domingo, 30 de março de 2025

A cirurgia robótica na Amazônia: o baile dos que sobram

                                                                   Esta é a floresta de hálito podre, parindo cobras.

Fede. O vento mudou de lugar.

Raul Bopp, poeta gaúcho, em: Cobra Norato

 

Quem enxerga a Amazônia pela via aérea depara-se com um enrugamento verde, incisado por uma cauda aquática que serpenteia a floresta com seus tons e entretons marrons. O desenho das águas, vista dos satélites, lembra um imenso ninho de cobras. Assim, na aparência encrespada das árvores vê-se a dança de Boiúnas, Boitatás e Noratos que, habitantes do rio-mar, serpeiam as águas barrentas do Amazonas de Vicente Pizón.

O termo mítico da região está presente na mitologia grega, antes mesmo de Pizón pisar por aqui: Amazônia. Isto é, guerreira sem seio. Dessa maneira, o campo etimológico descortina o mito das amazonas que, para manejarem o arco e flecha com destreza, decepavam o seio destro. Reconhece-se assim as primeiras mastectomias da humanidade. Tais mulheres agrupavam-se em tribo eminentemente feminina e vez ou outra cada uma recebia guerreiros brancos. Portanto, a Amazônia é uma mulher, conforme apregoa ativista Mary Tupiassu.

Ainda pela via aérea, adiante encontramos uma bifurcação emblemática: exploração covarde da floresta e do homem - no sentido ontológico. Ou seja: mamar na mama da mama Amazônia não parece ser uma mera aliteração que aprendemos lá na oitava série.

Assim sendo, como impingir progresso à região se lutamos dopados de soníferos para preservar o maior bioma da terra? Bastaria-nos sustentabilidade e atenção aos nativos. O próprio cacique Raoni faz apelo ao presidente: “não incentive o petróleo na Amazônia” – refere-se à margem equatorial, uma reserva maior que a existente no Catar.

Então, como conseguir alcances na fração do país onde os povos originários esquivam-se dos avanços? Um exemplo vem na área da medicina. No campo da ciência cirúrgica, um dos maiores ganhos foi o da cirurgia minimamente invasiva, desenvolvida inicialmente para o abdome (laparoscopia), conhecida como "cirurgia a laser", ou cirurgia com "furinhos". Os pioneiros, já na década de noventa, aportaram no tórax e, entre as costelas, chegaram à cavidade. Foi grande conquista. Em seguida, a robótica. Hoje já são mais de 111 plataformas no Brasil. Apenas uma na Amazônia.

A sensação é que Amazônia, sem um dos seios, segue com o arco-e-flecha-da-sobrevivência, sem poder amamentar progressos. O exemplo vem do cirurgião torácico acreano: “Nem vídeo temos para o tórax. Rio Branco sem broncoscopia”. Em Manaus, um cirurgião me confidencia: “Ainda não chegou o Robô, acredita?”.

Entre as capitais, apenas Belém tem cirurgia robótica, desde 2017, mas vive sob o penar de seu custo exorbitante, a ser pago pelo paciente. Manaus ainda a ver, das embarcações, a cobra Norato. Eu ainda duvido que haja uma sociedade brasileira preocupada em dar à Amazônia qualquer apoio. Vai precisar passar pela margem equatorial, para render dólares. Que me perdoe Raoni.

Mesmo com toda essa desigualdade, fui convidado para a conferência "perspectivas da cirurgia minimamente invasiva torácica no Norte do Brasil", em evento da Sociedade Brasileira de Vídeo-Cirurgia, Robótica e Digital, realizado em Macapá. Após contar a nossa breve história, na metade da apresentação deixei um diapositivo em branco. Nos seguintes, mostrei uma foto da COP30, a ser realizada em Belém (novembro/2025), assim como imagem da Margem Equatorial.  Duas mensagens que se digladiam com espadas. De um lado o Curupira, do outro os descendentes de Adam Smith.

