sábado, 7 de dezembro de 2024

A Amazônia que se mata e desmata


Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir...

Chico Buarque, na canção: “Construção”


Domingo, ao descer até o bicicletário do prédio onde moro, percebi algo estranho no ar. Enquanto preparava a magrela pra dar um rolê, um odor desagradável ampliava. Foram uns 15 minutos. Resolvi olhar para o fundo da garagem. Havia um carro de luxo ligado, todo fechado, ao fundo. Ou seja, eu estava inalando monóxido de carbono. Com a garagem fechada, o ar que saía pela chaminé daquele carro não era varrido pelo vento e a tendência era acúmulo - efeito estufa.

O monóxido de carbono (CO) é gás produzido na queima de material combustível rico em carbono, conforme descreve Peter Atkins, autor de “Princípios de Química: Questionando a Vida Moderna e o Meio Ambiente”. Reitera: “gás asfixiante muito tóxico e, dependendo do tempo de exposição e da quantidade inalada, pode levar à morte.”

Não obstante, parti para um retiro familiar em Alter-do-Chão, meados de novembro. O vilarejo dista 40km de Santarém. Era para aproveitar o feriado. Era. Ao descer do avião havia uma cortina de fumaça que ofuscava a visibilidade do horizonte.  Assim foi todo aquele feriado, cuja fumaça embaçava a outra margem do lago verde. Resultado: ao retornar a Belém, a esposa desencadeia crise asmática. Fomos parar no pronto-socorro com seus brônquios chiando. Foram duas semanas em uso de bombinha, além de dor de cabeça estonteante, que nos assustou. Não é quadro de fácil reversão. O uso de corticóides em altas doses faz-se necessária, conforme relatos de emergencistas.

Erik Jennings, virtuoso neurocirurgião santareno e ativista ecológico, lançou um vídeo nas redes sociais enfatizando a questão e os riscos para a saúde pulmonar aos que visitavam a pérola do Tapajós por aqueles dias. Semana seguinte o ar piorou, e Santarém tornara-se a segunda cidade mais poluída do mundo.  A própria Universidade Federal do Oeste do Pará relata que foram mais de 6.000 atendimentos nos serviços de saúde entre setembro e novembro de 2024, sendo as dificuldade respiratória a mais prevalente, sem falar do fumacê nos olhos.

Mulher Borari
É fato que, com o passar do tempo, a visão da paisagem singular da Amazônia estará cada vez mais estranha, se comparada àquela infância às margens dos rios Envira e Machado, onde me criei. Vi-me estranho à terra de minha mãe e dos boraris.
Ponta do Cururu

Ainda há o espírito da floresta em cada nó de nós, mas há perigos e pontes em direção ao extermínio. Isso nos assusta. Na Amazônia do Jennings - e também da minha mãe partejada no Lago Preto – vê-se que estamos cercados pela mídia, porém indefesos diante do que representamos para a grande aldeia mundial. Há uma sensação estranha por essas bandas. O Muiraquitã, famoso amuleto tapajônico, está mais acocorado que nunca, a espera de saltar para o Arapiuns, sua ultima fronteira.

Não sabia como abordar aquele cidadão, ao fundo da garagem. Ameacei dirigir-me até o carro. Vi-me planta, vi-me árvore, vi-me aquele Bugio-ruivo rosnando impiedosamente sobre a lataria de um trator queimando diesel. Tentei ser pássaro debaixo daquela fumaça que poluía o bicicletário. Abri e fechei meus brônquios várias vezes, sem respirar. Imaginei palavras, gestos... estupidezes. A dois passos da chegada recuei. Ouvi instintivamente a frase que minha cadela Brisa recita com os olhos, quando saio de casa: “vá, mas volte”. Então desapareci com minha magrela.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Como o demônio, o câncer tem olhos reptilianos

      O novaiorquino apaixonou-se pelo Brasil. Morou aqui até albergar em seu peito uma impiedosa dor visceral. Pela Amazônia resguardou na alma um carinho especial, após se aposentar pelo Corpo de Bombeiro de NY. Ao pôr o pijama, Mark teve nova paixão e, de mala e cuia partiu Belém.

Certa vez foi à ilha de Mosqueiro para aproveitar as praias de rio com ondas - que mais parecem mar - e resolveu visitar o Corpo de Bombeiro da vila. Relatou, em conversa amistosa com a corporação, que foi bombeiro militar no fatídico Onze de Setembro. Salvou vidas, mas também adornou esquifes. Guardava carinhosamente em seu coração a memória do tempo de caserna. Os bombeiros da modesta vila se viram diante de um daqueles silenciosos heróis que a história vela. Não faltaram selfies.

 Se no peito guardou nova terra e nova convivência amorosa, no mesmo peito resguardou um câncer, conhecido pelo epônimo de Pancoast (homenagem a Henry Pancoast, radiologista norte-americano que o descreveu). Mas... Quem é, realmente, o câncer? Um demônio de olhos reptilianos a nos ludibriar com sua camuflagem? Ou a despistar-nos com sua pupila em forma de fenda? Seria um tecido biológico impiedoso, repressor e sem remorsos, esperando dar bote? Um militante devorador de existências, que age em nome da diversidade biológica e pela construção de uma natureza equilibrada?

Após sintomas por quatro meses, a doença de Mark já estava sem possibilidade de cura cirúrgica. O tumor envolvia o teto do tórax, vizinho ao pescoço. Estava atochado a nervos importantes, vasos nobres e parte da estrutura óssea da coluna. Resultado: dor lancinante contínua. Precisou ser internado para receber morfina, até se conseguir amenizá-la para realizar a biópsia.

