terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A leseira que dá

Um ano cheio de agonias. Pessoais. Vou me limitar a isso. Daí o dia de vir a Belém passar as festas de final de ano começa a se aproximar. E dá uma leseira... Mas uma leseira... Algo assim: coração fica sem lugar; cabeça cheia de informações que se confundem. Decido fazer uma coisa, mas volto no meio do caminho, porque estou certa de que é melhor começar por outra. O ar, nessa altura do campeonato, o ar já começa a faltar. Dá uma espécie de cara branca. Melhor mesmo é sentar no sofá. Rio. Acho graça convicta de que não tem graça nenhuma. Convicta de que é preciso manter um mínimo de dignidade. Esfrego as mãos no rosto, pra sentir se limpa a confusão. Nessa hora, a fome aperta e nem sei de que tenho vontade de comer. Qualquer coisa serve. E por onde anda a muleta? Sim, porque as pernas estão bambas e as mãos tremulam. A bomba ansiolítica foi tamanha que o sono parecia arrebatador. Um dia inteiro em poucas horas da manhã. Encosta. Respira fundo. Dá uma tossidinha pra ver se a palpitação regulariza um pouco. Isso já não foi mais só leseira. Foi ataque histérico! Valei-me!

Balanço do ano? Só se for numa rede gostosa, com a costelinha da minha pequena que já está grande, sentindo o vento fresquinho amansar a pele e o som do bailar das palmeiras apascentando as ideias. Cheguei.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Era o inicio da travessia...

E mal começava 1982 e já tínhamos o ano marcado em nossos corações - hoje cinqüentões. Havia apreensão antes de o listão soar, mas era puro receio de deixar tudo na memória povoada de fantasmas. O ouvido incrustado no rádio seguia aos ovos espatifados nas cabeças cheias de trigo, escorrendo nos rostos estampados a alegria estendida a pais e amigos. Aquela gororoba no cabelo era reverência ao ano que começaria na dimensão da universidade, ou seja: cuca controlada e Pinduca na vitrola.
Foi o início da travessia, decerto. A partir dali não queríamos morrer na praia e apenas ficar olhando o mar revolto espumando sobre areias. Queríamos mais. Àquela altura tudo isso também tinha gosto de liberdade - emancipação, diria.
Inicialmente veio a satisfação de conhecer disciplinas básicas e amigos que passariam a ser grudes inseparáveis. Depois chegaríamos ao velho casarão de Santa Luzia para perceber que a maioria carregava as mesmas expectativas, esperanças e a sede de aprender. Fomo-nos conhecendo e formando bandos rumando num destino só, feito nômades. Umas mais tímidas, como eu, outros mais extrovertidos, engraçados, intelectuais. Mas todos no bando. 
A cada semestre de encontros e reencontros eram motivos de regozijo ao rever aqueles rostos que iríamos acompanhar por mais algumas escalas. Desencontros e partidas ocorreram - de fato, uns e outros tomaram nortes diferentes e se destinaram a outras aragens.
Os termos técnicos que paulatinamente íamos degustando e dicionarizando passavam a ser rapidamente incorporados aos diálogos. Aprendemos também, por força da necessidade, uma nova escrita, com abreviaturas horripilantes que só nós decifrávamos, sem falar dos desesperados em véspera de provas.
Amadurecemos mais quando conhecemos o sofrimento alheio, defrontando com a dor dos pacientes que nos fitavam com olhar suplicante, pedindo o colírio da cura. Tais marcas nos acompanham até hoje, cujas bases estão enraizadas nos porões da Santa Casa, onde regamos a misericórdia e nos escondíamos das greves até esta chuva passar.
Mas a viagem tinha tempo findo e chegava a hora tão esperada. Era canudo na mão, coração na boca, peito aberto, pernas trêmulas e alegria indisfarçável. Na voz de todos, cada pomo esbravejava na hora cálida da sintonia telepática do juramento de Hipócrates.
Findou quando descemos as escadarias do Theatro da Paz. Recomeçávamos outra travessia: alguns para terras mais distantes, outros mais pertos; alguns estiveram sempre juntos, outros nem tanto. Uns tiveram rotas alteradas, mas na esquina seguinte reencontramo-nos pela via virtual. E que felicidade quando esse encontro passou a ser físico e voltamos a ser bando.
Em cada ruga só víamos os mesmos rostos juvenis que nos transportavam à época, tão perfumada em nossa paisagem, levando a sensação que não existiam tais rugas e grisalhos cabelos. Estávamos realmente anestesiados pelo óxido do riso. A alegria que nos farfalhava também guardava a tez que ficou no retrato em branco e preto emoldurado na sala de jantar. Havíamos formado um novo elo de amizade e retomada a velha convivência, graças ao solavanco da tecnologia.
E estamos aqui...
E se a tal máquina do tempo viesse nos buscar pelo colarinho do jaleco, eu, particularmente eu, acocoraria-me diante da nobreza da amizade e me achegaria um pouquinho mais perto de cada precórdio para auscultar com mais intensidade o ruflar de cada sístole de cada outro-um.


