segunda-feira, 24 de março de 2025

Dia mundial de combate à tuberculose, data para reflexão


Falar somente uma linguagem rouca,

Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!

Casimiro de Abreu, em:No leito

 

O dia mundial de combate à tuberculose é 24 de março. Mais que doença, uma entidade que acompanha “pari passu” a humanidade: dos faraós aos guetos, passando pela pandemia de Aids e a recente Covid19.

O bacilo da tuberculose, o renomado BK (Bacilo de Koch) não desiste. Ele vem se renovando desde quando foi encontrado na tumba de Tutankâmon. Levando em consideração a massiva presença na África, podemos aferir que é uma infecção negligenciada pela sociedade moderna.    

Quando a soberba da humanidade achou que houvesse derrotado o inimigo com a moderna quimioterapia antituberculose, o bacilo reapareceu e associou-se ao vírus do macaco das selvas africanas e veio bater aqui debaixo do nosso nariz, no submundo da sociedade. Tudo por conta da promiscuidade sexual e do mercantilismo da medicina, além das aglomerações em favelas, cárceres e outras tantas.

EM verdade, a tuberculose nunca deu um tempo. Ficou de tocaia apenas observando ao seu redor a hora de dar o bote social e, por conseguinte, mutacional. Voltou com força máxima, mesmo nos maiores IDH do mundo, como ocorreu à época da AIDS e agora com a europeização da tuberculose, por conta do fluxo migratório. Atualmente, em busca da longevidade, dispomos de valiosos fármacos, grandes tecnologias, raio laser, imunobiológicos, e uma porção de coisas novas, porém, todas atreladas à adaptação do personagem BK.


O uso dos imunobiológicos, por exemplo, fez-nos viver melhor ante a doenças que não se vislumbrava controle (doenças auto-imunes e até mesmo o câncer), porém, sempre com a tuberculose à espreita. Não se deve usar tais medicamentos sem antes avaliar os pulmões, alertam os pneumologistas.

Não será nenhuma surpresa se o BK já estiver nos esperando em Marte, escondido numa das sondas. O personagem BK é mestre nos disfarces, por isso é quem ele é.

Infelizmente nossa região amazônica é um caldeirão fértil para a doença, por conta de sua particularidade geográfica, e nós todos somos obrigados a passear pelos corredores da tisiologia quase que diariamente.

O corredor a que nos referimos não é apenas os dos antigos sanatórios, mas um shopping center ou algo similar.

Vamos nos engajar; vamos à luta.

 

André Nunes, pneumologista

Roger Normando, cirurgião torácico 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Os dias e as noites de Feijó, a capital de minha infância

    Na boca da estrada havia uma torre enorme parecida a torre Eiffel. Às vezes eu ia lá só pra admirá-la. Diziam que era de uma rádio, cognominada Rádio Cipó. Mas eu não acreditava, pois eu tinha certeza que não era uma rádio comum. Disfarce, aquilo era um disfarce! Essa torre era do Flash Gordon, pois eu acabara de ler o primeiro gibi que meu pai trouxera de Manaus.

    Toda a molecada de Feijó que frequentava o colégio Imaculada Conceição passou a  mandar buscar gibis do Flash Gordon, depois que eu falei sobre aquela torre. Alguns passaram a me pedir por empréstimo. Todos passaram também a desconfiar que aquela torre era dele, pois havia uma historinha cuja cena se passara exatamente naquela edificação... igualzinha, igualzinha! Sem tirar nem pôr.

    Servia pra comunicação com o Planeta Mongo. Sua namorada, Dale Arden, havia ficado lá enquanto ele se recuperava e ao mesmo tempo se escondia, em Feijó mesmo, dos seus perseguidores, especialmente do seu inimigo mortal, o impiedoso Ming, governante do Planeta Mongo (ele era uma espécie de Trump das galáxias).

    Então, a torre servia pra comunicação com Dale Arden e seus parceiros, mas só os moleques que tinham o gibi sabiam disso. Já pela noite, a gente apreciava o céu noturno de Feijó. Era muito bacana. A cidade, sem energia elétrica a partir das dez da noite, deixava a cargo das estrelas a formação de um tapete iluminado lá em cima, que refletia na cidade. Flash Gordon passeava por ali, e a gente ficava procurando com um monóculo emprestado do sr. Luis Camiranga. 

    Quando a lua dava o ar da sua graça, as ruas ficavam prateadas, e era um prazer deitar nas calçadas pra apreciar o espetáculo. Quando refletia no rio Envira, ficava mais linda ainda.

    As estrelas exalavam um perfume que envolvia a noite, e eu via as ondas de rádio que saiam da torre e pegavam a estrada que ia pra Mong. No meio dessa estrada havia um bueiro que o exército construiu e a gente aproveitava para tomar banho, em dias ensolarados. Meu Pai e o Dr. Dão, um juiz de direito bem gordinho, banhavam-se quando o bueiro jorrava aquela água barrenta, feito cachoeira.

    O tempo ainda não era a dimensão que se levasse em conta o espaço; vestia-me com uma roupa nova, brilhante e fascinante que não puía com uso ao longo das noites. O tempo, num escaninho do cérebro – e do coração-, congela o passado.

    No meu mundo, a infância era uma fase da vida onde toda criança era imortal e sem qualquer obrigação, exceto deslumbrar-se com o cosmos e com os gibis.

    Outra coisa que eu precisava conhecer – e ainda preciso –, é a neve. Algumas vezes acordei cedo para esperar a chegada da neve em Feijó, pois já conhecia a neve do Flash Gordon. Era neve, sim, a de Feijó, mas minha mãe dizia que não. Falava que na Amazônia não nevava. O lugar mais próximo era a cordilheira do Andes, mas tinha que andar muito pra chegar lá. Mas aquilo pra mim era neve, sem dúvidas. Só de uns tempos pra cá percebi que minha mãe tinha razão: era a neblina da umidade que embalsama a nossa região no período de inverno. E assim minha infância acabava de perder mais uma falange do dedo.  

    Em certa manhã, cedinho, fui até o rio Envira, e vi aquele véu. Insisti com a minha mãe. Ela dizia que a única coisa que poderia sair dalí era a Boiúna, jamais neve. Foi quando comecei a me desesperançar, ao culminar com a minha idade adulta. Mas um dia vou conhecer a neve.