Após confirmação iniciou quimioterapia. Nesse estágio da doença, o oncologista franze a testa, engelha o rosto e cerra a boca. O cirurgião responde com a vista nublada e as têmporas latejantes. É a impotência. Aquele tumor deixara a lâmina do bisturi cega e a família vazia.

Um estudo que mal saiu do forno foi publicado no Portuguese Journal of Cardiac Thoracic and Vascular Surgery, em que tivemos a oportunidade de ser um dos revisores. O grupo lisboeta analisou 11 anos de estudos sobre os cânceres do ápice pulmonar (tumor de Pancoast-Tobias, para não ser injusto).  Chama atenção que a dor no ombro/braço é característica deste tipo de câncer, e pode representar alarme, principalmente se fumante. São pacientes tratados como bursite que, diluído entre ortopedistas e fisioterapeutas, e acabam perdendo a bússola diagnóstica. A imagem poder se confundir com tuberculose em lugares de alta prevalência, como na Amazônia. Chama atenção no artigo, o pequeno números de casos curados. Tradução: em estágio precoce essa dor tem destino: extirpação.

Uma vez definido e abordado precocemente, imuno-quimioterapia e radioterapia devem preceder o tratamento cirúrgico. Nesta abordagem trimodal, os resultados são animadores, como bem ilustra o artigo, mas não foi esse o roteiro daquele salva-vidas, que lidava com a morte iminente todos os dias, e tinha frações de minutos para decidir e resgatar tantas outras. Sem querer que Mark fosse premiado pela imortalidade, emudecemo-nos diante desse redemoinho, cujo demo circula ora dentro, ora fora da palavra; ora fora, ora dentro do alcance cirúrgico.

Na pugna do pântano, entre o homem e o anti-homem, os olhos do réptil saem da forma de fenda e se transmutam nas espirais de Watson e Crick, a boiar em busca de sua próxima vítima. Esse DNA ruidoso, inquieto, sortido e palpitante se apresentará em pouco tempo e o refúgio onde reina a vida, dá fim a mais um modesto heroi das torres gêmeas.

        Resta-nos, à beira do pântano, onde girassóis, ao pôr do sol douram suas pétalas para alumiar os pinceis de Van Gogh, que as invocações às retinas da ciência deem as mãos e formem conexões, por fim, para pôr fim a essas anomalias que carcomem dolorosamente a natureza dos homens  humanos, demasiadamente humanos.

  1. Moita CP, Figueiredo C, Cruz Z, e cols. Pancoast tumors: 11-year single-centre experience. Port J Card Thorac Vasc Surg. Vol. 31 No. 3 (2024): Jul-Sep.  2024.
  2. Teixeira JP. Concerning the Pancoast tumor: what is the superior pulmonary sulcus? Ann Thorac Surg. 1983 Jun;35(6):577-8.
  3. Spengler DM, Kirsh MM, Kaufer H.J Orthopaedic aspects and early diagnosis of superior sulcus tumor of lung (Pancoast). Bone Joint Surg Am. 1973 Dec;55(8):1645-50.
  • Roger Normando. Professor de Cirurgia Torácica, curso medicina da UFPA.
  • Texto no prelo a ser publicado no Jornal da SBCT (Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica)

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Um palimpsesto para “Quase Deuses"

 Rastros deixados pelo tempo me atraem

Raimundo Sodré, escritor acreano, em: Igarapé Piscina

      Que leitor ainda não se viu numa página de livro? Que cinéfilo ainda não se viu contracenando com Fernanda Montenegro?  

Samuel Beckett, escritor irlandês, ao mergulhar em Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, faz conexão visceral – ou xifópaga - com a obra proustiana e acaba emergindo em Proust (1931), um de seus valiosos ensaios. Beckett entregou-se a Proust assim como nos entregamos a Vivien Thomas, em “Quase Deuses”, um filme que marca a medicina e os degraus da academia.

Em prosa despretensiosa, lá pelas ilhargas da praça Batistas Campos, relembrei o filme, de 2004, que relatou a vida e obra de Alfred Blalock, um virtuoso cirurgião estadunidense que empregou Vivien Thomas, um negro sem curso universitário, mas encantado por trabalhar em laboratório. O filme fura a bolha da academia e se emboleta com a questão racial cujo roteiro dá uma tragada na fumaça cinzenta da relação entre um cientista e seu técnico de laboratório. Tal relação beckettiana lembra a de Sergio Lima e o cientista e professor Ronaldo Araújo, pelos barrancos guajarinos.

Araújo, premiado com várias publicações internacionais, ficou conhecido por suas contribuições para medicina tropical e patologia da Amazônia. Ele é especialmente reconhecido nas universidades paraenses e brasileira por seu trabalho sobre arboviroses (transmitida por artrópodes, como mosquitos e carrapatos) entre vários temas.

Foi premiado pelo governo alemão com um microscópio de varredura, dispositivo capaz de gerar imagens de alta resolução. Araújo passaria a produzir material científico de alta qualidade em plena década de 70. O ônus ficou por conta da manutenção permanente do aparelho, e a UFPA não disponibilizava de recursos para mandar buscar técnico da USP, já que era a única universidade no Brasil com dispositivo semelhante. Aquilo passou a ser um trambolho em seu laboratório. Araújo esteve por desistir quando recebeu ligação da reitoria aferindo que existia um jovem funcionário com extrema habilidade em eletrônica, que consertava desde rádio e televisão a ares-condicionados. O professor bateu o telefone.

