado oito meses, recebi um ultimato, que coincidia com a Eco'92, no próprio Rio. O telefonema sacudiu minha base, mas resisti. Certamente todos poderiam me aclamar como aru. Fiquei amuado e, confesso, passei uns tempos trabalhando com um lado da cabeça, ao estilo dark side of the moon. Parecia que havia uma comichão nas minhas têmporas, a ponto de perder a concentração no trabalho.

       Logo em seguida a esposa resolveu ir ao Rio, para ficar uns tempos com a família. Digamos, matar a saudade. Pronto, era o fim! Eu disse para mim mesmo, e até hoje ela não sabe, mas achava que não voltaria mais; que ali estaria o fim de meu matrimônio. Então teria que arrumar as malas e voltar, se quisesse salvar o casamento. Era o telefonema  abençoado voltando a tilintar na minha cabeça.

        Naquele meu mundo, ninguém entenderia minha paixão pela terra, pelos amigos do futebol aos sábados, assim como as idas à Curuzu; pelas chuvas da tarde e o mormaço no toutiço; pela convivência com os irmãos e pais; a saudade do açaí e do taperebá, além dos shows do Nilson Chaves; sem falar do cheiro de maniçoba que ronda a semana do Círio de Nazaré. Como viver sem isso?

      Eu também via como coisa ardente, a possibilidade maior de crescer profissionalmente na minha cidade, após ser bem acolhido na chegada. Lá, talvez não tivesse tanta chances, em que pese ter deixado amigos que até hoje me faz reacender aquele convite de 30 anos atrás. 

      Com o passar dos anos, cada vez mais me vi fincado profundamente ao solo da indomável floresta. Talvez por ter convivido com tantos Ashaninkas e Kaxinawás durante minha infância no Acre. Provável que isso tenha me deixado meio aparentado com índios, e com enraizamento nada superficial. 

Foto: David Normando
        Isso me fez relembrar os tempos de escola, no Acre, que no 19 de abril tínhamos que desfilar pelas ruas com rostos pintados de urucum e penas de pássaros ao redor do calção ou cabeça, e umbigo de fora. Era forma de reverenciar os povos originários. Guardo em minha memória a fotografia do Paulo, um dos irmãos, vestido de tuchaua. Ele encabeçava o desfile, perfilado num jeep Willis, sem a capota. Meu pai, com sua Olimpus trip 35, eternizou aquele momento. Lá no interior daquele mundo era feriado e, para mim, ainda até hoje.

       O desfile aberto não era só encantamento de nossa infância. Hoje leio como forma de repudiar Borba Gato e os demais bandeirantes, assim como essa nova era filogenética de exploradores da terra. Escrevo assim para que jamais suma de nossa de memória o encantamento por essa floresta e por quem cuida dela. 

        Hoje são 19 de abril. Moro em Belém e sigo casado, só que agora carrego dois curumins em meu jamaxin. Cá fundamos a tribo Ya-Normando, uma frajola homenagem ao nosso pai, nascido em Roraima, berço dos Yanomâmis.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Café em pé

            Aquela manhã, em que estávamos programando visitar a Confeitaria Colombo, acordara encoberta, chuviscosa - maneira de dizer, mas manhãs não acordam, manhãs acendem o candeeiro de Deus. Acordamos nós nelas. Então, pela janela, vimos que o céu estava com suas nuvens baixas e caía uma chuvinha miúda, preguiçosa. Será que vai avançar pelo dia? Se a nossa visita ao Rio fosse nosso diário de bordo, por certo o escrivão da nau lavraria assim, a sua primeira lauda: A manhã acordou encoberta e chuviscosa. Convém não abandonar o barco.

Como se o céu estivesse desagradando a aventura de passear pelo centro da cidade, partindo do Largo da Carioca. Sempre nestes casos invocamos o céu, tanto faz que chova, como faça sol. Naquele dia, resolvemos esperar até o chuvisco dar uma trégua, mas só aconteceu no início da tarde. Então partimos, sem olhar celestial.  

A confeitaria estava lotada desde a porta - era de se esperar. Sem poder sentar, optamos por ficar em pé, tomar café em balcão de mármore e apreciar a beleza inata do lugar, ao sabor de pasteis de nata, para reverenciar Lisboa. Aquele conjunto de decoração é chamativo, apelativo aos corações luxuosos. São 125 anos de tradição, além de grandes histórias e encontros.

- Moço, o senhor tem algo para degustar, sem lactose? Perguntou alguém, bem ao lado.

O atendente, agachado por trás do balcão, o mesmo que nos serviu, levantou-se, elevou a cabeça, fitou o teto e, antes de responder, sem dirigir o rosto para a cliente, olhou para aquele luxo todo, luzes e espelhamento, de forma compassada. Pelo movimento dos olhos, parecia ter viajado alhures.