    Restava-me procurar as constelações no céu noturno. Nunca consegui identificar sequer uma. O sacana do Chico Pinto dizia: "Tás vendo a Ursa Maior?". Cá comigo eu pensava, mas não dizia: "Ursa Maior é tua mãe, aquela Moby Dick". Não respondia por que achava que Chico Pinto era filho adotivo. Podia magoar. Ele falava também da constelação do Cruzeiro do Sul e eu ficava intrigado, pois não havia Cruzeiro do Norte. Cruzeiro do Sul, para mim, era a cidade onde eu havia nascido, ali no Acre mesmo.

    Acabava me divertindo olhando o firmamento e, quando dormia, sonhava com estrelas, Flash Gordon e, acreditem, com a Dale Arden que eu tinha certeza era tão bonita quanto  Ligia, Carmem, Tânia e tantas meninas de Feijó.

    Faz tempo que meus sonhos não repetem esse padrão da infância. Hoje, nas madrugadas a única coisa que busco é o perfume que sentia de minha infância. Não sei em qual giro do planeta esse aroma se esvaiu. Talvez o planeta Terra não esteja receptivo ao perfume das estrelas.

 

Texto adaptado de Corisco.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Partiu Brasil! Até breve, Braga!!!

  Viver é um rasgar-se e remendar-se"

Guimarães Rosa, em: "Tutameia"


      Um pedaço de mim morou em Portugal por oito anos, emendado entre Universidade do Minho e do Porto. Também tentando empreender. Faltou-nos cacoete. Falo com a voz desse pedaço, em forma de partida.

      No alforge, um pouco do que cultivamos: trouxas de roupas usadas e amontoado de livros (46kg). Muito aprendizado, amigos e algumas incursões científicas.

    Os livros vieram todos; as roupas só as mais úteis. Cerca de sete sacolões de feira foram depositados para doação: tênis, sapatos, roupas casuais e de frio. O que ficou quase não coube no depósito, que fica ao lado de um grande shopping em Braga, cidade onde parte de mim viveu. Não tínhamos carros; apenas uma bicicleta, anunciada por 90 euros.

   Tivemos que fazer uns três carretos para finalizar as doações, pois eram muitas peças. No último encontramos um representante da freguesia de São Vitor, que nos informou o destino: Ucrânia.

    Quem fez o último carreto foi um dos filhos, enquanto estivemos nos despedindo do centro histórico de Braga, em que a igreja da Sé estava fechada e não pudemos fazer nossas últimas orações e agradecimentos. 

  Quando se doa, vale relembrar, normalmente não se sabe qual destino, mas o curioso que, naquele momento da mensagem da última doação, à minha frente (início da avenida da Liberdade, defronte ao chafariz) havia uma bandeira da Ucrânia com o escrito: "fim à guerra". Levou-me à melancolia, ao mesmo tempo fez brotar gotas de solidariedade acerca das doações. 

     Já são 12,3 mil mortes desde o início do conflito, sendo que mais de 14 milhões já abandonaram o país. Um verdadeiro trauma ucraniano, em que mais de 7,1 milhões de pessoas deslocaram-se internamente (sem abrigos), para onde se destinam as doações.

      Por sua vez, em Gaza, o Escritório da ONU estima que 1,9 milhão de pessoas tenham sido deslocadas internamente; representa cerca de 90% da população palestina. Bem menor que a Ucrânia, mas Gaza teve repercussão em valores relativos bem maior que a Ucrânia - longe de comparar perdas.

      Ao voltar e ver as malas prontas, livros encaixotafos e as paredes esqueletizadas, senti o cinto do avião afivelado e o peito apertado. Senti que já estava enraizado a Portugal, em que pese as dissonâncias e a distância de Belém. Foi o início do desapego, e também de uma saudade frajola de ter vivido num país onde os cidadãos e o Estado ainda guardam algum olhar para os mais necessitados, cujas taxas de violência são aceitáveis.

      Esse apego também tive ao partirmos do Acre (infância), Largo de Santa Luzia (graduação) e Rio de Janeiro (formação profissional). A modesta despedida se deu num cantinho saudoso de Braga, em boteco abrasileirado, entre amigos de copo e de trabalho, sem necessariamente nessa ordem.

     Portugal ficará eternamente guardada em nossos alvéolos pulmonares, consoante às visitas ao Instituto Português de Oncologia (Porto), onde o grupo de cirurgia sempre me recebeu com estima e carinho.

     Mas as ruas desse vendaval, entre virtudes e fraquezas, deixou-me ver a vida pulsar todo final de dia, ao caminhar entre o barroquismo das cidades e praças modernas. Já ao anoitecer, a imaginação no voo de volta iluminava as gotas do amanhã que já comungam com esse passado, simulando hóstia, caridades, divindades e experienciando a passagem por outras terras.







segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Os ventos do norte não movem moinhos? O rejuvenescimento dos transplantes de pulmão no Ceará.

 Os grandes trabalhos nascem pequenos, na surdina, em silêncio e crescem aos poucos.

Fernanda Torres, atriz.

A fotografia é de causar inveja à Monalisa: jovem de 24 anos exibe-se no CTI após retirada do próprio tubo traqueal, auxiliada por médicos e fisoterapeutas. A imagem foi postada em rede social fechada e suscitou admiração dos cirurgiões. Não se consegue definir se era rosto de espanto, sorriso, choro, ou mesmo dor, pois a jovem havia sido submetida a duplo transplante de pulmão (hospital de Messejana, Fortaleza, CE). Em 72 horas estava posando para câmera. 

Sabe-se que no Brasil existem vários núcleos transplantadores de órgãos, porém o pulmonar é menor, por conta de constantes desafios ligados à rejeição e infecção; também pela política pública de saúde, falta de doadores e de mão de obra treinada.  Assim, quando nasce um novo transplante pulmonar no lado norte de nosso mapa, comemoramos como se dom Quixote ultrajasse seus moinhos de vento, ou como se fosse láurea para uma atriz, representando nossa arte para o mundo. 