O funcionário era Sergio Lima. O jovem dava-se ao luxo de encarar grandes desafios em ler esquemas de circuitos eletrônicos. Era um prodigioso funcionário da reitoria. O emprego era só para garantir o apurado, pois o que o sustentava era a sua oficina de eletrônica. Ronaldo Araújo não teve saída. Após um segundo telefonema resolveu apostar.

Placa afixada no centro de estudos do
hospital de Clínicas Gaspar Vianna
 
Lima, por sua vez, lançou-se ao desafio. Traduziu para a sua linguagem todas as equações, até resolver o problema. Araújo deu cambalhotas. Aconteceram mais três vezes; mais cambalhotas. Na quarta, Ronaldo Araújo discou para o reitor e disse que não devolveria o funcionário. A reitoria teve que ouvir, uma vez mais, o telefone desligar. A produção de Araújo ampliou e o jovem passou a compor a disciplina, inclusive preparando lâminas e material didático para aulas, capítulos de livros e artigos científicos.

Certa manhã, Lima estava paginando o Bogliolo (1556 páginas), bíblia da patologia tropical brasileira, quando se deparou com certo autor. Aquilo lhe tomou de supetão. Araújo, ao adentrar à sala, viu Lima com o nariz enterrado no livro. Não conseguiram se disfarçar. Araújo propôs a ele cursar medicina. Sergio Lima estava esperando por isso. Lima entrou no curso de medicina do largo de Santa Luzia aos 32 anos. Foi aluno de Araújo, mas teve que se distanciar do laboratório de Patologia Tropical, hoje um imponente prédio na Generalíssimo, de alta produção científica.

Lima e Araújo em momento social
    Sergio Lima manteve a amizade, mas trabalhou sua carreira clínica. Ronaldo Araújo seguiu venerado, sendo professor de inúmeros médicos paraenses. Ao longo da convivência, suas famílias ficaram muito próximas, tornando-se amigos e confidentes. Araújo morreu por infarto agudo do miocárdio, em 1995, ainda aos 60. Com a notícia, Lima teve um destempero e quase vai. Desde ali começou a adoecer e deixar a vida ao relento.

 Roger Normando é professor de cirurgia, curso de medicina da UFPA.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Praia de Copacabana, fundos.


 Viajar pelo Brasil requer paciência... mas muuuuuuuuita paciência. Os aeroportos cada vez mais desplugados do cidadão, que sente na epiderme da alma as chicotadas da escravidão moderna. Sobre estradas, então, nem se fala...

Na última, o avião me apanhou em Belém e me despejou em Brasília. Sim, um despejo que me fez lembrar os jogos da quarta divisão do campeonato brasileiro, quando o maqueiro da cidade sede, com o resultado adverso, cata o jogador visitante contundido, rola-o na maca e, à beira do campo, despeja o coitado, tal como se fosse jogar lixo num terreno baldio.

O jovem Caio, por mais que tenha tentado defender a sua empresa aérea, tenta criar um gabinete de crise para solucionar um voo suspenso desde quando ainda avistávamos, da janela, o lago Paranoá. Quando chegamos ao guichê da empresa, o caos começava a se instalar. Um verdadeiro parangolé. Mais e mais pessoas se juntavam na tentativa de obter o mesmo destino: Rio de Janeiro cuja pista de pouso estava suspenso por motivos pluviométricos, segundo os assistentes da empresa (ou seria pela chuva de gols que o Botafogo deixou no endiabrado Penarol?) Isso já era quase oito da noite depois de um voo de mais de duas horas. Com exercícios de paciência, conseguiram nos colocar num voo para campinas, pela empresa vizinha, para o dia seguinte, e depois aterrissar no Santos Dumont. Seriam 18 horas de atraso. Dava para chegar em Dubai pela Emirates, ou Gurupá, ilha do Marajó, de barco, com direito a 12 paradas, a favor da maré.

Isso porque haviam colocado à disposição um voo de quase 24 horas de espera em Brasília. Talvez fosse a chance de conhecer o belo Paranoá, rés ao chão. 

Quando tudo esteve mais calmo fomos encaminhados a um hotel de alto nível, com voucher da empresa. Pavulagem: o hotel não tinha recebido nenhum comunicado. Mais uma decepção. Mais um gol contra. Naquela hora ou voltaríamos para o aeroporto, ou encararíamos aquele pernoite por mil reais. A romaria de sem-tetos a cada momento aumentava no balcão do hotel. Eram os mesmos rostos bufantes de antes. Cansado, tirei o escorpião do bolso. Apesar de caro, era melhor lugar para rezar, esperar o amanhecer e depois partir.                              Na memória ficou a história do motorista da van. Ele nos aferia que aquilo acontecia todos os dias em Brasília. Ou seja, a empresa sempre estava ali pronta para enganar os bestas e manter esticada a corda de caranguejo, em que um está preso ao outro pelo cordão da convivência conivente, independente da empresa.

Então embarcamos às nove e chegamos a Vira-copos com a sensação de vira-lata de invasão, sem direito a um cantinho para descansar os ossos -já com algum grau de osteoporose - e sem sequer um cafezinho para melhorar humor e o teor sanguíneo de serotonina.

Como todo caos é pedagógico, vivemos uma experiência e um bom bate-papo com dois cariocas dos tempos do Brizola, que estavam conosco desde a fila do guichê. Libério e Robertinho Careca, engenheiro e geólogo, respectivamente. Profundos conhecedores dos cafundós da Amazônia, eles haviam embarcados em Laranjal do Jari, divisa do Amapá com Pará. Mantinham acesos o sotaque e humor carioca, além de efusivas histórias.