Cada um de nós vê o mundo com os olhos que têm, e os olhos vêem o que querem. Os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas - ainda que sejam de pedra -, e as altas proas - ainda que sejam de ilusão. Talvez, ali naquele metro quadrado, ele estivesse remontando o passado getulista, a remeter-nos ao Estado Novo, período pruriginoso de nossa plataforma política. Naquele lugar, precisamente no segundo andar, olhando do primeiro pelo teto vazado ao centro, com paredes espelhadas, brilhantes e extremamente limpas, Getúlio Vargas costumava reunir-se com seu séquito para desfrutar de café e diversas companhias, de modo a criar ambiente da alta política.

A confeitaria Colombo é um dos mais belos cafés do mundo. Realmente não tem como contestar sua beleza apoteótica e as diversidades de seus doces. Dá aos cariocas orgulho e história secular; mantém energizada a tradição da influência europeia em nosso modo de viver. 

- Moço, o senhor tem algo para degustar, sem lactose? A jovem senhora insistiu na pergunta. Então o jovem atendente retornou e respondeu, mantendo as costas para a visitante: 

- Salada.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Aos olhos de Golias

    Há mais de ano venho acompanhando o nódulo pulmonar da esposa de meu professor de literatura, da época do segundo grau. Ela foi submetida à retirada da mama por câncer há alguns anos, e o aparecimento da pequena mancha pregou-lhe novo susto. Com características benignas, a imagem vem lentamente regredindo de tamanho nesses quase dois anos de seguimento. Ele a acompanha rigorosamente às consultas e sempre me leva, de presente, um mimo de sua coleção, pois sabe que tenho uma pequena livraria na sala de espera de meu consultório, repleta de clássicos da literatura brasileira e universal. Tudo doação dos próprios pacientes.

    Nessa caminhada com sua esposa, vi outra lição do professor: acompanhar a sua amada, tornando leve as terras mais estranhas. Lutar juntos. Enfrentar!

    Já aposentado, os livros doados pelo professor são todos cheios de intervenções a lápis - da época ativa, em que não existiam marcadores de textos multicoloridos. Naquelas páginas me vejo sentado, assistindo às aulas. É delicioso ficar lendo seus comentários. Depois enfileiro o livro na minha pequena estante, que fica na sala de espera sem wifi e televisão, exposto a novos admiradores.

    Outro dia ele levou um Álvares de Azevedo.

    Curioso sobre a morte do poeta aos 20 anos de idade, ele me sapecou uma dúvida quanto à causa: “alguns dizem que foi a queda de um cavalo, outros  tuberculose”. Ao lado do John Davis (Clinical Surgery), um livro de mais de três mil páginas que guardo há mais de 35 anos sobre minha mesa, expliquei-lhe cientificamente a relação entre o traumatismo craniano provocado pela queda do cavalo e a tuberculose, numa relação incomum, mas plausível. A queda ocorre baseada no estágio avançado da doença, que evolui para grave desnutrição e, consequente fraqueza muscular e quedas. O próprio escreveu sobre a evolução avançada de sua tuberculose:

“Embora – é meu destino. Em treva densa

Dentro do peito a existência finda...

Pressinto a morte na fatal doença.”

     Claro que nos idos de 1852 a “Tísica” tinha prognóstico diferente dos tempos atuais. Por isso, senti-me gigante naquela explicação, ao demostrar conhecimento clínico ao meu admirável professor. Era como se tivesse batido no peito, mostrando que eu sabia muita ciência para explicar muitas coisas, entre as quais, o estudo do nódulo pulmonar e a morte de Alvares de Azevedo. No final, ele arrematou: “ainda bem que sabes muito mais de literatura, afinal, foste meu aluno...”

    Toma-lhe-te! Bem no olho!!!

    Ao fim do dia, senti-me Golias. Aquela pedrada agravou minha cegueira num dos olhos. O outro vai tentar compensar a perda. Ainda há tempo? Só se encompridar a vida...

    Em tempo: vale relembrar que hoje, 24 de março, é o dia mundial de combate à tuberculose. O Brasil registrou, em 2022, 78 mil novos casos — aumento de 5% em relação ao ano anterior.



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

“Chão de Mangue” após meu luto pela Fox

A verdadeira viagem de descobrimento 

não consiste em procurar novas paisagens, 

e sim em ter novos olhos.
- Marcel Proust

Estive no encerramento da Livraria Fox, que por alguns anos passou a fazer parte de minha rotina do ócio criativo. Virou comichão, quando me achava vazio de conhecimento, farto da rotina e precisando rever amigos. Por lá levei Dom Elias de Pindaré, cirurgião maranhense que tem desvio para a literatura, para tomar um café. Por lá me esbarrava com raras amostras de leitores: Corisco e Tito, os mais conhecidos.