Em seguida, um comentário especial: “Parabéns ao Israel [Medeiros], atual coordenador do programa. Sinto-me muito feliz com o sucesso e a continuidade do programa, que aos trancos e barrancos conseguimos mantê-lo ativo, embora com altos e baixos desde 2011. Temos muitos pacientes transplantados e plenamente ativos para contar a história”, grifou Antero Gomes Neto, idealizador do programa, que  segue em linha reta no Messejana e ainda ativo no campo cirúrgico e nos congressos 

Na sequência, Medeiros, o novo coordenador, rebate: “A emoção de extubação e da possibilidade de respirar com novos pulmões. Lembrando que nosso centro está ativo. Podem divulgar para os pneumologistas se quiserem encaminhar alguém...”. A sensação do final da frase mais pareceu desabafo, para garantir que o legado também segue em linha reta.

A menção “os ventos do norte não movem moinhos” pode ser interpretada como uma metáfora para esforços inúteis ou obstáculos intransponíveis. Alencarinos, tal como norte-nordestinos, sabem quão difícil é trair os ritos para implantar programas de alta complexidade. 

No caso de Fortaleza, o novo coordenador Israel Medeiros formou-se pela USP. Andou por Toronto e Viena em busca de mais tutano. Confessou também grande aprendizado com Antero Gomes Neto, o criador, que teve inspiração em J.J Camargo, nosso grão-pioneiro.

Em seguida alguém indaga a indicação: “fibrose pulmonar [pneumonite por hipersensibilidade (PH)... provavelmente]”, responde. Mas o “provavelmente” não tem a doçura da rapadura. Sabe-se que parte das PH podem evoluir para fibrose, porém é mais prevalente em faixa etária mais alta, de ambos os sexos. No caso acima, a idade chama atenção de pneumologistas para um novo agente nocivo aos pulmões, e que pode confundir o diagnóstico e também levar à fibrose: EVALI (do inglês: E-cigarette-/vape-associated lung injury), ou seja, doença pulmonar causado pelos novos cigarros eletrônicos (nicotina, aromatizantes, aditivos e canabidiol em alguns). 

EVALI, descrita pela primeira vez na literatura em 2019, apresenta-se inicialmente com tosse e falta de ar. Pode resultar em inflamação e fibrose. É frequentemente visualizada na fase aguda como opacidades em vidro fosco, a lembrar o pulmão da COVID-19. Na fase crônica se comporta como fibrose cicatricial, de modo a deixar o pulmão petrificado. Já há diversos relatos de pacientes com quadros fulminantes e mortais por EVALI. Alguns jovens já até necessitaram de transplante pulmonar duplo. E esse é o apelo dos pneumologista.

Diante dessa mudança e da dificuldade em conter o uso de VAPES, é provável que tenhamos que criar mais centros transplantadores de pulmão, como está acontecendo nesse momento em Belo Horizonte (UFMG), pois não há polícia que contenha o avanço dessa nova caricatura estilizada da indústria do cigarro. Foi o que aconteceu com a criação dos centros de trauma no Brasil, ante à incapacidade de se conter a violência urbana.

Oxalá o deus Tezcatlipoca escute os pneumologistas. 

Glosário: Tezcatlipoca é um dos três grandes deuses da mitologia asteca: é o deus do céu noturno, da lua e das estrelas; senhor do fogo e da morte.


Roger Normando - Professor de Clínica Cirúrgica II, Disciplina de Cirurgia Torácica, Universidade Federal do Pará.




sábado, 25 de janeiro de 2025

A estética e a dialética do erro

                                                 Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca 
                                Caetano Veloso, em: “Outras palavras”

A revolução científica do século XX remodelou completamente todas as áreas dos estudos biomédicos, sendo a pesquisa do câncer apenas uma cujos resultados chegam em gotículas milagrosas.

Mas o começo de tudo se deu no século anterior (1858) com Rudolf Virchow, filho da Pomerânia, atual Polônia, com a frase: Omnis cellula e cellula (latim). A frase retrata que todos os tecidos orgânicos são compostos por células e produtos celulares que surgem a partir da divisão celular de uma célula preexistente. Uma descoberta seminal. Virchow foi o próprio Santo Graal da biologia.

Levando em consideração tal questão, pode-se deduzir que todas as células que formam um organismo complexo são membros de linhagens celulares provenientes do único óvulo fertilizado, capaz de originar todas as células do corpo, por meio de repetidos ciclos de divisão e crescimento celular, até se diferenciarem em cabelo, dedão do pé, pulmão, etc. Esse gatilho disparado sepultou a teoria da geração espontânea e fez-nos apaixonar pelas ciências da vida.

A partir dessa revolução dão-se avanços na genética e hereditariedade: de como as células se multiplicam e dividem; de como elas se associam para formar tecidos e de como os tecidos se desenvolvem e se capilarizam a partir de disparos (DNA, genes) específicos. Mas essa produção seriada e linear, em determinado momento falha. Incorre no que os biólogos chamam de erro, um deles conhecido como mutação. É daí que surgem doenças. Cigarro (e agora vapes) e excesso de açúcar (obesidade) são exemplos que destrambelham o trilho dessa linearidade e geram células cancerosas.

            Mas o erro tem mais de uma face e, nos apontamentos de Gyorgy Lukacs, o erro não passa de um peculiaridade, particularidade. Ou seja, se na biologia de Virchow o tal erro é entendido como gerador de males, na arte é o motor da evolução, da criatividade, da admiração. Para Mia Couto biólogo, se o erro não ocorresse, a vida não vingaria, e não passaríamos de uma ameba de esgoto. Como esse erro ocorrido há dois bilhões de anos tornamo-nos multicelulares organizados, depois diferenciados, até chegarmos a Triops cancriformis (camarão girino), que data de 200 milhões de anos atrás, considerado o mais antigo ser existente na terra. Carrega em seu nome científico a raiz etimológica do câncer (cancriformis).

Por sua vez, o Mia Couto escritor e poeta vai além: No fundo, o erro é aquilo que nos surpreende, que não está no domínio do previsto, não está no domínio do lógicoÉ o que os médicos chamam de doença, má formação, mas que os artista veem de outra forma. Para o poeta Manoel de Barros: "errar é bonito".