Relato transepidérmico de Ana Rosa Bosi, médica na área de Saúde Pública, (Novo Repartimento, sudeste do PARÁ)

domingo, 6 de dezembro de 2015

O sopro de Ana

“Havia o céu. Eis tudo.”
Ruy Barata, poeta, em: “Linha imaginária”

Gente nascendo na Santa Casa de Misericórdia é cena corriqueira há século e meio. E quando crianças coroam por lá, o azul tende a ficar celestial. Até hoje, quando caminho por aquele entorno percebo, mirando o céu, sempre uma rodela azulzinha e sem nuvens. Penso logo que o firmamento anda se contraindo feito útero de parturiente.
Tudo isso me veio à memória porque nos idos de 1985 vivi momento de glória com a minha turma da disciplina de pediatria. Tínhamos aula prática de sala de parto na Santa Casa. Vi crianças nascendo a rodo. Sentia na sonoridade dos alaridos, assim como aquele inconfundível cheiro de placenta, um sentimento de me deixar estupefata e sem fôlego. Não saberia descrever por palavras, mas posso criar um estado de sentimentos, se permitirem, pois não é a história que me fascina, mas a alma que veste a história.
Os pirralhos já nasciam aos berros e logo-logo eram embrulhados pelas enfermeiras numa manta espessa para protegê-los do frio da sala de parto. Posteriormente eram colocados sob luz artificial para reaquecimento, afinal de contas abandonaram seus iglus onde tinham uma vida mergulhada numa piscina de água morna e diáfana. A partir de então assumiam um ritmo diferente daquele que a mãe natureza acabara de impor, ou seja, um frio equivalente ao do polo norte e um estridor ao respirar. Passado aquele momento o choro dava vez ao silêncio da respiração.
Houve o momento que o professor Maués, lendo meus olhos, chamou-me para “aparar” uma criança prestes a surgir pelo canal do parto. Num misto de sorriso pálido e satisfação, falei: - Eu, professor? “Você mesmo, Ana”, respondeu. Derreti-me por dentro. Estava apavorada, pois como qualquer um, tinha receio de deixar a criança cair e se espatifar no chão; foi o que me passou pela cabeça.
As lágrimas daqueles choros representam o apelo de se abandonar aquela vidinha suburbana latejando no líquido amniótico e ter que se agarrar no mundo, com unhas frágeis e sem dentes. Mas ali estavam os pediatras dispostos a recebê-los de mãos abertas e eu me via enluvada naquele ritual.
Até hoje nunca vi sofrimento nesse convívio, assim como soberba por parte de médicos e enfermeiras. O que via era dedicação e doação, extratos do altruísmo. Estava ali apenas para interpretar o que acabara de rabiscar na sala de aula, sem atrapalhar o sopro da vida. Eu era apenas uma curiosa menina apaixonada pela ciência e, ver aquilo me causou paixão. Foi o visgo que me atracou na profissão e até hoje respinga no meu sentimento e memória. Sinto saudade daquelas primeiras linhas tanto quanto os passos que agora desfilam pela lembrança fosca.
Graças a Deus tudo correu bem. Senti-me maravilhada por fazer parte ativamente desse momento mágico. Esse acontecimento consolidou minha vontade de ser pediatra e conviver com grandes mestres. Lembro desses passos, ainda como se fosse hoje, pois passei do pavor ao total deslumbramento quando segurei aquela vida. Portanto, nasceu o perfume com a floresta. E, seguindo orientações técnicas, foram tomadas todas as ações necessárias em uma sala de parto. 
No dia seguinte fui visitar a criança e, para minha surpresa, chamava-se Ana.
Sempre me pergunto: por onde andará aquela Ana?