Entre horas e horas de conversas, do guichê ao pouso  em Santos Dumont, Rio de Janeiro, várias relatos foram perfilados, mas o de Copacabana, foi a mais sensacional. É a história de um prédio que fica na beira da praia, mas o apartamento adquirido fica de costas para o mar. Ele fez o investimento para agradar um amigo português, também geólogo, que havia conhecido em Maputo, capital de Moçambique, após ter saído de um coma de cinco dias por malária. Roberto lembrou-me o personagem Melquíades, de "Cem anos de Solidão", de Garcia Marques, em que sobreviveu a várias moléstias. Também lembra o esquisito Rasputin.

Mas essa história vai ficar para outro escrito. Não tenho tutano para escrever mais que 3 mil caracteres e transformar esse texto numa passagem aérea para concorrer ao prêmio Jabuti. Nessa situação eu até aguentaria dar duas voltas ao globo, mesmo nas asas da Gol.

domingo, 6 de outubro de 2024

Made in Acre



       Há os lugares que chamam Macondo, há os que nomeiam Pasárgada... Há os que se apaixonam por Benquerença. Vou ficar com Feijó, esse pedaço de minha viagem à infância no Acre. Que se danem Gabriel Garcia Marques, Manuel Bandeira e Corisco, respectivamente.
       Vou nesse voo pelas asas do Toninho, com quem hibridizo alguns alelos mendelianos. Toninho passou 50 anos longe do Acre, terra onde ele foi prosperado. Nesse meio século eu estive ao lado dele e vi que de lá ele nunca se desligou. Todo o azougue de vida que ele criou com o passado mora ali naquele cafundó do mundo, pedaço rico da Amazônia de Chico Mendes e minha também.  
         Então numa leitura perdida, eu me achara voltando ao Acre 50 anos depois, na vez do Toninho, que nosso pai chamava de Tilico.
          Lembro ainda de nossa partida. Só cabia viagem pelo ar. Era num monomotor Cessna. Agora já há um novo caminho, mas por estrada talhada pelo abandono. No céu há sinais de queimadas. É a Amazônia em chamas, visto do chão e da janela do avião. Não era esse o teto de outrora. São laivos de uma destruição que não poderíamos ignorar.
         Pela estrada, eu havia esquecido muitas outras coisas de uma vida que ia se tornando aterradoramente longa. Para mim, certas desmemórias funcionam como uma estratégia de sobrevivência: era preciso soltar lastro para se manter flutuando na languidez das lembranças de nossa infância sem encalhar nos rancores, nas contagens de ilusões truncadas, até partir dali pra cidade grande, na década de setenta.                                         Até um sujeito como Toninho, em que tomo emprestado suas retinas, obstinado recordador, quase um memorioso capaz de se lembrar de tudo, devia permitir à sua consciência certas varreduras, limpezas anímicas e psicologicamente higiênicas para tentar impedir que a carga das lembranças o enterrasse o lodo das aversões e frustrações, como a de seu irmão mais novo, quase morre num atropelamento irresponsável.                           Sobretudo, para não pensar que teria sido possível outra vida, Toninho largou de lado essa amargura e chegou a Feijó 50 anos depois. Levou-me em seu bolso. Mas aquela confluência específica, às margens do rio Envira, já quase na beirada com o Peru, é quase uma revelação mística. Os seringais, os Kaxinawás. É óbvio que se lembrava - tinha de se lembrar-, ele até consegue reproduzir em cores e com precisão de detalhes, ocasionalmente ornada com as rotas, brincadeiras de futebol, bola de gude, pira-esconde e trinta-e-um-alerta na hora que a iluminação dos postes findava.
Hoje retomamos a esse passado apaziguado pelo sentimento de infância; pelo reencontro com esse passado de fantasias, adormecido dentro do travesseiro antes de dormir.
        Se em Macondo existe um rio de águas diáfanas, se em Pasárgada sou amigo do rei, e se em Benquerença tem o Rex Bar, em Feijó tem o Orleylson e o Escurinho, outro elo com essa querência de repassar a limpo o que ficou tatuado nessas relembranças trincadas no meu cérebro, mas uniformes no do Toninho.
      Esse pedaço de vagomundo não se evapora no simples ribombar do passado autóctone. Ele fica vivo como afresco que se expressa na parede viva que acarpeta nossa pele. Não há queimada que apague. 
       É que: se o tempo nos desse a chance de,  na barra da saia de nossa mãe, sair para pescar de linha e anzol, essa gota viva de lembranças que escorrem pelo rosto, que nos isola de um tempo cujas densidade e matizes permanecem acesas, nós reconstruiríamos apenas com a luz de poronga toda essa vida novamente.



sábado, 21 de setembro de 2024

É tarde, escrevo: o porão convalesce de um luto

Para quê a gente escreve, senão para juntar nossos pedacinhos

Eduardo Galeano, escritor uruguaio, em: “O livro dos abraços”

 

Se o conceito de acolhimento dorme no fundo do Caldas Aulete, seja como sinônimo de refúgio ou de guarida, ele acorda nos braços de dona Lourdinha.