Se olharmos para as extremidades da Abaporu, percebe-se ali certo exagero no tamanho dos pés. Do ponto de vista biológico existe ali erro (acromegalia), pois ninguém tem uma prancha nos pés - nem sequer os Hobbit. Mas para a arte, esse elemento deu à Tarsila do Amaral destaque com seu surrealismo, a ponto de revolucionar as artes no Brasil. Ou seja, a arte elaborada na base do erro torna-se bela por desconstruir a linearidade da biologia virchowiana.

Portanto, se o erro faz parte da estética da arte, por sua vez a ciência veste-se de branco e embebe-se de sua dialética tão somente para abjurá-lo.

Para dar voz à temática, o físico José Luiz Lopes sentencia: "O Princípio da Incerteza torna o erro natural e, portanto, diferente da distorção infracional, pecaminosa ou criminosa. Assim, o erro, em si, pode ser isento da culpa".

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

É natal e tantas coisas mais...

        Foi pelo caminho das águas, com os ribeirinhos, que resolvi passar o natal com a família. Embarquei na expedição Tucumanduba, há mais de 30 anos liderada por David, meu irmão dentista. Já fui umas tantas vezes. Só não vou mais por conta de um projeto social.

Fui bastante animado, afinal fazia tempo que não comemorava o natal no seio da floresta. Fui também para rever tio Bena e d. Marivalda, velhos conhecidos e nativos que nos recebem em sua casa simples, do trapiche à cozinha.

Tio Bena, com pouco mais de 80 anos, é a quarta geração da família Góes. Vieram de Portugal no final do século 19 para as ilhas ao redor de Abaetetuba, até fincar a bandeira lusa. Existe, por lá, a lápide de João Góes, o primeiro imigrante. Tio Bena ainda gaba-se que se curou de duas ziquiziras com a ponta do bisturi: tumor de próstata e câncer de parede torácica, mas ficou proibido pelos filhos - não pelos médicos - de trepar em açaizeiro de peconha. Por ele, ainda daria para escalar um gito. Gaba-se mais ainda de ter toda essa virilidade, por conta da alimentação saudável: açaí do fundo do quintal (rico em antocianinas, pigmento flavanoide anti-envelhecimento) e peixe Mapará apanhado no rio defronte (rico em proteínas, pouca gordura saturada e sem carboidratos).

Escorado no casarão de mais de 100 anos, tento me achar no Google Maps. Nada, nada. Não chega sinal por lá. Ali o rio é rua e a mata fechada é um paredão verde que tira coragem de qualquer um de se embrenhar e bater perna. Tio Bena diz que não tem onça, no máximo tatu e macaco prego. Meu receio é cobra, mas ele diz que não. Não se discute com sábios. Vez por outra, se vê boto.

Dia antes dos presentes programamos um passeio de barco para tomar banho na baía do Capim (junção do rio Tocantins com o Amazonas – rio Pará). Estávamos incendiados. Fomos na maré baixa, titiando a floresta até varar no destino. No isopor o indispensável: cevada no gelo para brindar o desfolhar da natureza e o níver do menino Jesus ribeirinho, segundo o poeta Paes Loureiro - que nasceu por aqueles bandas.

No passeio só gente tarimbada. Além do Nailson, filho do tio Bena, havia um outro Davi - sem o “D” ao final. Nailson é contador de causos do tio Caetano, um velho filósofo que nunca leu Kiekeergad, mas adorava relacionar o existencialismo sartriano com a pescaria predatória. Juntando Elmar soma-se a vasta experiência de contar causos. Ou seja, havia muita vontade e uma leva de aventureiros apaixonados pelo natal dalí, onde não há luxo e se proíbe lixo.

Já era boca da noite quando chegamos do passeio. Cansados, atamos as baladeiras. Dorme-se cedo por aqueles barrancos. Éramos dez num espaço exíguo. Pois bem... No meio do sono me acordaram com uma orquestra de trombones que variava entre macaco guariba urrando e roncos retumbantes da cambada. Não tive como distinguir. Teve um que deu pontapé na rede do vizinho, pensando ser um macaco sequestrador.   

Na manhã seguinte já era Natal. A nossa valença foi a junção de expertises do David e do Nailson – o contador de causos. Deu tudo certo. Pegamos o rio e fomos ancorando nas casas com a arquitetura típica dos ribeirinhos. O “Hohoho” do João Paulo, nosso homem de vermelho, alertava os moradores para a chegada. No lugar do trenó, um barquinho popopô sem cobertura puxando os presentes. O sol batia no toutiço. Não havia como disfarçar o calor. Foram quase duas horas rio-acima-rio-abaixo, cruzando com canoas e rabetas, e acenando para sumanos e suprimos.

As crianças presenteadas eram um sorriso só. Foram mais de 50, a começar pelo Danilo e findar na Micaela. Os brinquedos o David comprara. As roupas, doações.

Não pode faltar brinquedo e escovas de dente. Isso é triunfar no espírito natalino liderado por um dentista. O sorriso indisfarçável no rosto de cada criança é lágrima no coração da gente, que escoa e se dilui pela vastidão daquele mundo-água. Aquela visita que já ocorre há mais de 30 anos, mais parece cura para nossas bonanças e um nocaute em nossa tentativa de ser o que jamais fomos.


sábado, 7 de dezembro de 2024

A Amazônia que se mata e desmata


Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir...

Chico Buarque, na canção: “Construção”


Domingo, ao descer até o bicicletário do prédio onde moro, percebi algo estranho no ar. Enquanto preparava a magrela pra dar um rolê, um odor desagradável ampliava. Foram uns 15 minutos. Resolvi olhar para o fundo da garagem. Havia um carro de luxo ligado, todo fechado, ao fundo. Ou seja, eu estava inalando monóxido de carbono. Com a garagem fechada, o ar que saía pela chaminé daquele carro não era varrido pelo vento e a tendência era acúmulo - efeito estufa.

O monóxido de carbono (CO) é gás produzido na queima de material combustível rico em carbono, conforme descreve Peter Atkins, autor de “Princípios de Química: Questionando a Vida Moderna e o Meio Ambiente”. Reitera: “gás asfixiante muito tóxico e, dependendo do tempo de exposição e da quantidade inalada, pode levar à morte.”

