O verbo sagrado pelas remotas paragens...
William Blake
Naquela
Belém de outrora não havia pós-graduação. Fazíamos o papel do médico residente de
hoje, guardadas devidas proporções da comparação. Resultado: muito precocemente
abandonávamos o cós das calças dos professores e nos enfurnávamos no PSM.
Vários
de nós, na calada das escuras, terminávamos as operações que os cirurgiões
começavam, ou, iniciávamos as que eles findavam. Baços e segmentos de
intestinos lacerados por bala, faca, eram retirados. Fígados eram costurados. Saíamos
com os sapatos tintados de sangue ou com pitiú das apendicites “sufuradas”. E o
que dizer dos puxões de orelha da Estelita, técnica de enfermagem de quase dois
metros de altura e meio de largura que, por “galinharmos” muito, só falava berrando:
“vumbora, vumbora, que cedo tenho Ver-o-Peso”.
Certa
vez dois gatunos, fingindo doença, internaram-se, proclamaram assalto e fugiram
com pertences de vários pacientes, médicos e funcionários. Denunciados, a
policia foi atrás e trocou tiros. Um dos meliantes foi atingido no torso, tombou
e virou paciente. Foi prontamente acudido e levado para o próprio PSM e lá
encontrou os mesmo médicos furtados. Atentos, eles prestaram o atendimento e o dito
sobreviveu -mas sem devolver os pertences. Em contrapartida, teve que deixar
quase dois litros de sangue no frasco de drenagem, pedaço do pulmão na mesa,
parte do intestino no balde e a algema sedenta no leito do CTI.
Todo
pronto-socorro tem histórias perdidas em madrugadas inesquecíveis, mas guarda outras
amargas que o fel da profissão sempre destilou. Foi quando certa um catedrático da Unicamp, de passagem por Belém, quis
conhecer o tal, de tanto que eu falava em congressos, de tanto que escrevia em
publicações científicas... Não passou da porta. Ele se amofinou; eu me
acabrunhei.
De uns tempos prá cá aquela velha tapera já vinha se
desfigurando à sombra de um passado longevo e memorável a cada grito de dor, a cada
incisão. O fim do ciclo ocorreu há oito meses. Um incêndio pôs pacientes e
médicos pra correr, e ainda ceifou três acamados que não tiveram como se jogar da
janela do segundo andar.
Após oito meses de reconstrução (95 anos de idade), ele
volta a funcionar no mesmo loci. Ressurge
das cinzas e acaba de ser inaugurado, mas já ganha manchetes tristes em meio a
paredes novas, pinturas alegres, chão vistoso e focos com lâmpadas de LED. A reinauguração
simbólica foi questionada numa operação - não cirúrgica - que ainda é investigada,
e mereceu estampa nos jornais e redes sociais.
Aquela dócil tapera, hoje sinapse da
minha memória reativada é, para a maioria de uns tantos, avos de um passado
intransferível. Que a sorte atomize-nos o costume de lembrar as páginas embaçadas
pelo tempo, ruínas da memória ancoradas na tapera que fez sombra para nosso
aprendizado. Assim o verbo sagrado passa por remotas paragens... remotas paisagens.
2 comentários:
Adentrei o PSM, lugar devidamente inscrito no imaginário dos médicos paraenses, como você descreve com as tintas do coração, Roger.
Reverência é mais que gratidão, pois o verbo sagra a paisagem outrora visitada, vivida e a traz de volta à memória.
Se o João do Rio proclamou a "alma das ruas" cariocas, esperamos que você siga em suas crônicas a ressuscitar este e outros loci sanitas, dignos de compor a "alma das enfermarias" ou termo semelhante (ficou feio pra burro!).
Abraço,
Abel
O que seria feiúra na sua bondade (ou mesmo maldade) extrema? Não há, creio infinitamente. O feio fomos nós que criamos para a nossa beligerância, para judiarmos. Outrossim, O Loci de quem escreve vagueia por espaços absurdos, como é o caso do Loci de Eisntein (o espaço-tempo) e Galileu (crateras da lua). Também do João, das almas encantadoras do Rio de Janeiro, assim como o seu Loci fica entre uma carteira de sala de aula e uma criança. O meu loci está nas enfermarias, mesmo. Entre um leito cirúrgico e um leito de esperança. Entre um leito de um esfaqueado e um leito de bondade. Quem não quer aquela Macondo pra si? Todos nós gostaríamos. Forte abraço. Forte mesmo!
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