Lourdinha e o Chavico moravam numa casa enorme na Gentil Bittencourt, e nela havia um porão, onde dormiam Luiz Pedro, o mais velho e estudante de engenharia, e o Luiz Gonzaga, sobrinho de d. Lurdinha. Assim como eu, Gonzaga migrou do interior, em busca de estudos. Éramos do mesmo colégio. Nossa amizade foi condecorada com futebol e quando fui convidado pra estudar naquele porão. No primeiro semestre eu passava por lá somente às vésperas de provas. No segundo semestre praticamente passei a morar lá, pois nossas notas haviam melhorado e começávamos a acreditar que aquela parceria daria passaporte para a universidade. Em que pese grande disputa por vaga e nossas fragilidades inerente ao ensino no interior, acabamos sendo aprovados, com alguma pitada de destaque.  

Muitas lembranças ficaram daquele porão. Gonzaga seguiu no curso de farmácia e depois voltou para Balsas, seu interior do Maranhão. Eu segui para o Rio de Janeiro. Conheci uma carioca de laranjeiras e por lá me casei, logo que acabei o período de residência médica. Nunca mais encontrei Gonzaga – ou Silva Neto, como era conhecido no seio familiar. Também nunca mais voltei àquele porão. Ficou um agradecimento sem tamanho e uma dívida enorme de gratidão àquela família. Ali vivi um estado de espírito osmoticamente contraído pela servidão que me ofereciam.

Lembro bem a hora do café. Sentávamos em uma mesa grande em que “seu” Chaves ficava na cabeceira, de banho tomado, cheirando a patchouli, cujas costas se voltavam para os janelões amplamente abertos, por onde vazava o sol. Havia plantas naturais entre algumas samambaias. Já no carro, acho eu uma Caravan bege - ou marrom-, Chavico nos deixava na escola e seguia para o trabalho de bancário. Dona Lourdinha segurava a tarefa de casa, como tradicionalmente ocorria com as famílias de outrora.

Uma fotografia datada de 1982 e a outra recente de 2024 fizeram-me revisitar esse passado adocicado, que nunca quis me abandonar. Na de 82 estavam eu, Gonzaga, Jaques e uma moça de nossa idade, cujo nome não conseguirei lembrar. Estávamos abraçados, fazendo pose para a máquina. A imagem carregava o sol de um sábado de fevereiro. Era de manhã e acabara de sair, pelas ondas do rádio, o listão do vestibular. A comemoração na calçada foi regada a Pinduca com maizena e ovos crus nas cabeças raspadas. Eu havia levado uma topada minutos antes e esfolado um dos dedos. A fotografia ainda mostrava o sangue escorrendo pela calçada. Carrego a unha deformada até hoje. Mas se no lado de fora havia sangue e dor, no de dentro do casarão e do meu coração, d. Lourdinha e Chavico estavam eufóricos.

Já a fotografia de 2024 tem autoria de Nayara, neta de d. Lourdinha. Ela nos flagrou no leito do hospital conversando sobre a sua enfermidade e as perspectivas após cirurgia (paliativa). Já eram os primeiros sinais de desconforto respiratório. Mesmo gravemente enferma ela soltou um sorriso de passividade que surpreendeu a autora da fotografia: “rindo só pro dr. Roger”. Os filhos e netos entenderam, com a mesma sabedoria de seus pais, que a finitude, ao ganhar braços, pernas e asas, dá-nos a mão gelada tão somente para pedir passagem.

D. Lourdinha seguiu para companhia de seu esposo Chaves, que já mora há algum tempo no lado de lá. Ele foi funcionário do Banco da Amazônia. Lá conheceu meu pai, até findar nesse relato. Ele considerou a possibilidade de me ajudar nessa jornada pela terra. Tirei proveito e me encaminhei para esse destino: eu e Gonzaga - aliás, o Silva Neto.

        Se tive a frustração de meu estetoscópio não conseguir escutar o murmúrio saudável da respiração de d. Lurdinha, salvaram-me os abraços dos filhos, que junto àquele destino, choramos as doces lágrimas da singeleza que a vida traça e nos encordoa.

sábado, 27 de julho de 2024

Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o esterno

             É sinal de sabedoria apreciar pequenas e inesperadas narrativas, mesmo que possa ser asneira científica. São interpretações benéficas e ofuscantes da arte de viver que derivam de outras épocas e de homens devotados à metafísica e à arte. Mangar disso é jogar pedra na Geni.

Há alguns dias um amigo anestesiologista parou-me no corredor para meia prosa, assaz inebriante, que lhe ocorreu após breve anamnese com seu paciente, na ante-sala de operação para retirada da vesícula biliar. Percebeu que o vovô de 82 anos tinha o peito escavado – conhecido como “peito de sapateiro”. Ele, fortuitamente, interrogou o paciente sobre aquela deformidade. Com intenção de dizer que existe solução cirúrgica moderna para o caso, o paciente respondeu na bucha: - Não faça isso dotô. Essa deformidade já me salvou de perrengues.

Segundo o vovô, certa vez sofrera um acidente de carro e foi levado para o pronto socorro. Meio desacordado e sob efeito do trauma psicológico, o jovem médico, desavisado, viu aquele defeito e achou que a concavidade seria por conta do acidente. Ensaiou chamar o cirurgião, mas o velho amigo de farra cortou e aparou: defeito de infância! "Por um triz eu não fui pra sala de cirurgia".

- Tem mais uma, dotô! Fui nadador dos bons, e essa deformidade dava-me maior tempo de apneia ao mergulhar. Sempre derrotava os concorrentes nesse quesito.