Não obstante, parti para um retiro familiar em Alter-do-Chão, meados de novembro. O vilarejo dista 40km de Santarém. Era para aproveitar o feriado. Era. Ao descer do avião havia uma cortina de fumaça que ofuscava a visibilidade do horizonte.  Assim foi todo aquele feriado, cuja fumaça embaçava a outra margem do lago verde. Resultado: ao retornar a Belém, a esposa desencadeia crise asmática. Fomos parar no pronto-socorro com seus brônquios chiando. Foram duas semanas em uso de bombinha, além de dor de cabeça estonteante, que nos assustou. Não é quadro de fácil reversão. O uso de corticóides em altas doses faz-se necessária, conforme relatos de emergencistas.

Erik Jennings, virtuoso neurocirurgião santareno e ativista ecológico, lançou um vídeo nas redes sociais enfatizando a questão e os riscos para a saúde pulmonar aos que visitavam a pérola do Tapajós por aqueles dias. Semana seguinte o ar piorou, e Santarém tornara-se a segunda cidade mais poluída do mundo.  A própria Universidade Federal do Oeste do Pará relata que foram mais de 6.000 atendimentos nos serviços de saúde entre setembro e novembro de 2024, sendo as dificuldade respiratória a mais prevalente, sem falar do fumacê nos olhos.

Mulher Borari
É fato que, com o passar do tempo, a visão da paisagem singular da Amazônia estará cada vez mais estranha, se comparada àquela infância às margens dos rios Envira e Machado, onde me criei. Vi-me estranho à terra de minha mãe e dos boraris.
Ponta do Cururu

Ainda há o espírito da floresta em cada nó de nós, mas há perigos e pontes em direção ao extermínio. Isso nos assusta. Na Amazônia do Jennings - e também da minha mãe partejada no Lago Preto – vê-se que estamos cercados pela mídia, porém indefesos diante do que representamos para a grande aldeia mundial. Há uma sensação estranha por essas bandas. O Muiraquitã, famoso amuleto tapajônico, está mais acocorado que nunca, a espera de saltar para o Arapiuns, sua ultima fronteira.

Não sabia como abordar aquele cidadão, ao fundo da garagem. Ameacei dirigir-me até o carro. Vi-me planta, vi-me árvore, vi-me aquele Bugio-ruivo rosnando impiedosamente sobre a lataria de um trator queimando diesel. Tentei ser pássaro debaixo daquela fumaça que poluía o bicicletário. Abri e fechei meus brônquios várias vezes, sem respirar. Imaginei palavras, gestos... estupidezes. A dois passos da chegada recuei. Ouvi instintivamente a frase que minha cadela Brisa recita com os olhos, quando saio de casa: “vá, mas volte”. Então desapareci com minha magrela.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Como o demônio, o câncer tem olhos reptilianos

      O novaiorquino apaixonou-se pelo Brasil. Morou aqui até albergar em seu peito uma impiedosa dor visceral. Pela Amazônia resguardou na alma um carinho especial, após se aposentar pelo Corpo de Bombeiro de NY. Ao pôr o pijama, Mark teve nova paixão e, de mala e cuia partiu Belém.

Certa vez foi à ilha de Mosqueiro para aproveitar as praias de rio com ondas - que mais parecem mar - e resolveu visitar o Corpo de Bombeiro da vila. Relatou, em conversa amistosa com a corporação, que foi bombeiro militar no fatídico Onze de Setembro. Salvou vidas, mas também adornou esquifes. Guardava carinhosamente em seu coração a memória do tempo de caserna. Os bombeiros da modesta vila se viram diante de um daqueles silenciosos heróis que a história vela. Não faltaram selfies.

 Se no peito guardou nova terra e nova convivência amorosa, no mesmo peito resguardou um câncer, conhecido pelo epônimo de Pancoast (homenagem a Henry Pancoast, radiologista norte-americano que o descreveu). Mas... Quem é, realmente, o câncer? Um demônio de olhos reptilianos a nos ludibriar com sua camuflagem? Ou a despistar-nos com sua pupila em forma de fenda? Seria um tecido biológico impiedoso, repressor e sem remorsos, esperando dar bote? Um militante devorador de existências, que age em nome da diversidade biológica e pela construção de uma natureza equilibrada?

Após sintomas por quatro meses, a doença de Mark já estava sem possibilidade de cura cirúrgica. O tumor envolvia o teto do tórax, vizinho ao pescoço. Estava atochado a nervos importantes, vasos nobres e parte da estrutura óssea da coluna. Resultado: dor lancinante contínua. Precisou ser internado para receber morfina, até se conseguir amenizá-la para realizar a biópsia.

Após confirmação iniciou quimioterapia. Nesse estágio da doença, o oncologista franze a testa, engelha o rosto e cerra a boca. O cirurgião responde com a vista nublada e as têmporas latejantes. É a impotência. Aquele tumor deixara a lâmina do bisturi cega e a família vazia.

Um estudo que mal saiu do forno foi publicado no Portuguese Journal of Cardiac Thoracic and Vascular Surgery, em que tivemos a oportunidade de ser um dos revisores. O grupo lisboeta analisou 11 anos de estudos sobre os cânceres do ápice pulmonar (tumor de Pancoast-Tobias, para não ser injusto).  Chama atenção que a dor no ombro/braço é característica deste tipo de câncer, e pode representar alarme, principalmente se fumante. São pacientes tratados como bursite que, diluído entre ortopedistas e fisioterapeutas, e acabam perdendo a bússola diagnóstica. A imagem poder se confundir com tuberculose em lugares de alta prevalência, como na Amazônia. Chama atenção no artigo, o pequeno números de casos curados. Tradução: em estágio precoce essa dor tem destino: extirpação.

Uma vez definido e abordado precocemente, imuno-quimioterapia e radioterapia devem preceder o tratamento cirúrgico. Nesta abordagem trimodal, os resultados são animadores, como bem ilustra o artigo, mas não foi esse o roteiro daquele salva-vidas, que lidava com a morte iminente todos os dias, e tinha frações de minutos para decidir e resgatar tantas outras. Sem querer que Mark fosse premiado pela imortalidade, emudecemo-nos diante desse redemoinho, cujo demo circula ora dentro, ora fora da palavra; ora fora, ora dentro do alcance cirúrgico.

