Ao me aposentar, já tinha plano: escrever. Para
escrever é fundamental ler. E mais: ter o derredor à flor da
pele. Então ver e ouvir também são da maior importância. Convém ainda
registrar que o confinamento pouco me afeta, vez que já havia feito essa opção.
Então, vesti meu pijama com a estrela do Botafogo, calcei meu velho chinelo,
deixei de lado aquela camisa do Hemingway que trouxeste da Flórida, e passei a
obedecer à nova ordem mundial.
Com a folha em branco à minha frente e lágrimas de saudade de meus
amigos da esquina, comecei a escrever depois que perguntei sobre você e sua
saúde, já que estás no olho do furacão. Senti-lhe algures, entre a luz e a
solidão do mundo. Tento rabiscar e logo vejo que preciso do bar, pois o que me
vem à tona é a peste: desde o morcego às últimas notícias de Veneza.
Sem dúvida, afeta-me o reabastecimento do afeto nos bares: lá ouço
as viagens a Cubanacan, do Paulo André, arena do Zé às quartas e a derivação
pros lares, tropeçando no verbo to be. As conversas de boteco me
afetam, pois eram minha anfetamina. Até do Luiz, que anda semeando a bela
Lisboa, sinto sua lonjura.
Mas como poderiam escritores e poetas
retratar as doenças? O que pode a humanidade aprender com as epidemias?
Que ensinamentos podemos extrair dos cientistas, dos médicos? Que: quanto mais
depressa se deixar sair a ideia, quanto mais logo se for escrever, mais
verdadeiro estaremos, pois tudo é o retumbar dos sentimentos à beira do caos -
coisa de poeta. Checar os periódicos da ciência e os grandes pensadores, que já
emitem opiniões no meio da ventania, não é para poeta. Poeta quer é tirar a
poesia do borrão; quer reler de Camões a Camus, cuidar do bando, da abadia, do
Sabá e do inesquecível Zabelê.
Dentro de casa, a zero por hora, viro pro lado e vejo-me
lendo Bukóvski e os “Karamazov” como se tivesse sentado à beira do abismo;
depois vou para o outro lado e deparo-me com João de Barros, Quintana, Ruy
Barata. Neles a vida corre serelepe. É quando entro em equilíbrio.
Pois bem... Refletindo sobre essa praga, penso que teremos algumas
mudanças significativas, mas nenhuma que altere a natureza profunda das
coisas. Passado o caos, não creio que a natureza humana restará
arrependida da própria existência. Estaremos mais técnicos, doutos,
lavando a mão a cada talagada da branquinha e usando máscaras para beijar a
amada. Passaremos a substituir a água com açúcar e os florais Bach por
comprimidos de Prozac ainda no café da manhã aos Domingos de Ramos.
No chão concreto de Manhattan, o capital continuará sua
busca de reprodução através de novas formas, seja toureando pela Nasdaq, seja
batendo estaca em canteiros de obras de Beijing - sem deixar de lado o
avanço da robótica e do próximo vírus transmutado. É quando Marx se reboliça no
túmulo, tentando amaldiçoar Adam Smith quanto à questão dos mal incluídos no
sistema de trocas através do dinheiro.
Como incluí-los? Haverá essa
preocupação? Bilionários e milionários continuarão assim e os pobres e
miseráveis, que tiverem sobrevivido, continuarão assados. Será que essa
calamidade deixará alguma lição que redunde em maior solidariedade, compreensão
e efetiva preocupação com o próximo? Tenho dúvidas. Talvez eu seja um cético
incorrigível. A História, escrita com as letras do tempo, responderá com tintas
negras sobre papel pálido dos neoliberais que recolhem dízimos dos miseráveis.
Daqui do meu poleiro, sobre as
mangueiras que me emprestam amizade para amenizar os destroços do meu
coração, espio a rua vazia, a virulência desse ataque e a vil certeza que existem
carências mais graves que a própria doença. Tais carências atravessam diversas
nações e atingem no alvo aquelas que se vestem de potências e ululam por mares
de soberba, ao achar que tudo se resolve com a pílula de antimalárico e um tubo
7,5 na goela dos que procuram vento para desafogar o fôlego.
Abraços, Corisco.
Um comentário:
Belíssimo! Amo ler um texto assim, em que a língua e a linguagem são usados a perfeição para enriquecer o mundo com mensagem tão bela. Parabéns, vou compartilhar!
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