quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

(In)certas memórias - o Bando de Corisco.



 

Benquerença é pros predestinados,

pros bem-aventurados, pro de boa sina...

Não precisa ser nascido

Antonio Maria Pereira, o Corisco


                Achei que nunca fosse escrever sobre Corisco. A começar pelo nome adotivo, Corisco vem lá dos sertões - dos sertões de Benquerença, um principado independente dentro de Bragança, que nasceu antes de fundarem a cidade. Está fincada às margens do rio Caeté, no Pará, na beirada do Atlântico Sul, logo abaixo da linha do equador. O codinome Corisco é uma espécie de códex, diria Leonardo Da Vinci. Benquerença é para Corisco a sua Macondo de águas diáfanas. Ou sua Pasárgada, onde tem prostitutas bonitas que moram na “Casa dos Anjos”.

            Mas como nasce um escritor e qual sua relação com o bar, prostitutas e a birita? Precisei ler todo o livro "(In)certas memórias", da Populivros editora, e só encontrar o motivo no último conto: “vocações”. Em que pese a travessia de toda leitura ser o estrondo do livro, “vocações” define qual é o delírio de ser escritor. Foi aí que me emocionei. Por quê? Porque é por esses vestígios que me nucleio a Corisco.

            E onde eu encaixaria o estilo corisqueano de suas crônicas? Corisco tem a semelhança física do Hemingway, mas carrega com maestria o pássaro azul de Charles Bukovski, ao inalar a fumaça de cigarro das putas e dos atendentes dos bares e mercearias. Se se pode escrever assim, esta foi a cadência literária de Corisco. Ele recria uma atmosfera de Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez), ao recriar outra Macondo de atividades mundanas, reúne os seus Buendías nos Bares. Sim, foi no Rex Bar a primeira vez que ele viu o gelo - e logo tratou de pôr no copo e misturar com cachaça e limão. Mas ele entendia que precisava compartilhar com os amigos. Conheci um dos Buendías de Benquerença: Da Estepe. Tornou-se médico. Para melhor entender seu comportamento, tive que reler o psicodélico personagem de Hermann Hesse.

O livro, em si, traz um convívio íntimo com aquele principado, que parece ter sido modelada para Corisco. Certa vez postei uma de suas narrativas num grupo de peladeiros do zap: “Os craques de Benquerença”. Imediatamente um dos membros gritou: “Opaaaaaaaaa”. Era o Buriri.

Até eu, Labareda, estou em “(In)certas...” em: “Uma conversa com Labareda”. Na realidade, Corisco mostra naquele poema a sua face mais passarinha com as palavras. Talvez seja o único capítulo em que Corisco se veste do admirável poeta das madrugadas cheio de incertezas e filosofias, e sem um pedaço de chocolate à mão. Corisco ali é Mia Couto, Rosa (Noel e Guimarães), Gabo, Dalcídio e Lindanor - aquela que mais lhe influenciou antes dela partir para Paris. Tem também Fernando Pessoa, Ferreira Gullar e Manoel de Barros. Esse último lhe causa delírios. Eu sou o Labareda, um escrevinhador sem estudos.

Por um tempo Labareda achou que Corisco deveria publicar suas poesias e seus escritos. Ele me ralhou. Quase escarra o sangue de uma hemoptise no meu jaleco. Reprovou-me, mas fingi esquecer tudo isso para criar um broadcast chamado Bando de Corisco, que durou um lustro de vida. Era todo fim-de-semana. Passei a divulgar sua poesia às escondidas. De repente, coloquei-o no grupo sem-querer-querendo e ele percebeu os comentários prodigiosos de Sabá de Abadia e Zabelê. Fechei o grupo logo depois, por não mais conceber a doída partida de Zabelê para o segundo andar, que coincidiu com o dia que Bob Dylan subiu ao púlpito do Nobel de Literatura.

Não vim para destilar crítica literária e comentar uma obra tão profunda quanto a de Corisco, mas quem passou por leituras da Turma da Mônica, tomou Tetrex para tratar estrófulo, levou vacina de revólver nos dois braços – ao mesmo tempo - e nasceu às margens do rio Juruá, não tem como deixar de ser
PHD em literatura. Com esses ditames, eu entraria de primeira no priorado de Cambridge e não me esquivaria a
T.S. Elliot... e ainda levaria 
Corisco.


domingo, 27 de novembro de 2022

A dor no tornozelo e a dor de cotovelo

         Neste domingo fiz uma provocação em diversos grupos de futebol, ao postar um texto de Walter Casagrande Júnior: "Um verdadeiro ídolo do futebol". O texto merece algumas críticas, mas não deixa de ser autêntico e de conteúdo valioso. Ele já havia deixado claro, em entrevista outra, sua admiração dentro e fora de campo por Richarlison, que fez dois gols na estreia do Brasil no Catar. Outrossim, dedicou parte de seu verbo apimentado a Neymar, que saiu de campo com tornozelo inchado e sem jogar o futebol que tantos esperávamos.

Não sou crítico literário, longe de mim ter essa petulância, mas passei boa tarde de minha adolescência entre Armando Nogueira, Tostão e Eduardo Galeano, que me dão estofo para entender um pouco de futebol, afora os chutes que dei nos jambeiros dos campos de pelada. Mas se Casagrande pede passagem, por que não abrirmos as portas que abrigam nossas leituras?

O texto de Casagrande é corajoso, diante da mídia que endeusa Neymar. Ao mesmo tempo é ranzinza, tanto quanto milhares de outros textos jornalísticos que deverão surgir daqui para frente, ante a um país ferozmente politizado. Parece que o nosso jornalismo está a zumbizar, diria Raul Seixas. Ou seja, parece que ficou escravo de pensamento político polarizado e, por conseguinte, maneta. A raiva do autor em relação ao atual presidente deixou o texto pichado, dado os motivos enfezados que regem a maioria dos brasileiros, tanto de um lado, quanto de outro. O texto ficaria bem melhor se ele esquecesse a política e focasse na arte futebolística. Ou faltou-lhe tutano para completar milimetricamente a coluna, ao aferir que Neymar “declarou voto ao candidato fascista e golpista...”. Precisa zum-zum-zumbizar tanto? Confesso que ultimamente tenho apertado o botão "detox" para a política, mas esse texto me deixa eufórico por ter contraponto de grande valor, pois o que se vê é uma mídia que endeusa um craque que ainda deve aos nossos corações, pleuras e pulmões.

