Esta é a floresta de hálito podre, parindo cobras.
Fede. O vento mudou de lugar.
Raul Bopp, poeta gaúcho, em: Cobra Norato
Quem enxerga
a Amazônia pela via aérea depara-se com um enrugamento
verde, incisado por uma
cauda aquática que serpenteia a floresta com seus tons e entretons marrons.
O desenho das águas, vista dos satélites, lembra
um imenso ninho de cobras. Assim, na aparência encrespada das árvores vê-se a dança de Boiúnas,
Boitatás e Noratos que, habitantes do rio-mar, serpeiam as águas
barrentas do Amazonas de Vicente Pizón.
O termo mítico da região está presente na mitologia grega, antes mesmo de Pizón pisar por aqui: Amazônia. Isto é, guerreira sem seio. Dessa maneira, o campo etimológico descortina o mito das amazonas que, para manejarem o arco e flecha com destreza, decepavam o seio destro. Reconhece-se assim as primeiras mastectomias da humanidade. Tais mulheres agrupavam-se em tribo eminentemente feminina e vez ou outra cada uma recebia guerreiros brancos. Portanto, a Amazônia é uma mulher, conforme apregoa ativista Mary Tupiassu.
Ainda
pela via aérea, adiante encontramos uma bifurcação emblemática: exploração
covarde da floresta e do homem - no sentido ontológico. Ou seja: mamar na mama
da mama Amazônia não parece ser uma mera aliteração que aprendemos lá na oitava
série.
Assim
sendo, como impingir progresso à região se lutamos dopados de soníferos para preservar o
maior bioma da terra? Bastaria-nos sustentabilidade e atenção aos nativos. O próprio
cacique Raoni faz apelo ao presidente: “não incentive o petróleo na Amazônia” –
refere-se à margem equatorial, uma reserva maior que a existente no
Catar.
Então, como conseguir alcances na fração do país onde os povos originários esquivam-se dos avanços? Um exemplo vem na área da medicina. No campo da ciência cirúrgica, um dos maiores ganhos foi o da cirurgia minimamente invasiva, desenvolvida inicialmente para o abdome (laparoscopia), conhecida como "cirurgia a laser", ou cirurgia com "furinhos". Os pioneiros, já na década de noventa, aportaram no tórax e, entre as costelas, chegaram à cavidade. Foi grande conquista. Em seguida, a robótica. Hoje já são mais de 111 plataformas no Brasil. Apenas uma na Amazônia.
A sensação
é que Amazônia, sem um dos seios, segue com o arco-e-flecha-da-sobrevivência, sem poder amamentar progressos.
O exemplo vem do cirurgião torácico acreano: “Nem vídeo temos para o tórax. Rio
Branco sem broncoscopia”. Em Manaus, um cirurgião me confidencia: “Ainda não
chegou o Robô, acredita?”.
Entre
as capitais, apenas Belém tem cirurgia robótica, desde 2017, mas vive
sob o penar de seu custo exorbitante, a ser pago pelo paciente. Manaus ainda a ver, das embarcações, a cobra Norato. Eu ainda duvido
que haja uma sociedade brasileira preocupada em dar à Amazônia qualquer apoio. Vai precisar passar pela margem
equatorial, para render dólares. Que me perdoe Raoni.
Mesmo
com toda essa desigualdade, fui convidado para a conferência "perspectivas da cirurgia minimamente invasiva torácica no Norte do Brasil", em
evento da Sociedade Brasileira de Vídeo-Cirurgia, Robótica e Digital, realizado
em Macapá. Após contar a nossa breve história, na metade da apresentação deixei um diapositivo
em branco. Nos seguintes, mostrei uma foto da COP30, a ser realizada em Belém (novembro/2025),
assim como imagem da Margem Equatorial. Duas mensagens que se digladiam com espadas. De um lado o Curupira, do outro os
descendentes de Adam Smith.
Dizque há mais petróleo nesse subsolo do que no Catar. Se vingar, podemos ter esperança que a vídeocirurgia e a broncoscopia cheguem ao Acre e a cirurgia robótica pelo menos alcance quem estiver nas ilhargas da margem equatorial. Ou será que a Amazônia seguirá fedendo, conforme apregoa Bopp?
Deu
uma vontade imensa de realocar a epígrafe desse ensaio no último diapositivo, entretanto me
rendi à beleza de fotografar a imensidão do rio Amazonas, ali na beirada de Macapá,
a 200km da margem equatorial, e seguir pela ciência caseira, da reza das benzedeiras, até esperar o dom
milagroso que carrega a esperança da chegada das duas novas plataformas: a do petróleo e a da robótica.
... Mas sem enfurecer
o cacique.
Roger Normando, professor de Cirurgia, Universidade Federal do Pará.