Relato epidérmico de Ana Aparecida Figueiredo Seixas, pediatra

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Amor platônico - diálogo à sombra de um pé de pequi

   Jorge, meu amigo, a vida é assim: cheia de travessias e travessuras. Eu, por exemplo, desdenho regras. Só trabalho com perdidos e achados.
-Labareda, meu irmãozinho de caduceus, se estou perdido ou achado, não sei, mas te digo: quando eu lia romances emprestados das bibliotecas, ficava encantado com esse tal de amor platônico. Aquele que dominava meus quereres sem plasmar ou materializar a pessoa amada. Forçosamente a vida me empurrou, ladeira abaixo feito carrinho de rolimã, para praticar esse tipo de amor.
Pois bem, como sabes, o curso de medicina é espartano. Lamentavelmente o tempo é integral: manhã, tarde e noite, sem contar as madrugadas que tiramos para as provas. Ainda os finais de semanas em clínicas e hospitais para pegar um beiradinha do conhecimento daqueles dedicados médicos, discípulos de Asclépio que, com paciência, me aceitavam nos plantões. Sem poder trabalhar, não por preguiça ou boçalidade - que até vergonhoso é -, um marmanjo como eu, sempre liso, era considerado anjo torto. Tinha que pular roleta de ônibus, caminhar com maestria ao me esquivar das poças d’águas. Andar de guarda-chuva, pois por Belém sempre tem uma chuvinha no meio da tarde e mangas despencando do cume das mangueiras.
A bolsa de estudo dava para meio mês; depois o amor platônico dissolvia-se e, por fim, nascia o amor gastronômico: filava boia na casa das pessoas que conhecia e de quem mal conhecia, também. Não havia sobra de comidas, não. Pesava exatamente meus cinquenta e oito quilos, fazendo inveja às modelos anoréxicas de hoje, que vivem na opulência, apesar da bunda seca.
Minha memória olfativa e gustativa escreveu um livro tão claro na minha biblioteca, que naquele período se chamava fome a minha alma. Aquele cheiro delicioso de pizza ao atravessar a praça da matriz era inspirador. Suspirava ao comer meu pão-bengala com água, temperado com orégano, oliva e as melhores azeitonas do reino. Ficava delicioso.
Mas o rompimento definitivo com esse amor platônico, inatingível, nas estrelas, foi com o cheiro vindo da churrascaria, caminho de passagem para a faculdade, no largo de Santa Luzia. Era uma tortura. A boca ficava cheia d’água e o estômago não respeitava – roncava -, e às vezes sentia o ardume da acidez. Ficava aquele sabor impregnado no pedaço de osso com tutano, quando eu raspava um prato fundo de sopa quente. Eu me inspirava, até ficar deliciosa, naquele cheiro de defumado. Eu ria muito - ria mesmo. Ainda tirava onda com o pouco de sonho que me restava - desde aquela época, e ainda não desisti, quis transformar o mundo.
Ironias do destino: rompi esse amor platônico que tinha pela gastronomia. Com os meus traquinos oitenta e seis quilos de então, tornei-me vegetariano sem sofrimento, e sem mágoas com meus ex-amores. Peguei carona nessa criatividade e não deixei de aprender a fazer pratos elaborados para aqueles que se deleitam com os prazeres da carne. Alguns pacientes quando querem me presentear com algum tipo de ser vivo - galinha ou leitão-, falo que quero um saco de pequi, fruto da região. Logo me indagam se tenho alguma doença ou faço dieta.
Para encurtar a prosa digo: é pura paixão. Dessas que nem Freud, nem Nelson Rodrigues explicam.