Na pugna do pântano, entre o homem e o anti-homem, os olhos do réptil saem da forma de fenda e se transmutam nas espirais de Watson e Crick, a boiar em busca de sua próxima vítima. Esse DNA ruidoso, inquieto, sortido e palpitante se apresentará em pouco tempo e o refúgio onde reina a vida, dá fim a mais um modesto heroi das torres gêmeas.

        Resta-nos, à beira do pântano, onde girassóis, ao pôr do sol douram suas pétalas para alumiar os pinceis de Van Gogh, que as invocações às retinas da ciência deem as mãos e formem conexões, por fim, para pôr fim a essas anomalias que carcomem dolorosamente a natureza dos homens  humanos, demasiadamente humanos.

  1. Moita CP, Figueiredo C, Cruz Z, e cols. Pancoast tumors: 11-year single-centre experience. Port J Card Thorac Vasc Surg. Vol. 31 No. 3 (2024): Jul-Sep.  2024.
  2. Teixeira JP. Concerning the Pancoast tumor: what is the superior pulmonary sulcus? Ann Thorac Surg. 1983 Jun;35(6):577-8.
  3. Spengler DM, Kirsh MM, Kaufer H.J Orthopaedic aspects and early diagnosis of superior sulcus tumor of lung (Pancoast). Bone Joint Surg Am. 1973 Dec;55(8):1645-50.
  • Roger Normando. Professor de Cirurgia Torácica, curso medicina da UFPA.
  • Texto no prelo a ser publicado no Jornal da SBCT (Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica)

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Um palimpsesto para “Quase Deuses"

 Rastros deixados pelo tempo me atraem

Raimundo Sodré, escritor acreano, em: Igarapé Piscina

      Que leitor ainda não se viu numa página de livro? Que cinéfilo ainda não se viu contracenando com Fernanda Montenegro?  

Samuel Beckett, escritor irlandês, ao mergulhar em Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, faz conexão visceral – ou xifópaga - com a obra proustiana e acaba emergindo em Proust (1931), um de seus valiosos ensaios. Beckett entregou-se a Proust assim como nos entregamos a Vivien Thomas, em “Quase Deuses”, um filme que marca a medicina e os degraus da academia.

Em prosa despretensiosa, lá pelas ilhargas da praça Batistas Campos, relembrei o filme, de 2004, que relatou a vida e obra de Alfred Blalock, um virtuoso cirurgião estadunidense que empregou Vivien Thomas, um negro sem curso universitário, mas encantado por trabalhar em laboratório. O filme fura a bolha da academia e se emboleta com a questão racial cujo roteiro dá uma tragada na fumaça cinzenta da relação entre um cientista e seu técnico de laboratório. Tal relação beckettiana lembra a de Sergio Lima e o cientista e professor Ronaldo Araújo, pelos barrancos guajarinos.

Araújo, premiado com várias publicações internacionais, ficou conhecido por suas contribuições para medicina tropical e patologia da Amazônia. Ele é especialmente reconhecido nas universidades paraenses e brasileira por seu trabalho sobre arboviroses (transmitida por artrópodes, como mosquitos e carrapatos) entre vários temas.

Foi premiado pelo governo alemão com um microscópio de varredura, dispositivo capaz de gerar imagens de alta resolução. Araújo passaria a produzir material científico de alta qualidade em plena década de 70. O ônus ficou por conta da manutenção permanente do aparelho, e a UFPA não disponibilizava de recursos para mandar buscar técnico da USP, já que era a única universidade no Brasil com dispositivo semelhante. Aquilo passou a ser um trambolho em seu laboratório. Araújo esteve por desistir quando recebeu ligação da reitoria aferindo que existia um jovem funcionário com extrema habilidade em eletrônica, que consertava desde rádio e televisão a ares-condicionados. O professor bateu o telefone.

O funcionário era Sergio Lima. O jovem dava-se ao luxo de encarar grandes desafios em ler esquemas de circuitos eletrônicos. Era um prodigioso funcionário da reitoria. O emprego era só para garantir o apurado, pois o que o sustentava era a sua oficina de eletrônica. Ronaldo Araújo não teve saída. Após um segundo telefonema resolveu apostar.

Placa afixada no centro de estudos do
hospital de Clínicas Gaspar Vianna
 
Lima, por sua vez, lançou-se ao desafio. Traduziu para a sua linguagem todas as equações, até resolver o problema. Araújo deu cambalhotas. Aconteceram mais três vezes; mais cambalhotas. Na quarta, Ronaldo Araújo discou para o reitor e disse que não devolveria o funcionário. A reitoria teve que ouvir, uma vez mais, o telefone desligar. A produção de Araújo ampliou e o jovem passou a compor a disciplina, inclusive preparando lâminas e material didático para aulas, capítulos de livros e artigos científicos.

Certa manhã, Lima estava paginando o Bogliolo (1556 páginas), bíblia da patologia tropical brasileira, quando se deparou com certo autor. Aquilo lhe tomou de supetão. Araújo, ao adentrar à sala, viu Lima com o nariz enterrado no livro. Não conseguiram se disfarçar. Araújo propôs a ele cursar medicina. Sergio Lima estava esperando por isso. Lima entrou no curso de medicina do largo de Santa Luzia aos 32 anos. Foi aluno de Araújo, mas teve que se distanciar do laboratório de Patologia Tropical, hoje um imponente prédio na Generalíssimo, de alta produção científica.

Lima e Araújo em momento social
    Sergio Lima manteve a amizade, mas trabalhou sua carreira clínica. Ronaldo Araújo seguiu venerado, sendo professor de inúmeros médicos paraenses. Ao longo da convivência, suas famílias ficaram muito próximas, tornando-se amigos e confidentes. Araújo morreu por infarto agudo do miocárdio, em 1995, ainda aos 60. Com a notícia, Lima teve um destempero e quase vai. Desde ali começou a adoecer e deixar a vida ao relento.

 Roger Normando é professor de cirurgia, curso de medicina da UFPA.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Praia de Copacabana, fundos.