Para ele, o sucesso era por conta daquela afundamento. Leva a vida assim desde então. Para ele nunca foi doença. Só para os cirurgiões. Ou será que o amigo confundiu-se com Peito de Pombo (Pectus Carinado/Carinatum)

Fico a imaginar as histórias que cada médico carrega em seu jaleco. São vivências belas, brilhantes, arrebatadoras. Talvez até mesmo beatificantes. Cabe a cada um, detentor do conhecimento, apenas ter sobriedade para ouvir sem retrucar. Se outrora o espírito não era requerido por um estrito modo de pensar dentro da caixa científica, então a atividade consistia em imaginar símbolos e formas. Há de se perdoar. Não cabe virilidade. 

        Esse relato me espantou pelo fato de, na prática clínica, ocorrer exatamente o inverso. Pais chegam atordoados ao consultório com aquela imagem sinistra de seu filho. A sensação é que aquele esterno curvado para dentro possa espremer pulmão e coração. E não raras vezes o adolescente apresenta cansaços em que culpam a deformidade. 

Recentemente (2024), um estudo da University of Cincinnati revelou, com 274 adolescentes com Pectus Excavatum (peito escavado, peito de sapateiro) tiveram seus fôlegos avaliados. Observaram que os resultados em pouco mais de 20% demonstraram alguma pequena restrição na respiração, mas sem essa de melhorar o fôlego, conforme brandia nosso vovô.

O artigo já encanta no título: (F)utility of preoperative pulmonary function testing in pectus excavatum to assess severity [(F)utilidade dos testes...]

O que se tem feito, e somos adeptos, é esclarecer à família e tranquilizá-los da melhor forma possível, para que se sintam seguros em ser submetido a uma operação que menos parece questão visceral e mais um remodelamento anatômico.

O artigo é muito prático e carrega desde o título a proposta de todo pensamento científico, ou seja, desvendar dúvidas atrozes que se carrega no cotidiano acerca da uma deformidade que maltrata a cabeça dos pais e leva crianças e adolescentes a sofrerem bullying, vergonha e até mesmo depressão.

E o pensamento clínico fica no meio disso, procurando dar pirueta olímpica para decifrar os sentimentos adversários. Essa, aliás, não é uma questão fácil de resolver pelos algoritmos da Inteligência Artificial (IA), pois cada caso precisa ser interpretado de acordo com Inteligência Alheia (Também IA). Por isso devemos agradecer ao grupo de Cincinatti e a grupos brasileiros que sabiamente buscam tais esclarecimentos.

Mas devo confessar que já não me angustia tanto os enigmas em torno das fronteiras entre ficção e fatos científicos. Há médicos em que um dos ouvidos dá voz à ficção; já no ouvido oposto, acústico ao saber erudito, prefere silenciar e deixar que o outro lado não desapareça, pois ainda se precisa desses relatos para deixar a respiração da humanidade mais leve.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Mais que um caso clínico, o passado

Ao final dessa jornada

                     Onde posse vale um nada

Eu diga em contrapartida

Valeram as voltas da vida.

Corisco


"O paciente, em crise de loucura, tentou arrancar o dreno", retrata o cirurgião ao ver que seu paciente retirou o dreno de si, sem anestesia, e com requinte de crueldade. Foi autoflagelamento, diriam, mas por incrível que pareça, ele teve a consciência de não evadir. Relatos como esses não são raros em prontos-socorros.

Teria sido pesadelo? O pesadelo é um sonho desesperado, acordando suado no meio da noite. É quando o marinheiro escuta a tempestade em alto mar; ou barulho da pá do coveiro jogando terra virada para enterrar vítimas de uma pandemia. É o urso rosnando à sua frente numa estrada estreita e sem rota de  fuga. É o que faz chorar o coração. É a abstinência dos adictos.

Levado ao setor de radiografias, o cirurgião ficou surpreso ao ver a imagem de parte do objeto no interior do tórax, cujo dispositivo havia sido colocado na sala de emergência, com todo capricho, por incisão de cerca de 2cm. 

        Decidiu-se pela reintervenção sob anestesia geral. Então o tórax do paciente foi aberto com incisão de quase um palmo, para a retirada daquele corpo estranho, de formato tubular, pouco maior que 30cm. Nessas operações, o que mais maltrata o paciente é a colocação de um afastador, que em metade dos casos acaba fissurando as costelas. A dor pós-operatória é lancinante e pode durar muito tempo. Descobri pela enfermeira de 40 anos de casa, que aquele instrumental ainda era o mesmo desde quando ela chegou, quando ainda era estudante, eu.

           Convidado, decidi ir ao hospital para ver aquela situação inusitada em que o paciente entendia que ele mesmo poderia dar destino ao seu destino. Fui e fotografei, mas o que me faz vir aqui e relatar não foi o caso em si, mas o passado.

          Antes de mais nada, gostaria de pedir licença a esse passado. Até porque tenho muito mais de memória, do que possa ter de vida pela frente. Creio que toda relação com o passado é o que tenhamos de mais afiado para enfrentar o que se enxerga pela frente.

            Gostaria de seguir falando desse lugar íntimo em mim, mas que infelizmente sempre foi abandonado pelo poder público: o Pronto Socorro  Municipal da 14 de março, hoje conhecido com outro nome - que não o mesmo da minha época. Guardamos tantos lugares profundos, que não dá para visitá-los toda hora, sob pena de uma parede da tristura desabar sobre minhas costelas. O HPSM é um desses.

            Neste momento, se há uma voz teclando essas palavras, digo-lhes: não é a minha voz. É um passado doce e suave no pé da orelha que há muito caminha sobre palmilhas, silenciosamente, como uma espécie de esquizofrenia organizada, em forma de crise existencial. Em verdade, quando tento explicar o que estou sentindo, já brota certa nostalgia, e não tem ortografia que me segure... Nem gardenal.