Jorge Ivan e Labareda do bando Corisco

domingo, 22 de novembro de 2015

A fronteira da travessia

Depois do mar do Oiapoque avista-se o do Caribe...

 - Pra onde pensa que vai?

- Caiena!

- Qual tua idade?

- Dezessete.

- Não, não. Pode chispar daí se não tiver o dinheiro da passagem.

- O Claude Buchert está me esperando. Vai acertar tudo quando aportarmos.

- Descreio. Não conheço ninguém com esse nome. Mais: os franceses estão restringindo a entrada de estrangeiros pelo Atlântico; ainda: você é de menor!

        O diálogo entre Corumbá e o menino aconteceu em 1987, no porto do Oiapoque, onde começa o Brasil. O pequeno, desacanhado, só queria atravessar a fronteira na busca do sonho de todo artista e não poderia temer o tatuado marinheiro musculoso e bafento.

Quando o menino conheceu Claude, francês de Tolouse, tempos antes em Macapá, ganhou a promessa de montar, em Caiena, uma banda que mostrasse a riqueza do ritmo amazônico. Tudo porque Claude, promotor musical, avistou certa vez o tal moleque multi-instrumentista num recanto tucuju e ficou deslumbrado com seu talento.

O marinheiro não permitiu o embarque.

Noite adentro, mar rosnando, Corumbá descobre o moleque encafuado entre outros passageiros, só com a roupa do corpo. Corumbá puxou-o pela gola da camisa para jogá-lo ao mar. O menino aponta para o piso do barco onde há uma fresta por onde mina água. Lá estava fincado o pé direito dele contendo o vazamento, pois a calafetagem havia descolado em plena travessia. Corumbá se viu em apuros e todos apelaram. Ele cedeu. A viagem toda foi o garoto jogando de volta, com uma cumbuca, a água que entrava pela falha.

Do caribe o menino só conhecia histórias do pai músico, que ligava o radinho de pilha para ouvir os ritmos, em ondas tropicais. Mas o menino queria mesmo era atravessar as ondas do rádio, beber da fonte e saber se a velha promessa de Claude ainda estaria no ar... ou ficaria no mar.

A monotonia da viagem foi vencida pelo marmulhar das ondas batendo no casquinho, cujo motor parecia falhar a cada estrondo na lateral. Não havia um trisco de horizonte; a noite era só breu e o céu sustentava estrelas e o sonho do pequeno. Foi-se construindo a esperança a cada hora, mas vez por outra era carcomida pelo medo de emborcar e todos virarem tira-gosto de tubarão.

Ele dizia que sua alma de músico era um rio estagnado, pois nenhum vento enluava a vela de seus sonhos. Por isso estava ali, caolho da vida com a voz trancafiada no amanhecer vindouro. Pelas esquinas de sua cidade vivia à deriva e sob ilusão de acordes e harmonias nas cantorias regadas a incertezas. Sentia-se irmão das coisas sem adjetivos. O próprio nome desafinava entre o sonambulismo de atravessar a fronteira e a esperança de encontrar Claude.

Relembra com exatidão a chegada, após fuga a braçadas até a praia de Montjoly - sem esquecer que o débito da passagem ficou “dependurado”, salvaguardado pelo pé do moleque. Por fim, a experiência jamais lhe saiu da memória e a travessia o assombrou por mais de três anos, até o retorno definitivo pelo mesmo caminho - coisa de memória, antes que a modernidade delete.

Na mochila da volta trouxe não só o culto à língua de Baudelaire, mas a tessitura caribenha transfigurada em zankerada.