Adiante, ao final do texto, tentando caetanear no que há de bom, pisou na bola e enterrou a poesia de Djavan, apesar da permissão. Pobre Djavan, que viu toda sua musicalidade esvanecer-se numa página que poderia ficar em silêncio. A homenagem a Caetano Veloso foi enterrada. Caetano é total influência em Djavan, assim como em tantos outros artistas da música, por isso a homenagem.

E o autor, querendo ser exemplo de comportamento social, escorrega na casca de seu discurso, e cai feito banana. Sabe-se publicamente que o Casão andou fora das quatro linhas por longos anos e agora resolve entrar de carrinho no tornozelo do Neymar. Menos, Casão! Poderias ter ficado na tua casinha, ou mesmo no quintal, tomando banho de cacimba, com a água benta que lhe retirou do fundo poço. 

Estaria então, o ex-craque ainda vivendo sua enfermidade neuronal? Segundo o filósofo coreano Byung-Chul Han, se já tivemos uma época bacteriológica, que chegou ao seu fim com a descoberta dos antibióticos, estamos agora vivendo o medo imenso de uma pandemia gripal, mas não parece vivermos uma época virulência, mas de violência. Graças à técnica imunológica, já deixamos para trás esse momento, em que pese perdas. Visto a partir da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal. Doenças como a depressão, transtorno de déficit de atenção com Síndrome de Hiperatividade (TDAH), Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB) determinam o começo do século XXI. Não são infecções, mas enfartos provocados não pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas cravada pelo excesso de positividade - ou de  polaridade.

O texto acima pertence à “Sociedade do Cansaço”, quando me chegou o texto do Casagrande. Han é professor de estudos culturais na universidade de Berlim e sua paixão pela escrita nos deixa essa pérola do pensamento contemporâneo que, a meu ver, embaraça nossa interpretação da vida privada. Até porque fora de campo, mas ainda dentro das quatro linhas, Casagrande foi voz de resistência à política esportiva escravizante, em seus áureos tempo de Corínthians, mas fora das quatro linhas, levou a vida pela rota das drogas.

Se o Casagrande está com dor de cotovelo – e até pode ser -, ele falou suas verdades e isso podemos até concordar, mas não precisava distorcer as preferências políticas do craque, tampouco entrar em devaneios com o Djavan, já que se diz curado das recaídas. 

domingo, 25 de setembro de 2022

A centésima voz

Nem tudo que se faz na medicina tem evidência máxima. Vai se construindo o aprendizado ao longo de descobertas, sem esquecer dos percalços. Em cirurgia das vias aéreas (Laringe e traqueia), compreende-se melhor o que se faz depois de já feito, como se fosse descoberta, como se fosse pintar as imagens com palavras de se ver e ouvir. Assim bem desenhou nosso centésimo paciente da série de cirurgias traqueais realizada no Hospital Público Estadual Galileu (HPEG): “Deu uma sangradinha de leve, mas a recuperação está sendo boa”, disse ele ao ser indagado sobre a evolução do primeiro dia.     

O ar frajola de seu testemunho deixa o jovem cirurgião, ao lado, com o rosto estupefato. Em seguida vem o riso frouxo. Se paciente brincou com a própria dor pós-operatória do primeiro dia, outrossim, comemorou a boa recuperação da voz, da respiração e da capacidade de sentir cheiro e ar passando pelas narinas. Brindou a vida após a longa espera na fila da eucaristia com as mãos atadas à esperança.


Somos três cirurgiões titulados pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica (SBCT). Tocamos esse trabalho todo sábado, como parte de um programa do governo do Pará, denominado TRAQUEOPLASTIA, cujo escopo é recompor a via aérea de usuários de traqueostomia. O programa comemora seis anos em outubro e já atendeu mais de 250 pacientes, entretanto a grande maioria dos procedimentos é endoscópica. Nem todos precisam de cirurgia aberta, todavia neste final de semana (24/09/2022) ocorreu o centésimo caso.

Cerca de vinte cirurgiões (locais, nacionais e estrangeiros) já estiveram presentes neste programa, tendo em vista o grande desafio que se tem com as operações neste compartimento específico do corpo humano. 

Durante esses seis anos há pedaços da memória que se colam ao cérebro, feito adesivos deixados na borda de cada página interrompida para o descanso da leitura - até que se chegue ao final da centésima página. Seríamos capazes de viver um livro de 100 páginas? Talvez. Se há aproximação com a com a literatura médica e a arte da cirurgia, nem precisaria tanto. Mas se há distâncias, haverá de conter mais de mil páginas, mesmo assim não se aguçaria o sentido da ordem. Cerca de vinte cirurgiões (locais, nacionais e estrangeiros) já estiveram presentes neste programa, tendo em vista o grande desafio que se tem com as operações neste compartimento específico do corpo humano.

Se o exercício da cirurgia acende suas páginas ao incisar cada pele, ou a cada despertar do sono anestésico, não se pode deixar de lembrar das diversas horas repelindo o insucesso. E que não deixemos de reconhecê-los como parte da caminhada, hoje às avessas desta escrita comemorativa.