Era início da noite. Estava socada de gente. Passei o olho naquele mundão e, de supetão, me veio o indomável Augusto dos Anjos: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável enterro de sua última quimera”. Era o fim. A despedida.

Em meu último momento fotografei do celular. Depois tomei rumo e atravessei a dr. Moraes, em direção ao carro. Não comprei nada. Fui em estado de luto. Chovia forte e estava sem guarda-chuva, mas o que menos importava ali era molhar-se. Ao apertar a ignição revi a luminária verde: Fox. Augusto do Anjos saiu do inferno e mandou novamente: "Acostuma-te à lama que te espera!”. 

Meu principal objetivo ali sempre foi buscar o desconhecido. Faço sempre o mesmo quando vou ao Rio, na livraria da Travessa, de Botafogo. Também em São Paulo - cuja livraria Cultura também acabou de falir -, Coral Springs (Barnes&Noble), Londres, Paris – margeando o Sena. Tenho queda por sebos. Ali sento e vejo o que não está na mídia. O bom é descobrir com os olhos de Proust. Na da Travessa descobri Ilze Scamparini; na daqui mergulhei em excelentes autores, como Edyr Augusto. E agora, com o enterro da Fox - como um Baudelaire ao longo do Sena -, onde flanar por livrarias?

A flanagem literária é exercício de raridade - assim penso. Ela começa desgovernada, ao léo, e vai tomando prumo à medida que se identifica determinado autor, tema, até que você se vê enfronhado nas páginas de um livro.

Então me veio a pergunta - enquanto a chuva caía e já dobrando a primeira esquina: qual seria o primeiro livro a me encantar depois do fim da Fox? E não é que naquela mesma noite, meu irmão, por uma navalhada do destino, presenteia-me uma autora desconhecida e amiga dele!

            Há quem se desmanche em neve, quem se solte em pétalas.
            Eu deslizo de mim em pedras secas: pedaços de chão rachado.

Impossível juntá-los, perdem arestas. 

A química me despedaça.

Os átomos entram para curar.

Matança de construções biológicas 

para alcançar fugitivas nos labirintos.

Corpo ligado à alma por fio em curto-circuito.

Ninguém vê pedaços rolando da falésia terracota.

Uma vida inteira para desmanchar. Só deslizar da mesma secura.

Sem descanso, arrimo, brisa, noite. Devagar.

 

O livro chama-se “Chão de mangue”. A autora é Simone Lopes. Para quem tem quereres por Machado de Assis, vê-se traços que testemunham a sutileza de nosso inconfundível escritor. Entretanto, o que me mais me fisgou foi como a personagem Marisa tratou o câncer de mama com disciplina em suas dores e obstáculos; sem pieguices. Pudera, Marisa é uma professora de gramática e sabe o quanto significa a boa escrita... E sabe também quanto pesa obedecer a boa ciência médica.

A capa é de bom gosto e lembra raízes do mangue, mas poderia muito bem representar os ductos lactíferos da glândula mamária, por onde escoa o néctar que alimentará a vida. 

Quando a delicadeza do final do livro surgiu, fez-se silêncio em minha poltrona de leitura. Eu estava só, a me perguntar como a dinâmica da contextualização é capaz de vestir as horas enquanto se lê. Senti-me preso àquele momento e minhas pobres raízes agarraram-se em meus dilúvios. Durante toda aquela leitura, meu santo bateu asa e foi morar no Atacama.

(Atenção, atenção! Não sei onde encontrar o livro, tampouco se a autora, mergulhada em sua dimensão, queira se apresentar à literatura. Mas quem convive com Tito, Corisco e com a Fox, sabe que a leitura e a literatura não têm dimensões e fronteiras, pois o melhor mesmo é ter novos olhos).

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

“Só sei que nada sei”

Tenho um gosto danado pelo comum, pelo que acontece e não se festeja. Isso tudo escorre de mim quando eu chego ao hospital no início da manhã, hora em que há suavidade no céu infundo e o verde denso do estacionamento repleto de árvores gigantes. Hora em que há mais espaço pelo arvoredo, onde o doce pungimento das almas penadas ali desfilam. A paisagem é um estado da alma e chegar cedo é bom motivo para conhecer o desafiante Quantonio, que aos 17 anos parou de comer sólidos. Por conseguinte, desaprendeu a mastigar. Chegava naquele momento aos 30, mas sofria com a possibilidade de não mais poder engolir o pão de cada dia. Foi-lhe sapecado o diagnóstico de “estenose de esôfago”. Estenose em medicina é o mesmo que estreitamento, obstrução. Uma das causas é tumor maligno. E essa possibilidade foi aventada para o Quantonio.