Conta ainda que na volta reencontrou o velho marinheiro e fez questão de pagar uma passagem a mais e ainda resistir ao troco. Dívida saldada, Corumbá e o menino Fineias Nelluty se tornaram amigos.
Blog de Rocha/Elton Tavares
Vinte anos após aquele diálogo foi iniciada a construção de uma ponte estaiada na fronteira entre as duas nações, mas ainda se aguarda por histórias de comunhão e progresso, que não devem afogar fecundos relatos de travessias pelo mar da história. Ou como diria na canção "A ponte" de Zé Miguel e Jeresier: Mais c`est bien plus qu`um pont une autre vision..

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Bate aqui. Bate lá. Diferenças entre debate eleitoral na Argentina e no Brasil

Já sei que escrevi sobre eleições na Argentina aqui, na Revista do Brasil e no tuiter. Sei também que alguns já leram algo disso recentemente nos traços de Paulo Henrique Amorim. Mas eu gostaria de acrescentar outros poréns agora, há menos de uma semana para o segundo e último turno de votação.

No decorrer do processo eleitoral, vou ruminando uma comparação amadora com o processo brasileiro. Por exemplo, este ano foi o primeiro em que o país viveu um debate entre candidatos a presidente. A mim pareceu impressionante. O Brasil há décadas espera com ansiedade pelos debates entre os candidatos. E olha que não são poucos, porque cada veículo de comunicação faz um. E existe  ainda toda uma preparação pré debate e repercussões pós debate.

Houve o debate com todos, todos os candidatos que foram crivados pelas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), em outubro. Dos seis, apenas o oficialista não compareceu. Com o segundo turno confirmado, veio também a garantia de mais um debate, entre o oficialista e seu principal opositor.

Mas tem um detalhe aí nessa história. Quem promoveu o debate não foi nenhum meio de comunicação. Esses tiveram participação secundária: a de escolher um de seus jornalistas para competir por uma vaga como mediador e a de transmitir, se tivesse interesse. Sim, senhor. Isso me pareceu outra diferença significativa. 

Os organizadores do debate foram membros de um coletivo formado especificamente para a missão, Argentina Debate, vinculada à Faculdade de Direito, da Universidade de Buenos Aires (UBA). Mesmo não crendo em neutralidade em canto algum, por simples condição humana que a inviabiliza, eu imaginei que tudo poderia ser um pouco mais limpo. Mas, ora, ora, limpo! Os veículos de comunicação da Argentina não têm nada de diferente dos veículos brasileiros. Sempre tomaram partido. E nisso o oficialismo leva muita desvantagem. Portanto, os mediadores, sendo representantes desses veículos, iriam reproduzir o discurso favorável ou desfavorável a um ou a outro conforme ditam seus patrões. E não deu outra. Foram dois contra um. Dois de veículos opositores e um de veículo próximo ao oficialismo.

O certo é que os mediadores não fazem perguntas, como ocorre no Brasil. Cada um, a seu tempo, ditava os temas gerais previamente selecionados para cada bloco. Se quisessem, poderiam fazê-lo com algum comentário. E foi aí que botaram as garras pra fora, notoriamente.

E digo mediadores também porque, de fato, não havia nenhuma mulher. Sim, eu acredito que o fato de haver uma mulher faria diferença nesse meio de campo. Mas Scioli, o oficialista, tirou vantagem do adversário: lembrou do movimento Nenhuma a Menos, pelos direitos das mulheres, enquanto Macri fechou o atendimento de vítimas de violência de gênero.

E aí entra outro elemento muito interessante também. O coletivo Checado. São eles que ajudam os cidadãos a conferirem o que é verdade ou mentira no discurso dos candidatos. Eles já vinham fazendo este trabalho ao longo do ano, mas acompanharam em cima do lance o debate. Escolhem um dos números ou informação expressada e verificam sua veracidade, divulgando virtualmente.

Particularmente, vejo no rosto de Daniel Scioli um eterno enfado. E isso é ruim para o atual governador do estado de Buenos Aires. Mas o discurso dele é mais consistente do que o do governador da cidade de Buenos Aires, que sempre faz piadinhas desvantajosas - como dizer que “agora me rendo, Daniel” – e tem sempre um riso na venta. 