Assim revivemos a centésima operação aberta nas vias aéreas no Hospital Público Estadual Galileu (HPEG), para que a fala desse jovem revele nosso prumo: “... mas a recuperação está sendo boa”.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Causos de congressos

         Estamos em mais um congresso. É nos reaproximar de novos avanços, assim como novas ideias que buscam equilibrar-se sobre as linhas que costuram o tempo, em que tecemos o exercício clínico. Agora é hora de deixar as teias fiadas à luz do projetor e as têmporas abertas, por onde escorre a serotonina do aprendizado.
        Mas que não abandonemos os causos que nos levam ao riso frouxo. Esses é que marcam nossas reminiscências.
        Quantos de nós colecionamos causos de congressos? Claro, dirijo-me aos boêmios de carteirinha com vacina da Covid em dia. Quer dizer, melhor não dirigir: vai que tenha blitz no caminho? 
        Ainda que já tenha deixado o exercício da boemia pela compulsória, agora me resta contar história motivada por mais este encontro.
       Há congressos que até quando protagonizamos duvidamos ter acontecido. Ocasiões em que a gente não faz a menor ideia de como foi que tudo acabou e tenhamos conseguido sobreviver.
        O causo de hoje começa por um domingo de muitos e muitos anos atrás - talvez 2002-, quando certo personagem, que só líamos nos alfarrábios da medicina, esteve presente em nosso congresso. Nome do busto: Frederick Griffith Pearson. Hoje o busto está cravado na porta do centro cirúrgico do Toronto General Hospital. 
          Esse canadiano (assim falam os portugueses) completaria 72 anos naquele exato domingo, quando o evento científico já havia trancado as portas e passado o ferrolho. Como bom botequeiro, tínhamos ainda o domingo para passear, e não se podia deixar passar em branco. Elegemos um barco-boteco seguro para ver o encontro das águas dos majestosos Amazonas e Negro. Lembro de estar com os amigos Artur, Luis Carlos, Fernando e Manoel Ximenes (esqueci mais alguém?).              Final da tarde, dever cumprido com as caipirinhas, era hora de voltar. Só que, de última hora pintou um parabém, anunciado de supetão. Aliás, não sei como arranjamos uma vela, fósforo e um abacaxi para comemorar o aniversário de um dos maiores cirurgiões do mundo. Isso mesmo, bem ali no meio da maior floresta do planeta. 
         Então fizemos uma segmentectomia no cume do abacaxi com apenas um talho do bisturão (mistura de bisturi com facão). Com a coroa espinhenta fora, expusemos a porção carnosa da fruta e fizemos um pequeno furo no meio, para fincar a vela sete-dias-sete-noites, achada, por acaso, na caixa de máquina do barco. Até aí foi fácil. O difícil foi acender o pavio por conta da intensa ventania. Paramos o barco no meio do rio-mar, exatamente no encontro das águas, e pedimos ao deus Jurupari para que desse uma trégua e então pudéssemos comemorar o répi bôrtudei tchu-iú (é assim que se pronuncia na língua da rainha?). Enquanto isso, o aniversariante, que já havia aposentado o bisturi, ficava observando toda aquela muvuca com o olhar perdido, pois não compreendia nada de nossa língua tupi-guarani-nhangatu-camoniana.
         Até que em certo momento nós, já mais encaipiroscado que urubu  dançando carimbó na feira do Ver-O-Peso, Jurupari deu vez. Foi quando o pavio brilhou com suas chamas; o homem percebeu que era festa surpresa. Ficou emocionado ao perceber que era o protagonista daquela insanidade dos botequeiros. O piloto do barco devia estar achando que aquilo ali fizesse parte do roteiro. Nada disso. Tudo improviso. Foi Ximenes, velho amigo de outrora, quem dedurou o aniversário desse que foi um dos cirurgiões mais marcante da história da medicina moderna.
        Agora, só não me perguntem como tudo acabou. Já abordei Artur e Fernando, a quem sou mais chegado, mas eles também não lembram. Fiquei com vergonha de perguntar ao Ximenes, que batia na idade do Pearson, e à minha Valéria, para não perder o casamento que cativo desde quando era pé-rapado, no Rio de Janeiro. O fato ficou registrado em fotografia, pelas mãos dela.
        Lembrei desse causo outro dia, quando abri as páginas de um livro de história da cirurgia Torácica no Canadá e vi a tal foto de Pearson, comemorando seus 72 anos no meio da selva, naquele domingo, naquele barco singrando aquele sertão de águas. Na foto ele está ao lado de Manoel Ximenes, seu grande amigo e quem havia autorizado sua entrada no Brasil.
        Depois de estampar a foto do histórico livros, criei coragem de perguntar À esposa como tudo acabou. Pensei que tivesse sido história de assombração, mas sem dúvida, aquele foi um dos melhores botecos que já passei, ainda que por pouco tempo. Por algum tempo achei que tivesse sido um delirium-tremens cachaçônico. 
        Na dúvida é só abrir a página 172 da história da cirurgia no Canadá. E se alguém achar que tudo isso foi lenda, que valha a lenda.

sábado, 10 de setembro de 2022

Cirurgia robótica uniportal – “Es La nueva revolución mundial”

Foto original de Gonzalez-Rivas

“A new earthquake in thorassic surgery”

Joel Dunning, cirurgião inglês (2022)