Dizque há mais petróleo nesse subsolo do que no Catar. Se vingar, podemos ter esperança que a vídeocirurgia e a broncoscopia cheguem ao Acre e a cirurgia robótica pelo menos alcance quem estiver nas ilhargas da margem equatorial. Ou será que a Amazônia seguirá fedendo, conforme apregoa Bopp?

Deu uma vontade imensa de realocar a epígrafe desse ensaio no último diapositivo, entretanto me rendi à beleza de fotografar a imensidão do rio Amazonas, ali na beirada de Macapá, a 200km da margem equatorial, e seguir pela ciência caseira, da reza das benzedeiras, até esperar o dom milagroso que carrega a esperança da chegada das duas novas plataformas: a do petróleo e a da robótica.

... Mas sem enfurecer o cacique.


Roger Normando, professor de Cirurgia, Universidade Federal do Pará.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Dia mundial de combate à tuberculose, data para reflexão


Falar somente uma linguagem rouca,

Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!

Casimiro de Abreu, em:No leito

 

O dia mundial de combate à tuberculose é 24 de março. Mais que doença, uma entidade que acompanha “pari passu” a humanidade: dos faraós aos guetos, passando pela pandemia de Aids e a recente Covid19.

O bacilo da tuberculose, o renomado BK (Bacilo de Koch) não desiste. Ele vem se renovando desde quando foi encontrado na tumba de Tutankâmon. Levando em consideração a massiva presença na África, podemos aferir que é uma infecção negligenciada pela sociedade moderna.    

Quando a soberba da humanidade achou que houvesse derrotado o inimigo com a moderna quimioterapia antituberculose, o bacilo reapareceu e associou-se ao vírus do macaco das selvas africanas e veio bater aqui debaixo do nosso nariz, no submundo da sociedade. Tudo por conta da promiscuidade sexual e do mercantilismo da medicina, além das aglomerações em favelas, cárceres e outras tantas.

EM verdade, a tuberculose nunca deu um tempo. Ficou de tocaia apenas observando ao seu redor a hora de dar o bote social e, por conseguinte, mutacional. Voltou com força máxima, mesmo nos maiores IDH do mundo, como ocorreu à época da AIDS e agora com a europeização da tuberculose, por conta do fluxo migratório. Atualmente, em busca da longevidade, dispomos de valiosos fármacos, grandes tecnologias, raio laser, imunobiológicos, e uma porção de coisas novas, porém, todas atreladas à adaptação do personagem BK.


O uso dos imunobiológicos, por exemplo, fez-nos viver melhor ante a doenças que não se vislumbrava controle (doenças auto-imunes e até mesmo o câncer), porém, sempre com a tuberculose à espreita. Não se deve usar tais medicamentos sem antes avaliar os pulmões, alertam os pneumologistas.

Não será nenhuma surpresa se o BK já estiver nos esperando em Marte, escondido numa das sondas. O personagem BK é mestre nos disfarces, por isso é quem ele é.

Infelizmente nossa região amazônica é um caldeirão fértil para a doença, por conta de sua particularidade geográfica, e nós todos somos obrigados a passear pelos corredores da tisiologia quase que diariamente.

O corredor a que nos referimos não é apenas os dos antigos sanatórios, mas um shopping center ou algo similar.

Vamos nos engajar; vamos à luta.

 

André Nunes, pneumologista

Roger Normando, cirurgião torácico 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Os dias e as noites de Feijó, a capital de minha infância

    Na boca da estrada havia uma torre enorme parecida a torre Eiffel. Às vezes eu ia lá só pra admirá-la. Diziam que era de uma rádio, cognominada Rádio Cipó. Mas eu não acreditava, pois eu tinha certeza que não era uma rádio comum. Disfarce, aquilo era um disfarce! Essa torre era do Flash Gordon, pois eu acabara de ler o primeiro gibi que meu pai trouxera de Manaus.

    Toda a molecada de Feijó que frequentava o colégio Imaculada Conceição passou a  mandar buscar gibis do Flash Gordon, depois que eu falei sobre aquela torre. Alguns passaram a me pedir por empréstimo. Todos passaram também a desconfiar que aquela torre era dele, pois havia uma historinha cuja cena se passara exatamente naquela edificação... igualzinha, igualzinha! Sem tirar nem pôr.

