The crack, crack, crack of broken ribs with each chest compression greeted me
at the door. The death clock had
started
Paul
Ruggiere, in: Confessions of a surgeon
Quando morrer, se meu corpo não putrefar de imediato e ainda permanecer algumas horas sob o sol do equador, vou pedir para meus filhos e minha esposa, acostumados
com tatuagens, contratarem um bom tatuador para tinturar no meio do peito a
clássica frase de René Leriche: “Todo
cirurgião carrega consigo um pequeno cemitério, onde de tempos em tempos vai
rezar – um lugar de amargura e arrependimentos, onde se deve buscar uma
explicação para seus fracassos”.
Que essa frase pese no meu peito feito cruz de angelim-pedra,
a mesma que todo cirurgião carrega ao longo de sua lida, mas segue inconfesso e
circunspecto. Que fique corrosiva,
marcada a ferro e fogo, em carne viva, já que não mais haverá dor. Depois é só
descer o esquife e fazer a última oração de corpo presente.
Essas confissões
granulares, por vezes espinhosas aos que não têm nervos, não me levam a achar que haja falha em nossa
formação acadêmica, ou algum desvio comum na formação cirúrgica. É que o
séquito de Ambroise Paré vive com suas almas acabrunhadas, com olho esbugalhado na
sociedade desde os tempos de Hamurábi.
Explico. Durante
muitos anos de minha vida convivi em pronto-socorros. Ganhei muitas, mas perdi algumas batalhas. Em cada perda um pouco de mim se ia. Quando voltava pra casa para me
confessar, refletia sobre o que eu poderia ter feito de melhor para recuperar aquele
jovem que chegou com um tiro no meio do pulmão, ou na beirada do coração. Eu me
confessava folheando livros; procurava a manobra que não fiz, olhando para o bico do sapato manchado com gotas de sangue.
Foram muitos anos
nessa pisada, até um dia cair em meu colo o livro do médico e historiador Luis Mir: Guerra civil e trauma – trauma
no sentido de traumatismo físico, violência
urbana. Foi presente de amigo. No calhamaço de quase mil páginas achei a
pérola que precisava: O trauma obriga
cirurgiões a recuperarem para a medicina uma dimensão mais atenta das
limitações humanas, definitivamente abandonando qualquer tentação ou delírio
mais oculto da onipotência. Era o que precisava ler. Senti-me consolado e,
se carreguei algum deus debaixo da pele, aquela leitura estóica me fez perder
a onipotência.
Naquele sábado,
ao chegar em casa, sentei-me à frente da bíblia, essa espécie de cemitério que
Leriche apregoa, para confessar mais esse fracasso. O olhar se desviou
para o livro de Mir – bem à minha frente. Vi-me impávido, frágil e quase desossado.
Aquela leitura sincopada acolheu meu pranto àquela confissão.
As orações de René
Leriche e Luis Mir têm representatividade para os cirurgiões que se confessam de joelhos, embora
saibamos que nem todos se reconheçam dentro delas.
São palavras que
adornam o silêncio.