    Em 2010 o espanhol Diego Gonzalez-Rivas surfou na geometria euclidiana com abordagem por incisão única, em vez de duas ou três, para videocirurgias. Criou-se uma revolução dentro da evolução da cirurgia minimamente invasiva. Desde então o galego anda navegando pelos sete mares, a disseminar seu pioneirismo.
    O italiano Gaetano Rocco, pioneiro na ideia usando ressecções menores, descreve que a vantagem da uniportal em comparação à convencional está na projeção da lesão-alvo, que preserva a profundidade de visualização fornecida pelos monitores bidimensionais. Na bi ou triportal o plano de torção criado ao longo do losango dificulta a enxergar o fundo. Leonardo da Vinci aplicou a geometria euclidiana em suas pinturas, chamando de “ponto de fuga”, que seria a tradução de lesão-alvo.
    Com a chegada da plataforma robótica, finda o plano bidimensional e a visão
3D emplaca. O problema do robô é o custo alto e isso acabou amargurando a fila de espera até a poeira financeira baixar – se baixar -, o que acabou espanando para o final da fila alguns entusiasmados.
    No Brasil, Ricardo Sales (São Paulo, 2011) realizou as primeiras cirurgias
robóticas. Em seguida vários começaram a seguir suas pegadas, certamente inebriados pela ergonomia e visão 3D. Passado mais de dez anos da publicação de Sales, é notória a adesão de diversos brasileiros, nos últimos anos, à nova plataforma.
    Mas quando se pensou que a uniportal (Uni-VATS) estaria sendo engolida pela
robótica, Rivas e seu séquito voltam à cena, agora com a uniportal robótica (Uni-RATS). Ao descartar a ideia euclidiana que o prendia à configuração geométrica do paralelograma, qual seria o feitiço de Rivas a continuar com a idéia da Uniportal, já que a visão 3D é a maior contribuição da robótica?
    A resposta está na recente visita feita à América Latina, começando pelo Brasil.
Em Brasília ele realizou a primeira ao lado de Humberto Oliveira: cisto
mediastinal e lobectomia em braçadeira. O resultado foi animador. Oliveira ficou
entusiasmado com a ideia. Ele afirma que na Uni-VATS a câmera do auxiliar fica
esgrimando com os instrumentos do operador e isso acaba dificultando a liberdade dos movimentos no campo operatório. Paula Ugalde corrige isso ao se apossar da câmera com uma das mãos. Com a outra ela disseca e o auxiliar traciona e fasta os tecidos. No robô esse problema acaba, pois a câmera é controlada pelo cirurgião, com isso aumentam as chances de mais adeptos à incisão única.
    Após alguns dias de convivência com Rivas, Humberto Oliveira noticia a
realização da primeira Uni-RATS brasileira: lobectomia inferior. Rivas ululava: “foi a primeira na América Latina”.
    Com essa transmutação da Uniportal, o inglês Joel Dunning ressalta: “Pode ser
a próxima revolução as duas melhores abordagens combinadas!”. Numa bela manhã de domingo Paula Ugalde (Boston, USA) posta: “coisas interessantes aconteceram hoje por aqui: primeira uniportal robótica em humanos [sai do console experimental para a prática clínica, nos EUA]”. 
    Ao ler as mensagens de Ugalde e Dunning, o teatrólogo inglês Bernard Shaw, se vivo fosse, diria: “O homem sensato se adapta ao mundo; o insensato insiste em tentar adaptar o mundo a si. Portanto, todo progresso depende do insensato”.
É lógico que com o passar das horas, dos dias [...], dos anos, os sentidos ficarão mais apurados e será mais fácil não só essa adaptação, mas também ouvir estrelas, tropeçar nos astros, ou ainda passear no vento das ideias para sentir no peito a sinfonia das pulsações arteriais e o arfar dos pulmões, para sabermos se o método diferencia. A partir daí teremos espaço para avaliar se é revolução ou contemplação. Tudo para que os gostos pelos conquistas sejam tão aplicáveis quanto interpretar a geometria euclidiana e a passagem por uma
rota interminável chamada desafio.

Texto originalmente publicado no J-SBCT

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Thorassic Park

         “As pessoas comuns podem não entender inteligência artificial e biotecnologia, mas podem sentir que o futuro está passando por elas.

 YUVAL NOAH HARARI, historiador, em: 21 LIÇÕES PARA O SÉCULO 21

 Em 1993 chegou à telona “Jurassic Park” com seus efeitos fibrilantes que nos deixaram de olhos esbugalhados na poltrona. Era como se estivéssemos em estado de matéria, dentro daquela ilha cercada de dinossauros. Em 2013, como se não bastasse a engenhosidade genética descrita pelo roteirista Michael Crichton, a película foi relançada em 3D. Voltei a fibrilar.

Sabe-se que esses avanços tecnológicos ao lado de efeitos especiais, música adaptada e os óculos da tridimensionalidade começaram a fazer parte do roteiro da sétima arte de uns tempos para cá. Não foi diferente em outros campos do conhecimento. Vale grifar que a atividade humana é também medida por ferramentas tecnológicas capazes de alterar o fluxo e a estrutura das funções mentais (mindset), por conta da incorporação de novas tecnologias. É capaz de provocar mudanças de comportamento em quem dela precisa.

Na medicina não poderia ser diferente - e na cirurgia muito menos. Nos últimos anos, a ciência e as diversas tecnologias proliferaram de tal maneira que não são raros discursos surreais. Nestes caminhares relembramos Isaac Asimov, autor de “Eu robô”. Digamos que ele tem papel de anjo da anunciação do futuro ao nos tomar pelos braços e nos deixar abrigados nesse tema.

O movimento e a visão 3D da cirurgia robótica nos faz relembrar a indescritível conquista que nos aloca para outro mindset e que nos deixa eufóricos. Ao relembrarmos a sala de cinema, aproveitamos o trocadilho Thorassic Park, com dois SS de propósito, para pôr título ao texto e fazer alusão a essa monumento da sétima arte e aos que têm sede de curar sob o véu dessas acontecências.

Mas vale repensar que nessa viagem existe o lado escuro da lua. Ou seja, de volta à vida telúrica, viramos homens de rua tendo que desviar de humanidades estiradas nas calçadas e contracenar com toda essa tecnologia pulsante encontrada em cada variedade de esquina.

 Doravante questões humanas – demasiadamente humana - nesta postagem há um curto filme revelando o interior da cavidade torácica sob os olhos de um cirurgião que comanda os braços de um robô (eu, robô). O take se inicia fora de foco, mas em sequência ganha nitidez e segue com os movimentos de pinças que faz lembrar a plasticidade dos efeitos animatrônicos dos dinos em “Jurassic Park”, na hora de se alimentar.