    Servia pra comunicação com o Planeta Mongo. Sua namorada, Dale Arden, havia ficado lá enquanto ele se recuperava e ao mesmo tempo se escondia, em Feijó mesmo, dos seus perseguidores, especialmente do seu inimigo mortal, o impiedoso Ming, governante do Planeta Mongo (ele era uma espécie de Trump das galáxias).

    Então, a torre servia pra comunicação com Dale Arden e seus parceiros, mas só os moleques que tinham o gibi sabiam disso. Já pela noite, a gente apreciava o céu noturno de Feijó. Era muito bacana. A cidade, sem energia elétrica a partir das dez da noite, deixava a cargo das estrelas a formação de um tapete iluminado lá em cima, que refletia na cidade. Flash Gordon passeava por ali, e a gente ficava procurando com um monóculo emprestado do sr. Luis Camiranga. 

    Quando a lua dava o ar da sua graça, as ruas ficavam prateadas, e era um prazer deitar nas calçadas pra apreciar o espetáculo. Quando refletia no rio Envira, ficava mais linda ainda.

    As estrelas exalavam um perfume que envolvia a noite, e eu via as ondas de rádio que saiam da torre e pegavam a estrada que ia pra Mong. No meio dessa estrada havia um bueiro que o exército construiu e a gente aproveitava para tomar banho, em dias ensolarados. Meu Pai e o Dr. Dão, um juiz de direito bem gordinho, banhavam-se quando o bueiro jorrava aquela água barrenta, feito cachoeira.

    O tempo ainda não era a dimensão que se levasse em conta o espaço; vestia-me com uma roupa nova, brilhante e fascinante que não puía com uso ao longo das noites. O tempo, num escaninho do cérebro – e do coração-, congela o passado.

    No meu mundo, a infância era uma fase da vida onde toda criança era imortal e sem qualquer obrigação, exceto deslumbrar-se com o cosmos e com os gibis.

    Outra coisa que eu precisava conhecer – e ainda preciso –, é a neve. Algumas vezes acordei cedo para esperar a chegada da neve em Feijó, pois já conhecia a neve do Flash Gordon. Era neve, sim, a de Feijó, mas minha mãe dizia que não. Falava que na Amazônia não nevava. O lugar mais próximo era a cordilheira do Andes, mas tinha que andar muito pra chegar lá. Mas aquilo pra mim era neve, sem dúvidas. Só de uns tempos pra cá percebi que minha mãe tinha razão: era a neblina da umidade que embalsama a nossa região no período de inverno. E assim minha infância acabava de perder mais uma falange do dedo.  

    Em certa manhã, cedinho, fui até o rio Envira, e vi aquele véu. Insisti com a minha mãe. Ela dizia que a única coisa que poderia sair dalí era a Boiúna, jamais neve. Foi quando comecei a me desesperançar, ao culminar com a minha idade adulta. Mas um dia vou conhecer a neve.

    Restava-me procurar as constelações no céu noturno. Nunca consegui identificar sequer uma. O sacana do Chico Pinto dizia: "Tás vendo a Ursa Maior?". Cá comigo eu pensava, mas não dizia: "Ursa Maior é tua mãe, aquela Moby Dick". Não respondia por que achava que Chico Pinto era filho adotivo. Podia magoar. Ele falava também da constelação do Cruzeiro do Sul e eu ficava intrigado, pois não havia Cruzeiro do Norte. Cruzeiro do Sul, para mim, era a cidade onde eu havia nascido, ali no Acre mesmo.

    Acabava me divertindo olhando o firmamento e, quando dormia, sonhava com estrelas, Flash Gordon e, acreditem, com a Dale Arden que eu tinha certeza era tão bonita quanto  Ligia, Carmem, Tânia e tantas meninas de Feijó.

    Faz tempo que meus sonhos não repetem esse padrão da infância. Hoje, nas madrugadas a única coisa que busco é o perfume que sentia de minha infância. Não sei em qual giro do planeta esse aroma se esvaiu. Talvez o planeta Terra não esteja receptivo ao perfume das estrelas.