 Viajar pelo Brasil requer paciência... mas muuuuuuuuita paciência. Os aeroportos cada vez mais desplugados do cidadão, que sente na epiderme da alma as chicotadas da escravidão moderna. Sobre estradas, então, nem se fala...

Na última, o avião me apanhou em Belém e me despejou em Brasília. Sim, um despejo que me fez lembrar os jogos da quarta divisão do campeonato brasileiro, quando o maqueiro da cidade sede, com o resultado adverso, cata o jogador visitante contundido, rola-o na maca e, à beira do campo, despeja o coitado, tal como se fosse jogar lixo num terreno baldio.

O jovem Caio, por mais que tenha tentado defender a sua empresa aérea, tenta criar um gabinete de crise para solucionar um voo suspenso desde quando ainda avistávamos, da janela, o lago Paranoá. Quando chegamos ao guichê da empresa, o caos começava a se instalar. Um verdadeiro parangolé. Mais e mais pessoas se juntavam na tentativa de obter o mesmo destino: Rio de Janeiro cuja pista de pouso estava suspenso por motivos pluviométricos, segundo os assistentes da empresa (ou seria pela chuva de gols que o Botafogo deixou no endiabrado Penarol?) Isso já era quase oito da noite depois de um voo de mais de duas horas. Com exercícios de paciência, conseguiram nos colocar num voo para campinas, pela empresa vizinha, para o dia seguinte, e depois aterrissar no Santos Dumont. Seriam 18 horas de atraso. Dava para chegar em Dubai pela Emirates, ou Gurupá, ilha do Marajó, de barco, com direito a 12 paradas, a favor da maré.

Isso porque haviam colocado à disposição um voo de quase 24 horas de espera em Brasília. Talvez fosse a chance de conhecer o belo Paranoá, rés ao chão. 

Quando tudo esteve mais calmo fomos encaminhados a um hotel de alto nível, com voucher da empresa. Pavulagem: o hotel não tinha recebido nenhum comunicado. Mais uma decepção. Mais um gol contra. Naquela hora ou voltaríamos para o aeroporto, ou encararíamos aquele pernoite por mil reais. A romaria de sem-tetos a cada momento aumentava no balcão do hotel. Eram os mesmos rostos bufantes de antes. Cansado, tirei o escorpião do bolso. Apesar de caro, era melhor lugar para rezar, esperar o amanhecer e depois partir.                              Na memória ficou a história do motorista da van. Ele nos aferia que aquilo acontecia todos os dias em Brasília. Ou seja, a empresa sempre estava ali pronta para enganar os bestas e manter esticada a corda de caranguejo, em que um está preso ao outro pelo cordão da convivência conivente, independente da empresa.

Então embarcamos às nove e chegamos a Vira-copos com a sensação de vira-lata de invasão, sem direito a um cantinho para descansar os ossos -já com algum grau de osteoporose - e sem sequer um cafezinho para melhorar humor e o teor sanguíneo de serotonina.

Como todo caos é pedagógico, vivemos uma experiência e um bom bate-papo com dois cariocas dos tempos do Brizola, que estavam conosco desde a fila do guichê. Libério e Robertinho Careca, engenheiro e geólogo, respectivamente. Profundos conhecedores dos cafundós da Amazônia, eles haviam embarcados em Laranjal do Jari, divisa do Amapá com Pará. Mantinham acesos o sotaque e humor carioca, além de efusivas histórias.

Entre horas e horas de conversas, do guichê ao pouso  em Santos Dumont, Rio de Janeiro, várias relatos foram perfilados, mas o de Copacabana, foi a mais sensacional. É a história de um prédio que fica na beira da praia, mas o apartamento adquirido fica de costas para o mar. Ele fez o investimento para agradar um amigo português, também geólogo, que havia conhecido em Maputo, capital de Moçambique, após ter saído de um coma de cinco dias por malária. Roberto lembrou-me o personagem Melquíades, de "Cem anos de Solidão", de Garcia Marques, em que sobreviveu a várias moléstias. Também lembra o esquisito Rasputin.

Mas essa história vai ficar para outro escrito. Não tenho tutano para escrever mais que 3 mil caracteres e transformar esse texto numa passagem aérea para concorrer ao prêmio Jabuti. Nessa situação eu até aguentaria dar duas voltas ao globo, mesmo nas asas da Gol.

domingo, 6 de outubro de 2024

Made in Acre



       Há os lugares que chamam Macondo, há os que nomeiam Pasárgada... Há os que se apaixonam por Benquerença. Vou ficar com Feijó, esse pedaço de minha viagem à infância no Acre. Que se danem Gabriel Garcia Marques, Manuel Bandeira e Corisco, respectivamente.
       Vou nesse voo pelas asas do Toninho, com quem hibridizo alguns alelos mendelianos. Toninho passou 50 anos longe do Acre, terra onde ele foi prosperado. Nesse meio século eu estive ao lado dele e vi que de lá ele nunca se desligou. Todo o azougue de vida que ele criou com o passado mora ali naquele cafundó do mundo, pedaço rico da Amazônia de Chico Mendes e minha também.  
         Então numa leitura perdida, eu me achara voltando ao Acre 50 anos depois, na vez do Toninho, que nosso pai chamava de Tilico.
          Lembro ainda de nossa partida. Só cabia viagem pelo ar. Era num monomotor Cessna. Agora já há um novo caminho, mas por estrada talhada pelo abandono. No céu há sinais de queimadas. É a Amazônia em chamas, visto do chão e da janela do avião. Não era esse o teto de outrora. São laivos de uma destruição que não poderíamos ignorar.
         Pela estrada, eu havia esquecido muitas outras coisas de uma vida que ia se tornando aterradoramente longa. Para mim, certas desmemórias funcionam como uma estratégia de sobrevivência: era preciso soltar lastro para se manter flutuando na languidez das lembranças de nossa infância sem encalhar nos rancores, nas contagens de ilusões truncadas, até partir dali pra cidade grande, na década de setenta.                                         Até um sujeito como Toninho, em que tomo emprestado suas retinas, obstinado recordador, quase um memorioso capaz de se lembrar de tudo, devia permitir à sua consciência certas varreduras, limpezas anímicas e psicologicamente higiênicas para tentar impedir que a carga das lembranças o enterrasse o lodo das aversões e frustrações, como a de seu irmão mais novo, quase morre num atropelamento irresponsável.                           Sobretudo, para não pensar que teria sido possível outra vida, Toninho largou de lado essa amargura e chegou a Feijó 50 anos depois. Levou-me em seu bolso. Mas aquela confluência específica, às margens do rio Envira, já quase na beirada com o Peru, é quase uma revelação mística. Os seringais, os Kaxinawás. É óbvio que se lembrava - tinha de se lembrar-, ele até consegue reproduzir em cores e com precisão de detalhes, ocasionalmente ornada com as rotas, brincadeiras de futebol, bola de gude, pira-esconde e trinta-e-um-alerta na hora que a iluminação dos postes findava.
Hoje retomamos a esse passado apaziguado pelo sentimento de infância; pelo reencontro com esse passado de fantasias, adormecido dentro do travesseiro antes de dormir.
        Se em Macondo existe um rio de águas diáfanas, se em Pasárgada sou amigo do rei, e se em Benquerença tem o Rex Bar, em Feijó tem o Orleylson e o Escurinho, outro elo com essa querência de repassar a limpo o que ficou tatuado nessas relembranças trincadas no meu cérebro, mas uniformes no do Toninho.
      Esse pedaço de vagomundo não se evapora no simples ribombar do passado autóctone. Ele fica vivo como afresco que se expressa na parede viva que acarpeta nossa pele. Não há queimada que apague. 
       É que: se o tempo nos desse a chance de,  na barra da saia de nossa mãe, sair para pescar de linha e anzol, essa gota viva de lembranças que escorrem pelo rosto, que nos isola de um tempo cujas densidade e matizes permanecem acesas, nós reconstruiríamos apenas com a luz de poronga toda essa vida novamente.