Embebidos na ideia além da matéria e, embalados pela condição humana, esperamos um dia usar a rua como paraíso da tecnologia.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Eu vi um homem de vestes negras empunhando o tridente

No roteiro clínico diário não é raro a gente se deparar com destrambelhamentos, de modo a classificar um caso ou outro como surreal. Aí desembaço os óculos com a flanela e vou buscar fundura nas palavras. O tema é cirurgia segura.

Entende-se que um dos pensamentos primazes da medicina não se restringe apenas a estudar o órgão doente; tem que saber em o lado. É lição que se aprende na dialética da graduação. Na Residência a cobrança é mais espinhosa. Se descuidar pode custar visita ao inferno. Nenhum professor permite que o residente chegue à sala de cirurgia sem ter à frente o exame de imagem que demonstre o lado a ser operado. No meu caso, o chefe de serviço não permitia sequer o laudo - tinha que ser a imagem.

Certa vez ele flagrou um residente – parece que não era eu – fazendo pequeno procedimento, sem a radiografia torácica à frente, confiando apenas na memória.  Ele chegou de surpresa. Perguntou o lado. O silêncio foi sepucral. Vi o residente beijar o cramulhão. Da parede saía um homem de vestes negras empunhando um tridente, que penetrava pelas costas. Ele soltou um berro em silêncio. Ficou estatuado por alguns segundos. Sumiu-lhe o sangue do rosto. Escorreu um suor medonho. Senti um fio de pólvora na sala.   

O livro de Atul Gawande chamado “checklist manifesto” descreve todo o bê-á-bá da cirurgia segura. É como se o médico, na vez de piloto de avião, preparasse uma travessia sobre o atlântico, onde tudo é checado, do primeiro ao último fio de cabelo de cada paciente e de cada piloto. Hoje a ciência cirúrgica camba por estes meandros, e os hospitais-acreditados são supervisionados por várias organizações médicas para obter uma boa nota ONA - uma espécie de graduação no quesito segurança.

Uma das principais bandeiras é a identificação do paciente. Operar o paciente errado vira casa de maribondo. Se acrescentar o lado errado  pode se considerar ida ao inferno de Dante sem precisar bater à porta. Isso aconteceu comigo.

Estava sentado, por começar a descrever um procedimento considerado simples -drenagem pleural no CTI. Havia acabado de realizar, chancelado pela enfermagem com acreditação. Foi quando o amigo neurocirurgião entra esbaforido, pela porta principal, e me aborda:

- Drenaste a Nirvanna, que está em morte cerebral. Ela teve uma complicação no lado direito do tórax e, por conta dessa complicação teve parada cardíaca e entrou em coma profundo. Tem 20 anos de idade.

- Não, não... Drenei a Clareana, do lado esquerdo, que também está em coma. Tem 19 anos.

-Nada disso, drenaste a Nirvanna, no lado direito.

- Tu estás confundindo. O nome dela é Clareana e foi o lado esquerdo.

Nada disso, meu amigo, drenaste a Nirvanna, lado direito.

- Tu estás enganado, meu amigo, o nome dela é Clareana e foi do lado esquerdo.

Quando foi pela quarta vez, vi-me beijar o cramulhão. Eu percebi que da parede saía um homem de vestes negras empunhando um tridente, que penetrava pela frente, no meu peito. Soltei um berro em silêncio. Fiquei estatuado por alguns segundos. Sumiu-me o sangue do rosto. Escorreu um suor medonho. Senti um cheiro de pólvora no ar. Eu já olhava para a enfermeira que me acompanhou com um olhar totalmente entregue ao Capa Preta. Faltou-me também o fôlego.

Foi quando a mesma enfermeira perguntou se estávamos falando da mesma paciente. Pronto! Silêncio vernal. Ouvi passarinhos.

A partir de então fui beijado por um anjo. Eu percebi que da parede saía Hipócrates com seu caduceus e fazia o sinal da cruz na minha testa. Soltei emoção calado. O sangue voltou a circular. Senti um cheiro de patchouli.

Depois de alguns segundos pensei em esfolar o meu amigo. Só não o fiz porque em menos de 24 horas ele perdera duas jovens pelo mesmo motivo. O coração dele era menor que o meu e estava precisando de muitas costuras. As costas dele carregavam mais desmazelo que as minhas. Então cheguei em casa e pus limão e gelo na cicuta de Sócrates e transformei em caipirinha. Bebi numa talagada só; desceu aveludada.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Todo congresso tem conversa de boteco - desconstruindo o metaverso

                                                                                       “-Quem tem saudades nunca está sozinho!”

Josué Montello, em: “O silêncio da confissão

 “Após noite longa em claro, ora andando entre a alcova e o quarto de vestir, ora sentada na poltrona junto à janela, ora deitada na cama desfeita, ela não saberia dizer ao certo o que sentia com a boca amarga, os olhos doloridos, um aperto na cabeça, à altura das têmporas. De repente esquecia-se de tudo para apenas pensar no novo dia que ia viver”. Assim se inicia o romance “O silêncio da confissão”, do maranhense Josué Montello, ao retratar o confinamento de sua principal personagem, após desatino na vida.

Não obstante, retomar o “velho normal” dos congressos após longa estiagem de eventos presenciais parece prenúncio dos próximos dias a se viver. Não que abandonemos o avanço tecnológico das confortáveis reuniões via web, impostas pelo confinamento, mas o silêncio e os desencontros transformaram-nos em avatares a viver metaversos. Parecia que tudo havia acabado para sempre por imposição de um destino implacável. Tudo isso, agora, começa a ser página solta, flutuando ao léu.

Em recente evento soteropolitano organizado pelo Grupo de Estudo em Oncologia Torácica (GBOT) e SBCT, dois ou três pequenos grupos de cirurgiões, nos intervalos das palestras, reuniam-se ao lado de fora, experimentando o desconfinamento: igual a reaproximação, congraçamento. A conversa foi da robótica às traquinagens na traqueia. Muito se aprende nessas prosas, que dão motes para bons textos e algumas viradas na rotina, ao misturar arte e a vivência científica.