 Roger Normando, professor de cirurgia da Universidade Federal do Pará.

Texto adaptado de Corisco.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Partiu Brasil! Até breve, Braga!!!

  Viver é um rasgar-se e remendar-se"

Guimarães Rosa, em: "Tutameia"


      Um pedaço de mim morou em Portugal por oito anos, emendado entre Universidade do Minho e do Porto. Também tentando empreender. Faltou-nos cacoete. Falo com a voz desse pedaço, em forma de partida.

      No alforge, um pouco do que cultivamos: trouxas de roupas usadas e amontoado de livros (46kg). Muito aprendizado, amigos e algumas incursões científicas.

    Os livros vieram todos; as roupas só as mais úteis. Cerca de sete sacolões de feira foram depositados para doação: tênis, sapatos, roupas casuais e de frio. O que ficou quase não coube no depósito, que fica ao lado de um grande shopping em Braga, cidade onde parte de mim viveu. Não tínhamos carros; apenas uma bicicleta, anunciada por 90 euros.

   Tivemos que fazer uns três carretos para finalizar as doações, pois eram muitas peças. No último encontramos um representante da freguesia de São Vitor, que nos informou o destino: Ucrânia.

    Quem fez o último carreto foi um dos filhos, enquanto estivemos nos despedindo do centro histórico de Braga, em que a igreja da Sé estava fechada e não pudemos fazer nossas últimas orações e agradecimentos. 

  Quando se doa, vale relembrar, normalmente não se sabe qual destino, mas o curioso que, naquele momento da mensagem da última doação, à minha frente (início da avenida da Liberdade, defronte ao chafariz) havia uma bandeira da Ucrânia com o escrito: "fim à guerra". Levou-me à melancolia, ao mesmo tempo fez brotar gotas de solidariedade acerca das doações. 

     Já são 12,3 mil mortes desde o início do conflito, sendo que mais de 14 milhões já abandonaram o país. Um verdadeiro trauma ucraniano, em que mais de 7,1 milhões de pessoas deslocaram-se internamente (sem abrigos), para onde se destinam as doações.

      Por sua vez, em Gaza, o Escritório da ONU estima que 1,9 milhão de pessoas tenham sido deslocadas internamente; representa cerca de 90% da população palestina. Bem menor que a Ucrânia, mas Gaza teve repercussão em valores relativos bem maior que a Ucrânia - longe de comparar perdas.

      Ao voltar e ver as malas prontas, livros encaixotafos e as paredes esqueletizadas, senti o cinto do avião afivelado e o peito apertado. Senti que já estava enraizado a Portugal, em que pese as dissonâncias e a distância de Belém. Foi o início do desapego, e também de uma saudade frajola de ter vivido num país onde os cidadãos e o Estado ainda guardam algum olhar para os mais necessitados, cujas taxas de violência são aceitáveis.

      Esse apego também tive ao partirmos do Acre (infância), Largo de Santa Luzia (graduação) e Rio de Janeiro (formação profissional). A modesta despedida se deu num cantinho saudoso de Braga, em boteco abrasileirado, entre amigos de copo e de trabalho, sem necessariamente nessa ordem.

     Portugal ficará eternamente guardada em nossos alvéolos pulmonares, consoante às visitas ao Instituto Português de Oncologia (Porto), onde o grupo de cirurgia sempre me recebeu com estima e carinho.

     Mas as ruas desse vendaval, entre virtudes e fraquezas, deixou-me ver a vida pulsar todo final de dia, ao caminhar entre o barroquismo das cidades e praças modernas. Já ao anoitecer, a imaginação no voo de volta iluminava as gotas do amanhã que já comungam com esse passado, simulando hóstia, caridades, divindades e experienciando a passagem por outras terras.







segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Os ventos do norte não movem moinhos? O rejuvenescimento dos transplantes de pulmão no Ceará.

 Os grandes trabalhos nascem pequenos, na surdina, em silêncio e crescem aos poucos.

Fernanda Torres, atriz.