           Foi nesse lugar que comecei minha vida de cirurgião de trincheira, como peregrino em tantos desafios. De lá detenho gratidão, de lá escrevi livro e fiz muitos amigos. Esse texto é aquilo tudo que a gente não precisa esconder do outro. Onde há sentimentos que fingimos não ter e não saborear. Este diálogo está atado no lado oculto de todos nós, sem precisar expressar que EU fiz isso, ou que ali EU fiz aquilo. Deixemos a bravataria para quando estivermos na porta do inferno querendo escapar do fogo, coisa que nem Giordano Bruno conseguiu.    

            Adentrei àquele hospital sem sequer me pedirem documentos. Desde a portaria e por todo o caminho para o centro cirúrgico fui saudado por todos aqueles funcionários de outrora. Velhos amigos, agora grisalhos. O Marco Fumaça, um técnico de enfermagem das antigas, me parou e não desgrudou. Ainda exala o cheiro de cigarro de outrora. Falamos do passado institucional e de várias outras amenidades. Por conta disso, quando cheguei ao quirófano, a operação já havia findado. Só vi o dito dreno fora do tórax, exposto em praça pública para todos verem.

            Eu me lambuzei nos relembrançamentos submersos naquele passado de encantamento. Pena que o cansaço foi mais forte e tive que pedir escolta ao caminhar para o esconderijo do tempo. Deixei-me levar pela vida com menos tormenta e mais aconchego para a minha dor lombar, que ora me pega pela proa e me deixa manco. 

    Mas devo esquecer as tantas madrugadas roubadas de meu travesseiro, para que possa transformar esse passado em amenidades e um pouco de apreço pelo que fui. 

     O passado, já sabemos por escrevê-lo ou lê-lo. Mais parece ficção reconstruída com pequenos pedaços de realidade, ou ilhas móveis em mar de memória, a depender dos ventos da saudade que se deslocam e se reconfiguram.

        Lembrar-se vagamente é dos alentos que podemos nos propor, em prece, pedindo aos céus que a parte submersa seja sempre a mais contundente e expressivamente maior.


Texto impulsionado pelas palavras de Corisco e Sabá de Abadia, do bando de Corisco.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

As trincheiras espinhosas da cirurgia


                                                                                If didn’t kill you, surgical training made you stronger

Paul Riggieri, cirurgião e escritor em:”Confessions of a surgeon”

 

Coisas das que mais gosto é flanar por livrarias - ou bookstores para os amantes de viagens internacionais. Tenho predileção pela livraria da Travessa, em Botafogo, quando visito parentes no Rio de Janeiro. É difícil sair dali sem deixar uns dinheiros por lá.

Há as bookstores, e a minha turma do “Urubooks do Ver-O-Peso” bem sabe disso. Numa dessa viagens, no aeroporto de Quebec cujo nome não vou lembrar agora - mas também não vou consultar o Google-, deparei-me com o Medicine Walk, de Richard Wagamese, escritor canadense. Era um quiosque comum. Acheguei-me pelo título, mas comprei após biopsias retinográficas de algumas páginas - como sempre faço. Ademais, gosto de autores desconhecidos. Nesta ida, estava aventurando-me pelo Institut Universitaire De Cardiologie Et De Pneumologie - Québec.

Por circunstâncias outras, voltei a ler o bendito “Medicine Walk” (sem tradução para o português) recentemente e me vi num fragmento que bem descreve as trincheiras de cirurgião.

No romance o jovem Franklin Starlight, 16 anos, sai em busca de seu pai, perdido na floresta. Caminha montado num cavalo, por trilhas estreitas. Numa delas depara-se com um urso. Percebe ameaça a uns oito passos.  Para e fica no dilema entre voltar para casa ou enfrentar a fera e tentar salvar o pai. Foi quando o animal rosnou forte à sua frente, obstruindo toda a trilha. Ele manteve a posição, apesar de estar tenso. O cavalo, por sua vez, tremia. Resolveu lentamente se achegar, a ponto de começar a sentir o pixé do urso. A primeira coisa que pensou foi que suas costelas seriam esmisgalhadas e seu sonho de achar seu pai ficaria ali. Manteve-se teso. O urso segurou o olhar e elevou o focinho para farejar. O coração do garoto batia mais forte; ameaçava sair pela boca. Entrou em outro plano e avançou pouco mais. De repente o garoto exalou o ar pela boca, colocando pra fora o máximo de volume residual pulmonar, ao mesmo tempo que levantou os braços. O urso quebrou. Virou-se e saiu andando lentamente para o interior da floresta. O menino viu o caminho livre e seguiu mais aliviado. Olhou para trás mais uma vez, de soslaio, mas com receio.

Continuou, mas ainda com a sensação de ameaça. O cavalo permanecia assustado e aparentava estafa. O cheiro amargo do urso permaneceu em suas narinas por toda a caminhada. Ao fim, ele encontra seu pai desnorteado e saem dali. A primeira coisa que fizeram foi ir até um centro religioso para agadecer.

A versão da literatura realista de Waganese realça a filigrana do gesto, principalmente quando há adversidades.  A palavra, por vezes vira razão, por vezes salvação; vira agressão, por vezes fracasso. O gesto não. Não há dúvida que, se o jovem, em apuros, estivesse com uma bereta, ou mesmo um estilingue, lançaria mão da arma para aniquilar aquela ameaça e salvar seu pai. Não tendo arma e não podendo se comunicar com palavras para explicar o seu objetivo, ele lançou mão de gestos ameaçadores. Só assim viu seu caminho aberto.