Esse evento fez-me lembrar o espaço 2001, aquela odisséia do congresso em Gramado-RS, marcado pela explosão da Simpatectomia e pela ausência de Robert Ginsberg, que em seguida morreria de câncer de pulmão – a mesma doença que passou a vida inteira estudando e ensinando. Era o segundo dia do evento e eu subia, com algum esforço, pouco depois das sete da manhã, pela ladeira íngreme que dava acesso ao hotel do evento. No meio do caminho fui alcançado por um cirurgião maratonista, que puxou conversa. Eu esbaforindo, como se tivesse escalando o Aconcágua, e ele como se passeando pelo parque do Ibirapuera numa manhã primaveril de domingo. Dizia-me que todo congresso deveria ter um tema logo cedo e depois era fechar a cortina e sentarmos à mesa para papo de boteco regado a capuccino ou bom vinho. De forma descontraída, dizia que o melhor do congresso era o lado de fora das convenções. Salvei aquele dois-dedos-de-prosa no escaninho de minha memória por esses 20 anos.

As prosas off-road podem gerar espasmo de idéias e não raras vezes acrescenta  também elementos nas rotinas. A partir de então, o fiat lux se junta ao novo e tal como um gole de sabedoria, sacia a lacuna que carece. É isso que alimenta os dedos de prosa.

Em verdade, as conversas de boteco, em meio a eventos, sibilam sob silêncio e ressoam dentro do peito de cada um - tirando as bravatas, claro – e acabam deixando-nos enjaulados, numa chuva de mindset. Trata-se de uma confissão nua, como se as vestes que lhes vestem coubessem nas almas que delas precisam. Não se mede em quantum ou hertz, pois possuem luz própria, sistemas autônomos e sinapses personalizadas. Ao serem expostas ao consumo público, seja numa palestra ou em nova conversa informal, viram nuvens que se formam e se deformam nos passeios pelos ares - de um aeroporto a outro -, cujas ideias flutuam pelo cotidiano, até se transformar de vez em voz científica.

Será que o cirurgião focado atrai as coisas certas ou o forte curso das idéias exclui as erradas? Para a maioria dos cirurgiões é a mistura dos dois. No de hoje, o tema renasce de situação vivida há 20 anos para se juntar ao saudosismo do retorno às conversas de congressos, cujas reuniões pela web nos deixaram órfãos do espírito de congraçamento e dos abraços.

terça-feira, 12 de abril de 2022

Por que escrever?


    
        Todos os dias, em silêncio, um verso pede para nascer, sem acordar as crianças. Os primeiros raios apalpam a manhã, mas a vista da janela do quarto em que habito, por esses dias, tem um céu cheio de nuvens acinzentadas que hibernam as montanhas que rodeiam a cidade, batem à minha janela, assim como ofuscam os próprios raios de sol.

Os carros passam para os dois lados, pela mesma via, como se fossem para os mesmos destinos, ou avessos.

Sentado no parapeito da janela olho para fora à cata de mim, incrustado nesse mundo esférico e frenético, que não respeita as leis da natureza. Assim a chuva se impõe em meio ao assombroso tino do horizonte pronto para esconder o dia.

Uma jovem cruza o jardim, elegante, com guarda-chuva colorido, enriquecendo de contraste a fotografia desse dia denso.

Queria era que a beleza d'aurora chegasse leve e breve como convém à anunciação do dia, nascendo de um buraco negro para sugar-me palavras ao redor sem deixar perguntas, dúvidas e incertezas, de modo a cumprir o destino do dia, a sina de escrevinhador e ser questão ante à rima.

Não há som da natureza, apenas o dos carros zanzando para direita e esquerda, açoitando o meu ouvido de primata.

Talvez valha um Milestone no trompete de Mile Davis para que afoguemos o tropeço da revolução industrial ou se apegar a Manoel de Barros: “Sobre o nada eu tenho profundidades”.

Labareda e Corisco.

terça-feira, 5 de abril de 2022

As páginas solitárias da guerra


 
 A morte tece seu fio de vida feito do avesso

Dori Caymmi e Edu Lobo, na canção: "Desenredo" 

Caminhar por ruas estreitas e largas ou adentrar a shoppings parecem ações comuns dos reles viajantes em passeio. É ler de tudo. Natural que nos deparemos com imagens e propagandas para o chamamento a gastos: livrarias e livreiros é-me rotina. 

Assim adentrei em determinada livraria de Braga, Portugal, quando me deparei com o guia "Cultiva a saúde com livros". Na capa a linda jovem amontoa livros nos braços e põe um estetoscópio no pescoço. Fiquei a me perguntar como a imagem do estetoscópio aliado à leitura poderia salvar vidas.

 O editorial era sobre a guerra na Ucrânia. O guia relata que determinada jornalista recolhia depoimentos aqui e acolá, enxergava rostos aflitos e agitados, alguns chorosos e amargurados, tensos, inquietos, até que mais adiante observou uma jovem ucraniana com a cara num livro. Ao fundo percebia-se pó impregnado nos móveis de uma sala que aparentava ter perdido parte das paredes; ao redor muita agitação, relatava o autor do editorial. 

Em meio aos escombros deste fluxo contínuo e incontrolável de imagens televisivas e informação frenética sobre a tal guerra, numa amálgama de explosões e refugiados e feridos e mortos e soldados e testemunhos e discursos e opiniões e teorias e ruínas e mais refugiados e sirenes e bânqueres e choros e tiros e mais ruínas e tanques e mísseis e estratégias e apoios humanitários e refugiados. Tudo muito nervoso e angustiante, num desespero e desnorteamento sem fim. Assistir à reportagem de uma ucraniana calmamente sentada com um livro à sua frente, totalmente envolvida, abrigada numa cave enquanto decorria um ataque de mísseis, me deixou tonteado. À sua volta crianças choravam, mães carpiam e bramiam, outras rezavam com nervos à flor da pele. Os poucos homens que por lá estavam não paravam quietos, angustiados, sem saber o que fazer. O que se passava com aquela moça? As palavras dos demais saiam atropeladas, sem conseguirem conter-lhes o desvario e a ansiedade. Ela, plácida e serena, lendo um livro no alfabeto cirílico, alheia a toda aquela barafunda.