Dizia que melhorava por uns tempos, depois voltava a ter dificuldades para engolir. No máximo pastas ou sopas. E assim deixava a vida lhe levar. As endoscopias com dilatações sempre mostravam a mesma coisa, até que ano passado ficou crítico: só passava líquido. Até o açaí do grosso ele abandonou, com medo de ficar entalado. Tomava só do fino. Agoniado, acabou internado para usar métodos médicos. Passaram a sonda pelo nariz e a comida, liquidificada, chegava até o estômago feito um escorrega-bunda, atravessando o órgão oco e estreitado.

Na sessão de discussão de casos complexos em câncer ficou descartada tal hipótese. Menos mal, porém o último exame já mostrava que 75% do diâmetro estava ocluído. A doença progredia e ele estava cada vez mais magro. Fez um exame sofisticado chamado ecoendoscopia. Não deu para retirar fragmento para exame, mas se viu que por fora do órgão havia compressão. Já era alguma coisa - a luz de candeeiro no meio da floresta escura. Então só restava a cirurgia.

Antes de marcar a operação, normalmente às sextas-feiras, consultei o calendário, pois era mês com sexta-feira 13. Havia uma salvadora sexta antes da treze. Agarrei-me nela. Não gostaria que os anjos do mal, durante a cirurgia, ficassem azucrinando ao pé do meu ouvido, destilando premonições.

Diante de casos complexos, assim, é sempre bom ligar para amigos. Então consultei um com expertise em esôfago. Fui desanconselhado a operar. Sugeriu que repetisse as dilatações até ficar permeável. Aquilo seria meu fim - aliás, o de Quantonio. Não tinha mais como desmarcar, após algumas dilatações sem sucesso.  Seria uma decepção muito grande para ele, que apostou tudo no bisturi, pois jamais se via tomando açaí por sonda e sem farinha de tapioca.

Então fui pro campo ressabiado e com a certeza de que não sabia o que fazer - agora somada a outra opinião. Acordei com os sinos da Sé, tomei café; dei no pé. Fui com fé.

Montamos o sistema de vídeo à câmera de alta resolução e começamos: Eu, a Priscila, residente de cirurgia geral e vários alunos - por se tratar de hospital universitário.

Não obstante um e outro me perguntavam o que ia fazer. Dizia: biopsia. Nada mais que isso. Fui peregrinando calmamente com os instrumentais, procurando entender aquela anatomia razoavelmente deformada. Era como se estivesse me apoiando ao caduceu, pelo caminho de Santiago de Compostela.

Fragmentos para amostra foram retirados e o órgão liberado de amarras cicatriciais, endurecidas. Findou aí. Depois despertaram o Quantonio. Saí de campo com a certeza absoluta que deveria ter dado ouvido ao meu amigo mais experiente. Seria desastre maior se tivesse ocorrido alguma outra complicação, já que o tórax é área de cano grosso e qualquer vazamento pode custar vida. Aí eu me jogaria de cabeça do segundo andar. 

No dia seguinte, ao despertar ainda com a sonda, Quantonio sentiu a estranha sensação que a sua saliva descia suave. Fez um teste com um copo d’água; em seguida foi café e um pedaço de pão de sua acompanhante, que estava dormindo. Abocanhou sem dó. Desceu macio. Ali se viu atravessando uma ponte, agora mais alargada, bem devagar, à velocidade mínima autorizada para dar ao tempo a melhor tática para restituir o seu fluxo de vida e a sua cura.

Permanecera em silêncio e com sonda por mais dois, até a alta. Acordava cedo surrupiava o pão de todos da enfermaria só para testar a deglutição. Nada de entalo. Ele não se conteve e contou a verdade ao médico que passava visita. O médico tomou um susto e disse-lhe: “todas as coisas relegadas ao abandono, se continuam a respirar, remete-nos a Deus. Estás de alta”.

Ou seja, os físicos, em suas exatidões científicas, explicam, escrevem, detalham leis, prescrevem mundos e equações, mas existe pequena quantidade que não cabem na medicina, pois algumas vezes estamos diante do mistério, do escondido, sem deuses oniscientes a legislar sobre o futuro do presente. Por certo, ao longo da jornada aceitamos o incerto, o duvidoso. Certezas, como a de Quantonio, não têm encantos. Seríamos pobres sem a clareza do talvez. Embalar palavras para alimentar epistemologias serve-nos apenas para dar coragem para atravessar cada novo dia que alvorece.