sexta-feira, 18 de março de 2016

À sombra da tapera

O verbo sagrado pelas remotas paragens...
William Blake

Quem de nós, entre uma aula outra na faculdade do largo de Santa Luzia não foi até o PSM realizar uma sutura ou prescrever “uma” Benzetacil? Para muitos, o velho PSM foi o quintal da faculdade onde albergou nossos primeiros passos, ainda quando a chuva do conhecimento apenas respingava nas apostilas da Bettina Ferro ou nos cadernos de Patologia do Ronaldo Araújo - mestres, ambos. Foi tapera onde ouvimos as primeiras dores do alheio, assim como as lamúrias de seus familiares.
Naquela Belém de outrora não havia pós-graduação. Fazíamos o papel do médico residente de hoje, guardadas devidas proporções da comparação. Resultado: muito precocemente abandonávamos o cós das calças dos professores e nos enfurnávamos no PSM.
Vários de nós, na calada das escuras, terminávamos as operações que os cirurgiões começavam, ou, iniciávamos as que eles findavam. Baços e segmentos de intestinos lacerados por bala, faca, eram retirados. Fígados eram costurados. Saíamos com os sapatos tintados de sangue ou com pitiú das apendicites “sufuradas”. E o que dizer dos puxões de orelha da Estelita, técnica de enfermagem de quase dois metros de altura e meio de largura que, por “galinharmos” muito, só falava berrando: “vumbora, vumbora, que cedo tenho Ver-o-Peso”.
Certa vez dois gatunos, fingindo doença, internaram-se, proclamaram assalto e fugiram com pertences de vários pacientes, médicos e funcionários. Denunciados, a policia foi atrás e trocou tiros. Um dos meliantes foi atingido no torso, tombou e virou paciente. Foi prontamente acudido e levado para o próprio PSM e lá encontrou os mesmo médicos furtados. Atentos, eles prestaram o atendimento e o dito sobreviveu -mas sem devolver os pertences. Em contrapartida, teve que deixar quase dois litros de sangue no frasco de drenagem, pedaço do pulmão na mesa, parte do intestino no balde e a algema sedenta no leito do CTI.
Todo pronto-socorro tem histórias perdidas em madrugadas inesquecíveis, mas guarda outras amargas que o fel da profissão sempre destilou. Foi quando certa um catedrático da Unicamp, de passagem por Belém, quis conhecer o tal, de tanto que eu falava em congressos, de tanto que escrevia em publicações científicas... Não passou da porta. Ele se amofinou; eu me acabrunhei.
De uns tempos prá cá aquela velha tapera já vinha se desfigurando à sombra de um passado longevo e memorável a cada grito de dor, a cada incisão. O fim do ciclo ocorreu há oito meses. Um incêndio pôs pacientes e médicos pra correr, e ainda ceifou três acamados que não tiveram como se jogar da janela do segundo andar.
Após oito meses de reconstrução (95 anos de idade), ele volta a funcionar no mesmo loci. Ressurge das cinzas e acaba de ser inaugurado, mas já ganha manchetes tristes em meio a paredes novas, pinturas alegres, chão vistoso e focos com lâmpadas de LED. A reinauguração simbólica foi questionada numa operação - não cirúrgica - que ainda é investigada, e mereceu estampa nos jornais e redes sociais.

Aquela dócil tapera, hoje sinapse da minha memória reativada é, para a maioria de uns tantos, avos de um passado intransferível. Que a sorte atomize-nos o costume de lembrar as páginas embaçadas pelo tempo, ruínas da memória ancoradas na tapera que fez sombra para nosso aprendizado. Assim o verbo sagrado passa por remotas paragens... remotas paisagens.

2 comentários:

Abel Sidney disse...

Adentrei o PSM, lugar devidamente inscrito no imaginário dos médicos paraenses, como você descreve com as tintas do coração, Roger.

Reverência é mais que gratidão, pois o verbo sagra a paisagem outrora visitada, vivida e a traz de volta à memória.

Se o João do Rio proclamou a "alma das ruas" cariocas, esperamos que você siga em suas crônicas a ressuscitar este e outros loci sanitas, dignos de compor a "alma das enfermarias" ou termo semelhante (ficou feio pra burro!).

Abraço,
Abel

Geraldo Roger Normando Jr disse...

O que seria feiúra na sua bondade (ou mesmo maldade) extrema? Não há, creio infinitamente. O feio fomos nós que criamos para a nossa beligerância, para judiarmos. Outrossim, O Loci de quem escreve vagueia por espaços absurdos, como é o caso do Loci de Eisntein (o espaço-tempo) e Galileu (crateras da lua). Também do João, das almas encantadoras do Rio de Janeiro, assim como o seu Loci fica entre uma carteira de sala de aula e uma criança. O meu loci está nas enfermarias, mesmo. Entre um leito cirúrgico e um leito de esperança. Entre um leito de um esfaqueado e um leito de bondade. Quem não quer aquela Macondo pra si? Todos nós gostaríamos. Forte abraço. Forte mesmo!