A jornalista se achega e pergunta-lhe o que está fazendo. Ela responde que está lendo, com certo ar de lógica. A jornalista, incrédula, imbuída daquele frenesi alucinado que de repente parece ter tomado conta do mundo, pergunta-lhe como consegue. A ucraniana, tranquila, com voz calma, explica-lhe que, quando ler, tudo o que a rodeia desaparece, que mergulha na história do livro e passa para outro mundo, esse onde decorre a narrativa, alheando-a dos medos e temores da guerra, dos horrores do presente. E diz isto com um quase sorriso, numa serenidade e bondade que contrastam vivamente com tudo a que a circunda, mesmo com essa excitação profissional de jornalista em situação de notícia. Depois cala-se e mergulha de novo na leitura. 


A jornalista continuou seu delirante inquérito, mas guardei esta leitura de pura lucidez em cenário de guerra, e agora já tinha como aliar ao estetoscópio: "a literatura é que nos pode salvar do manicômio".

Decerto os caminhos conhecidos da guerra não dão conta das agonias de seus filhos, pois há um futuro incerto acontecendo lá fora. Mas a vida pede um corredor humanitário e segue habitando-nos bem além das escolhas que fazemos.

Por mim, continuaríamos a ter asas pra brincar de passarinho em nossos sonhos e dar a mão a Deus, se ele quisesse passear numa praça em Kiev. Mais tarde, em qualquer boteco, poríamos o coração à mesa e celebraríamos a comunhão dos homens. 

Texto adaptado do escritor angolano Adolfo Luxúria Canibal e do poeta Corisco.

sábado, 19 de março de 2022

As flores da guerra

    Encheram a terra de fronteiras, 

carregaram o céu de bandeiras, 

mas só há duas nações - a dos vivos e dos mortos. 

Mia Couto 


 Enquanto escrevo esse texto, o mundo lá fora explode e uma criança tremula a bandeira azul e amarela de seu país - tal como uma flor -, ao lado de uma poeira de estupidez que a cerca. Outra atravessa a fronteira sozinha, acompanhada pelas flores que a ladeiam, carregando no seu alforje um retalho de esperança. Quase 100 crianças já morreram e mais de um milhão passaram pelas fronteiras da Ucrânia.

    O que nos choca nas imagens que correm o mundo pela Reuters, além do tanto de mortes, é o fato de que elas não mostram um lugar previamente precário sendo cada vez mais devastado; não, vemos lugares previamente frondosos e bem estruturados transformados em ruínas: são prédios residenciais esburacados por mísseis. Estamos testemunhando o progresso contra o progresso; dinheiro contra o dinheiro; sofisticação tecnológica contra algumas das cidades mais desenvolvidas do mundo. O mais letal que o dinheiro pode comprar contra o mais belo urbanismo que o dinheiro pode cultivar. Não há belas artes, não há belas flores nos jardins, há balas e bolas de canhões. Não há riqueza e não há tradição que nos impeça de agirmos contra nós mesmos e, assim, a jornada virou um paradoxo delirante.

    Importa-nos muito, e estamos aqui, seguindo incólumes, sobrevivendo e assistindo à derrota de uma pandemia frente às vacinas – embora haja alguns que desdenhem - enquanto a dita nação tenta roubar a cena com seus deuses-déspotas. Se construímos nosso próprio cenário de progresso e se tentamos nos desafogar desse mar negro da discórdia, resta-nos a solidariedade.  Talvez, dada a diversidade de opiniões e ações, sejamos merecendentes dessa guerra.

    Em situações de desassossego, como o de hoje e o de ontem com a Síria, valha resgatar os poetas. O meu predileto é Corisco, que me mandou o texto seguinte sob forma de mantra para acalmar minhas desordens e minhas histerias. Ele dizia que as flores da rua de um bombardeio nascem secas, em vida. Se buscam o sol por instinto, por necessidade, pela vitamina B12, crescem à força, impelidas pela necessidade, mas na mesma dose de força fenecem. As flores da desesperança plasmam a seiva da desgraça, e as trapaças se agarram ao destino, como desatino dos desassistidos; dos que buscam o nada quando já perderam tudo - exceto restos e migalhas de vida.

    No minuto seguinte do próxima amanhã, e se os déspotas permitirem, as flores do pântano social são vistas como coisa normal e a abelha há de apreciá-la no próximo voo. 

    Ao curso natural das guerras, há uma consequência natural das flores regadas às migalhas das caridades das gentes: a morte das flores das ruas, que são acordes ressonantes; que Deus se apiede de Deus por esses buquês que, também são seus, que, aliás, são nossos.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A CADEIRA QUE NOS SUPORTA

            Era sexta-feira ensolarada na cidade de Prestino, perto do Lago Como, na Lombardia, norte da Itália. Giacomo passa acelerado para ir almoçar em casa e matar a fome que lhe perturba. Nota que a árvore no jardim do sobrado daquela senhorinha esquisita está preste a cair. Se acontecer, um grande galho pode quebrar parte do telhado do lado esquerdo da casa. Seria melhor avisar alguém sobre isso. Mas, já faz algum tempo que ele não via aquela pequena senhora, cujo nome nem lembrava mais. Provavelmente, nem estivesse em casa, saído junto com parentes, fugindo da pandemia que castigou tanto esta parte do país, nos últimos dois anos. 