A fotografia é de causar inveja à Monalisa: jovem de 24 anos exibe-se no CTI após retirada do próprio tubo traqueal, auxiliada por médicos e fisoterapeutas. A imagem foi postada em rede social fechada e suscitou admiração dos cirurgiões. Não se consegue definir se era rosto de espanto, sorriso, choro, ou mesmo dor, pois a jovem havia sido submetida a duplo transplante de pulmão (hospital de Messejana, Fortaleza, CE). Em 72 horas estava posando para câmera. 

Sabe-se que no Brasil existem vários núcleos transplantadores de órgãos, porém o pulmonar é menor, por conta de constantes desafios ligados à rejeição e infecção; também pela política pública de saúde, falta de doadores e de mão de obra treinada.  Assim, quando nasce um novo transplante pulmonar no lado norte de nosso mapa, comemoramos como se dom Quixote ultrajasse seus moinhos de vento, ou como se fosse láurea para uma atriz, representando nossa arte para o mundo. 

Em seguida, um comentário especial: “Parabéns ao Israel [Medeiros], atual coordenador do programa. Sinto-me muito feliz com o sucesso e a continuidade do programa, que aos trancos e barrancos conseguimos mantê-lo ativo, embora com altos e baixos desde 2011. Temos muitos pacientes transplantados e plenamente ativos para contar a história”, grifou Antero Gomes Neto, idealizador do programa, que  segue em linha reta no Messejana e ainda ativo no campo cirúrgico e nos congressos 

Na sequência, Medeiros, o novo coordenador, rebate: “A emoção de extubação e da possibilidade de respirar com novos pulmões. Lembrando que nosso centro está ativo. Podem divulgar para os pneumologistas se quiserem encaminhar alguém...”. A sensação do final da frase mais pareceu desabafo, para garantir que o legado também segue em linha reta.

A menção “os ventos do norte não movem moinhos” pode ser interpretada como uma metáfora para esforços inúteis ou obstáculos intransponíveis. Alencarinos, tal como norte-nordestinos, sabem quão difícil é trair os ritos para implantar programas de alta complexidade. 

No caso de Fortaleza, o novo coordenador Israel Medeiros formou-se pela USP. Andou por Toronto e Viena em busca de mais tutano. Confessou também grande aprendizado com Antero Gomes Neto, o criador, que teve inspiração em J.J Camargo, nosso grão-pioneiro.

Em seguida alguém indaga a indicação: “fibrose pulmonar [pneumonite por hipersensibilidade (PH)... provavelmente]”, responde. Mas o “provavelmente” não tem a doçura da rapadura. Sabe-se que parte das PH podem evoluir para fibrose, porém é mais prevalente em faixa etária mais alta, de ambos os sexos. No caso acima, a idade chama atenção de pneumologistas para um novo agente nocivo aos pulmões, e que pode confundir o diagnóstico e também levar à fibrose: EVALI (do inglês: E-cigarette-/vape-associated lung injury), ou seja, doença pulmonar causado pelos novos cigarros eletrônicos (nicotina, aromatizantes, aditivos e canabidiol em alguns). 

EVALI, descrita pela primeira vez na literatura em 2019, apresenta-se inicialmente com tosse e falta de ar. Pode resultar em inflamação e fibrose. É frequentemente visualizada na fase aguda como opacidades em vidro fosco, a lembrar o pulmão da COVID-19. Na fase crônica se comporta como fibrose cicatricial, de modo a deixar o pulmão petrificado. Já há diversos relatos de pacientes com quadros fulminantes e mortais por EVALI. Alguns jovens já até necessitaram de transplante pulmonar duplo. E esse é o apelo dos pneumologista.

Diante dessa mudança e da dificuldade em conter o uso de VAPES, é provável que tenhamos que criar mais centros transplantadores de pulmão, como está acontecendo nesse momento em Belo Horizonte (UFMG), pois não há polícia que contenha o avanço dessa nova caricatura estilizada da indústria do cigarro. Foi o que aconteceu com a criação dos centros de trauma no Brasil, ante à incapacidade de se conter a violência urbana.