sábado, 21 de setembro de 2024

É tarde, escrevo: o porão convalesce de um luto

Para quê a gente escreve, senão para juntar nossos pedacinhos

Eduardo Galeano, escritor uruguaio, em: “O livro dos abraços”

 

Se o conceito de acolhimento dorme no fundo do Caldas Aulete, seja como sinônimo de refúgio ou de guarida, ele acorda nos braços de dona Lourdinha.

Lourdinha e o Chavico moravam numa casa enorme na Gentil Bittencourt, e nela havia um porão, onde dormiam Luiz Pedro, o mais velho e estudante de engenharia, e o Luiz Gonzaga, sobrinho de d. Lurdinha. Assim como eu, Gonzaga migrou do interior, em busca de estudos. Éramos do mesmo colégio. Nossa amizade foi condecorada com futebol e quando fui convidado pra estudar naquele porão. No primeiro semestre eu passava por lá somente às vésperas de provas. No segundo semestre praticamente passei a morar lá, pois nossas notas haviam melhorado e começávamos a acreditar que aquela parceria daria passaporte para a universidade. Em que pese grande disputa por vaga e nossas fragilidades inerente ao ensino no interior, acabamos sendo aprovados, com alguma pitada de destaque.  

Muitas lembranças ficaram daquele porão. Gonzaga seguiu no curso de farmácia e depois voltou para Balsas, seu interior do Maranhão. Eu segui para o Rio de Janeiro. Conheci uma carioca de laranjeiras e por lá me casei, logo que acabei o período de residência médica. Nunca mais encontrei Gonzaga – ou Silva Neto, como era conhecido no seio familiar. Também nunca mais voltei àquele porão. Ficou um agradecimento sem tamanho e uma dívida enorme de gratidão àquela família. Ali vivi um estado de espírito osmoticamente contraído pela servidão que me ofereciam.

Lembro bem a hora do café. Sentávamos em uma mesa grande em que “seu” Chaves ficava na cabeceira, de banho tomado, cheirando a patchouli, cujas costas se voltavam para os janelões amplamente abertos, por onde vazava o sol. Havia plantas naturais entre algumas samambaias. Já no carro, acho eu uma Caravan bege - ou marrom-, Chavico nos deixava na escola e seguia para o trabalho de bancário. Dona Lourdinha segurava a tarefa de casa, como tradicionalmente ocorria com as famílias de outrora.

Uma fotografia datada de 1982 e a outra recente de 2024 fizeram-me revisitar esse passado adocicado, que nunca quis me abandonar. Na de 82 estavam eu, Gonzaga, Jaques e uma moça de nossa idade, cujo nome não conseguirei lembrar. Estávamos abraçados, fazendo pose para a máquina. A imagem carregava o sol de um sábado de fevereiro. Era de manhã e acabara de sair, pelas ondas do rádio, o listão do vestibular. A comemoração na calçada foi regada a Pinduca com maizena e ovos crus nas cabeças raspadas. Eu havia levado uma topada minutos antes e esfolado um dos dedos. A fotografia ainda mostrava o sangue escorrendo pela calçada. Carrego a unha deformada até hoje. Mas se no lado de fora havia sangue e dor, no de dentro do casarão e do meu coração, d. Lourdinha e Chavico estavam eufóricos.

Já a fotografia de 2024 tem autoria de Nayara, neta de d. Lourdinha. Ela nos flagrou no leito do hospital conversando sobre a sua enfermidade e as perspectivas após cirurgia (paliativa). Já eram os primeiros sinais de desconforto respiratório. Mesmo gravemente enferma ela soltou um sorriso de passividade que surpreendeu a autora da fotografia: “rindo só pro dr. Roger”. Os filhos e netos entenderam, com a mesma sabedoria de seus pais, que a finitude, ao ganhar braços, pernas e asas, dá-nos a mão gelada tão somente para pedir passagem.

D. Lourdinha seguiu para companhia de seu esposo Chaves, que já mora há algum tempo no lado de lá. Ele foi funcionário do Banco da Amazônia. Lá conheceu meu pai, até findar nesse relato. Ele considerou a possibilidade de me ajudar nessa jornada pela terra. Tirei proveito e me encaminhei para esse destino: eu e Gonzaga - aliás, o Silva Neto.

        Se tive a frustração de meu estetoscópio não conseguir escutar o murmúrio saudável da respiração de d. Lurdinha, salvaram-me os abraços dos filhos, que junto àquele destino, choramos as doces lágrimas da singeleza que a vida traça e nos encordoa.