Não há dúvida que o jovem Franklin Starlight foi sobre-humano e já carregava luz e estrela no próprio nome. Se o comum seria recuar, ele usou a força dos pulmões para mostrar sua grandeza, mesmo sabendo dos riscos de expor suas costelas e, por conseguinte, a respiração parar.

Cirurgiões de trincheira são sobre-humanos? Têm luz e estrela no nome? Nada disso. Apenas aparentem super-homens, a despeito do ofício. Têm seus dias que precisam decidir mais fora do que dentro do campo cirúrgico. Há dias em que precisam explicar a uma família que o câncer está disseminado e não tem como erradicar a doença com as mãos da cirurgia. Por outro lado, existem as decisões acertadas. Todos os dias enfrentam seus inimigos, sejam moinhos de ventos ou um ser humano vestido de urso.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Um Rio Grande do surrealismo


         Passo as horas da insônia espremendo a madrugada desse sábado, pra dela tirar o melhor sumo, mas me vem os gaúchos. Viro de um lado para o outro da cama... e nada! Os Guaíba e Taquari não me saem da cabeça, assim como o rio Acre, na capital Rio Branco, o Itacaiaúnas, em Marabá - em seus passados recentes; assim como todas as enchentes que vivemos na Amazônia dos ribeirinhos.

Dá vontade de beber toda aquela água do Guaíba e vertê-la no atlântico, por meio dos ductos urinários. Espera-se que em breve, novos tons modifiquem a paisagem sulista para que passemos a nos locomover, dançar, girar e ir a grenais; e desanexar de nossas retinas a cor barrenta dos tetos das casas para anunciar o fim da catástrofe ambiental.

Mas o que está acontecendo, afinal? Seria o homem perdendo o senso, o tino contra o destino, e depois cair de boca no mundo implorando para que a vida lhes seja leve, sem Rivotril?

Se de dia os deuses dormem e não se prestam a atender pedidos vãos, eles castigam os humanos por suas escolhas, em grandes partes infelizes. E é isso que garante a perenidade dos deuses que, a pedido, voltam às madrugadas para bolinar com meu sono, enfeitando-os com as flores do amanhã que nunca chegarão.

Perseguido pela insônia, levanto-me e ponho-me a andar. A moldura da janela do apartamento é a mesma que enquadra o mundo que meus olhos percorrem na madrugada insone. Olho para uma outra moldura, a Madona de Belini, e não consigo ver sorriso, tampouco euforia. Não ouço o barulho da chuva das ruas de Porto Alegre, alhures, mas se afoga em mim um mundo silencioso e soturno, salpicando água salgada, que  escorre pelo canto do olho.

Ao redor, nossos prédios guardam pessoas que dormem, e muito me agradaria se, de uma janela qualquer surgisse o Esteves - aquele que Fernando Pessoa diz ser sem metafísica - para me acenar .

Será que Esteves me explicaria, por exemplo, como os Neardenthais sumiram da terra? Yuval Harari pediria voz: viveram há cerca de 400 mil anos e extinguiram-se há 28 mil anos. As razões para a extinção ainda são debatidas. As teorias mais aceitas apontam para fatores demográficos: pequeno tamanho populacional, endocruzamentos, mudanças climáticas, doenças e combinação.

Mudanças climáticas? De novo o tema? Será que tais mudanças climáticas realmente abduziram nossos primos Neardenthais - em minha docta ignorantia? - Por que os Sapiens resistiram? Sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos, portanto, Neardenthais e Sapiens se cruzaram em algum lugar dos confins de Copacabana, naquele sábado que deveria para ser enlutado. 

Quando minha vista não deu mais conta da paisagem, entra em cena a imaginação, pra enfeitar as horas do sono que não chegam. Olho para a noite estrelada de Van Gogh e um mundo novo e inebriante se descortina à minha frente em apresentações deslumbrantes, com astros vindos dos confins da eternidade em exibição celestial, exuberante, de sustar o fôlego.

Quando o domingo lançou os primeiros raios, as copas das mangueiras exibiram seus frutos em amarelices variadas. Ao nível das ruas o sossego brincava de esconde-esconde numa agitação invisível aos que não tinham olhos de ver. Esse conjunto de euforia me faz sentir paz. Melhor não ligar a TV. É hora de abandonar tudo e tentar dormir.

Ao deitar, uma motocicleta impiedosa passa. De sua descarga saem imprecações monstruosas que desfazem toda a magia que envolvia aquele momento da mais gloriosa comunhão entre mim e a natureza. Seria a tal motocicleta responsável por tantos desastres naturais? Tão rapidamente foi a cena, que não esbocei sequer reação à agressão e nem desejei que o infeliz fosse contaminado com a peste negra ou pelo SARS-Cov2, a carcomer seus pulmões a cada estada nos círculos do inferno descrito por Dante.

    Tornei. Já era hora de ver o almoço. Mais imagens, agora via Reuters, mas é Mário Quintana quem me reconecta ao domingo minguado. 

Não desças os degraus do sonho

Para não despertar os monstros.

     Não subas aos sótãos – onde

Os deuses, por trás das suas máscaras, Ocultam o próprio enigma.

Não desças, não subas, fica.

O mistério está é na tua vida!

E é um sonho louco este nosso mundo…


Roger Normando é cirurgião torácico titulado pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica e professor da Universidade Federal do Pará.