Oxalá o deus Tezcatlipoca escute os pneumologistas. 

Glosário: Tezcatlipoca é um dos três grandes deuses da mitologia asteca: é o deus do céu noturno, da lua e das estrelas; senhor do fogo e da morte.


Roger Normando - Professor de Clínica Cirúrgica II, Disciplina de Cirurgia Torácica, Universidade Federal do Pará.




sábado, 25 de janeiro de 2025

A estética e a dialética do erro

                                                 Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca 
                                Caetano Veloso, em: “Outras palavras”

A revolução científica do século XX remodelou completamente todas as áreas dos estudos biomédicos, sendo a pesquisa do câncer apenas uma cujos resultados chegam em gotículas milagrosas.

Mas o começo de tudo se deu no século anterior (1858) com Rudolf Virchow, filho da Pomerânia, atual Polônia, com a frase: Omnis cellula e cellula (latim). A frase retrata que todos os tecidos orgânicos são compostos por células e produtos celulares que surgem a partir da divisão celular de uma célula preexistente. Uma descoberta seminal. Virchow foi o próprio Santo Graal da biologia.

Levando em consideração tal questão, pode-se deduzir que todas as células que formam um organismo complexo são membros de linhagens celulares provenientes do único óvulo fertilizado, capaz de originar todas as células do corpo, por meio de repetidos ciclos de divisão e crescimento celular, até se diferenciarem em cabelo, dedão do pé, pulmão, etc. Esse gatilho disparado sepultou a teoria da geração espontânea e fez-nos apaixonar pelas ciências da vida.

A partir dessa revolução dão-se avanços na genética e hereditariedade: de como as células se multiplicam e dividem; de como elas se associam para formar tecidos e de como os tecidos se desenvolvem e se capilarizam a partir de disparos (DNA, genes) específicos. Mas essa produção seriada e linear, em determinado momento falha. Incorre no que os biólogos chamam de erro, um deles conhecido como mutação. É daí que surgem doenças. Cigarro (e agora vapes) e excesso de açúcar (obesidade) são exemplos que destrambelham o trilho dessa linearidade e geram células cancerosas.

            Mas o erro tem mais de uma face e, nos apontamentos de Gyorgy Lukacs, o erro não passa de um peculiaridade, particularidade. Ou seja, se na biologia de Virchow o tal erro é entendido como gerador de males, na arte é o motor da evolução, da criatividade, da admiração. Para Mia Couto biólogo, se o erro não ocorresse, a vida não vingaria, e não passaríamos de uma ameba de esgoto. Como esse erro ocorrido há dois bilhões de anos tornamo-nos multicelulares organizados, depois diferenciados, até chegarmos a Triops cancriformis (camarão girino), que data de 200 milhões de anos atrás, considerado o mais antigo ser existente na terra. Carrega em seu nome científico a raiz etimológica do câncer (cancriformis).

Por sua vez, o Mia Couto escritor e poeta vai além: No fundo, o erro é aquilo que nos surpreende, que não está no domínio do previsto, não está no domínio do lógicoÉ o que os médicos chamam de doença, má formação, mas que os artista veem de outra forma. Para o poeta Manoel de Barros: "errar é bonito".

Se olharmos para as extremidades da Abaporu, percebe-se ali certo exagero no tamanho dos pés. Do ponto de vista biológico existe ali erro (acromegalia), pois ninguém tem uma prancha nos pés - nem sequer os Hobbit. Mas para a arte, esse elemento deu à Tarsila do Amaral destaque com seu surrealismo, a ponto de revolucionar as artes no Brasil. Ou seja, a arte elaborada na base do erro torna-se bela por desconstruir a linearidade da biologia virchowiana.

Portanto, se o erro faz parte da estética da arte, por sua vez a ciência veste-se de branco e embebe-se de sua dialética tão somente para abjurá-lo.

Para dar voz à temática, o físico José Luiz Lopes sentencia: "O Princípio da Incerteza torna o erro natural e, portanto, diferente da distorção infracional, pecaminosa ou criminosa. Assim, o erro, em si, pode ser isento da culpa".