        Ao entrar em casa, o jovem pega o telefone e liga para o atual proprietário da casa, pois sabia que a senhora havia vendido esta para o Sr. Allan, mantendo o direito de usufruto. O cidadão suíço abastardo também era o proprietário da casa onde Giacomo morava de aluguel, por isso a lógica para conectar os fatos.

        O Sr. Allan conta para Giacomo que já havia um tempo que não falava com a Sra. Marinella Beretta. Ele informou que entraria em contato com a polícia local, para ver se notificavam a sua inquilina. 

    No mesmo dia, uma viatura dos bombeiros foi ao local de residência da senhora Beretta, para verificar a situação e programar o corte da árvore, que sofria com os ventos fortes desta época do ano na região Lombarda. 

        Bateram à porta por 15 minutos, sem sucesso. Tomaram a decisão de entrar no recinto. Ao abrirem a porta à força e depararam-se com uma sala arrumada, porém com ar de abandono. Chamando o nome da senhorinha foram adentrando cômodo a cômodo, até chegarem à cozinha. Lá viram a senhora sentada em uma cadeira de cabeça baixa apoiada na mesa, totalmente imóvel. Ao tocá-la, o sargento Guiseppe toma pé da verdadeira situação. A Sra. Marinella Beretta estava rígida como se fosse parte da mobília. Ela estava mumificada em sua solidão. 

        O seu corpo, já há muito sem vida, jazia no seu trono de reclusão e esquecimento. Pelo estado de mumificação, a morte foi calculada como ocorrida há dois anos. O que coincide com as últimas datas de contato visual com seus vizinhos, pois não era afeita a prosa. Essa aversão ao contato não passava de uma inferência, uma vez que não se tem um costume local de interagir com os anciões solitários.

        Marillena Beretta esperou por dois anos para que uma árvore lhe fizesse ser notada. Era uma sombra a existir. Uma figura sem importância. Mais uma vítima da solidão que assola 40% dos idosos italianos, esquecidos pelos parentes e amigos do passado. 

        Não foi situação exclusiva dos filhos de Romulo e Remo. Existem inúmeras vidas esquecidas, com suas cabeças prateadas e suas mãos enrugadas. 

        Como estão os seus velhos? Estão sentados esperando uma árvore cair? Não espere muito para revê-los. Pois nem todos tem um jardim com árvores.


Jader Leite, jardineiro de espírito e de alma

sábado, 1 de janeiro de 2022

Scamparini acerta tiro direto no meu peito

                                                                          There's a lady who's sure all that glitters is gold

And she's buying a stairway to heaven

Led Zepellin, na canção: Starway to heaven.

 

“No dia em que Yana Milinic resolveu ir para a guerra, já tinha tomado a decisão irrevogável de morrer”. Assim está a primeira frase de “Atirem direto no meu coração”, estreia de Ilze Scamparini no campo da literatura. Ao final da obra, a autora paulista, correspondente da Globo em Roma, nos arrebata e queda ao chão com seus estilhaços literários. Foi grata surpresa. 

Sou, há muito, admirador do jornalismo cantarolado de Ilze. A forma como sonoriza seus textos, em parte, está na obra. Li como se tivesse o ouvido grudado num áudio-livro, com a voz de Ilze ao pé da orelha. É leitura com fundo musical: Led Zepellin. Porque há rajadas de guitarras em meio a um texto de resistência ao establishment.

Descobri essa nova Ilze atravessando as ruas de Botafogo, numa livraria de renome. Andava me ocupando da saúde da família, quando achei um tempinho de visitar a tal livraria, além de saborear um bom cafezinho, como sempre faço quando vou ao Rio.

Logo na entrada me deparei com o livro. Retrata a guerra de Kosovo, um pequeno pedaço de terra onde cristãos ortodoxos digladiam-se com  albaneses e muçulmanos pela posse territorial, após a ruptura da Iugoslávia de Tito. Sem querer entrar no mérito internacionalista, Ilze se transforma em Paola durante seu relato e consegue traduzir o sentimento da sérvia Yana Milinic, a personagem principal que vendeu a alma ao diabo, por conta de seu nacionalismo beligerante. Numa das cenas ela invade pequeno hospital e, com sangue nos olhos foi capaz de atirar na cabeça do cirurgião em pleno campo operatório e no paciente que se encontrava sobre a mesa de cirurgia, com o abdome aberto. Ambos ficaram na pedra. Por sua vez foi capaz de chorar sobre o corpo de uma criança fuzilada pelo parceiro de farda.

Para relembrar essa guerra já esquecida, Scamparini dá ouvido à guerrilheira Yana, entre vários encontros, e também revigora-se por meios de revisão historiográfica. Na época, 1998, por conta de questões étnicas, Kosovo tentava ser independente, mas o governo sérvio do ditador Slobodan Milošević não estava disposto a ceder. No romance, a protagonista Yana veste a farda da Raposa Vermelha, grupo miliciano ultranacionalista que defende a cartilha do ditador.

A narrativa é taquicardizante. A sensação é de o leitor estar nas trincheiras da guerra, ouvindo rajadas dos Snippers, aviões da OTAN passando por cima da cabeça e torcendo por Yana no octógono contra Lady Tortura. Se quiserem entender visceralmente a guerra de Kosovo, não comprem livro de história. Viagem para o terreno kosovar nas asas de Ilze, que se faz Yana pelo lado de dentro dos sérvios da resistência, que buscaram com faca nos dentes a independência política de seu povo.

Até a sede que Yana sofre escalando as colinas foi transferida para mim. Naquele momento fechei as páginas do livro e fui até a geladeira tomar uns goles para ajudar a corrigir sua desidratação, pois a descarga de adrenalina que escapava da leitura atingiu minha goela em cheio; perdi o sono.

Ao escolher vestir a farda da resistência, Yana foi iluminada pelo avesso dos breus. Era quem enxergava o caminho em noites de lua cheia ao lado de seus companheiros. Não via riscos em tropeçar nos medos que a sua razão de mulher do campo semeou ao longo do tempo pendurado na baioneta de seu fuzil.