Aí vai de cada eleitor sentir que conta mais a segurança da fala de Scioli - que insiste em mostrar a diferença entre dois modelos de governo - ou a imagem de um bacana e bonachão Macri. A diferença percentual entre os dois foi muito pequena no primeiro turno, o que dificulta mais ainda um chute sobre o resultado dessa primeira vez na história argentina em que os eleitores terão segundo turno. O jogo só acaba quando o juiz apita. E parece que ele vai apitar por volta da meia noite, porque, afinal, a Argentina ainda vota em papel.

Enquanto isso, seguem os balões coloridos de Macri pelas ruas portenhas e os volantes de Scioli por praças e parques.

O resultado, a meu ver, repercutirá drasticamente na Argentina, mas também na América Latina, porque cada um tem propostas bem diferentes para as relações internacionais. A conferir.

domingo, 15 de novembro de 2015

A dor do rio

Eu me chamo Amazonas,
                     e quero falar de dois irmãos: Doce e Sena
Doce, o patrício, salgaram-no de lama e mercúrio.
O Sena, saiu de cena numa noite de novembro quando suas águas toldaram a minha alma numa lama de sangue.  
Estamos arriados em nossos leitos e calafetados pela dor dos irmãos.
O próximo serei. 
Deus, me acuda!

Como se não bastassem os ribeirinhos 
                              que carrego na proa de minhas canoas,
agora também pesa no ombro 
                    o pêndulo da desgraça por amar o mar e o mundo.
Eu, rio, que deságuo hoje no atlântico com um volume de vida menor,
                                            estou enlutado do amor.
Estou secando ...
                           ...e o que evaporou de mim
e me fez menor ...
                            ...foram as lágrimas.

Ao meu lado vejo um homem
                         Ele carrega uma lata-dágua na cabeça
e na cabeça só há a lata e o vazio do tamanho do Saara.
A água foi-se na escuridão das noites em que não dormi,
                 ao ver ganância e fundamentalismo no mesmo cântaro,
em vez de água de beber.
Restou-me a sede nos lábios rachados,
Tal como a caatinga do nordeste do olvidado Chico.

Hoje: luto, não sorrio,
                           sou rio que se veste com as cores da dor.


Labareda, do bando de Corisco 

sábado, 7 de novembro de 2015

Bem-aventurado os que têm sede de alegria (com intervenções cirúrgicas do poeta Abel Sidney)

Nos idos de 80, junto com Sergio, Paulinho, Ismael, Zé Pedro e Max, parceiros do mesmo vagão, começamos a frequentar, ainda estudantes, as salas de cirurgia da Beneficente Portuguesa do Pará. Tínhamos ideal de apenas experimentar aquele lado pulsante da medicina e respirar aqueles ares intumescidos de ciência.
A valência que não nos intimidamos. Fomos batendo na porta, vestindo capote, lavando mãos e colocando pantufas. Permitiram e fomos adentrando. 
Cirurgião, sabe-se, tem uma rotina pesada e desafios amargos. O seu deleite não é essencialmente o sorriso, mas o remédio que abranda dor, a pinça que estanca sangramento, ou a manobra que extirpa tumor e drena fleumas, mesmo que signifique talho no corpo e cicatriz indelével. Pela obstinação de cada um, tinha em mim que o ambiente do centro cirúrgico deveria ser carregado, silencioso, repleto de cheiro de éter e de gente chorando, pois assim líamos nos alfarrábios e ouvíamos na sala de aula.
Que nada!
Lá conhecemos uma criatura tagarela e brincalhona que nos fez rever todo esse cânone. Tirava graça com todos; chamava de bonitão do servente ao presidente. Quando perguntei às enfermeiras de quem se tratava, responderam: um baluarte conhecido em todo território nacional. Opera casos complexos e tem aura cintilante que aguça os mais fracos sentidos. 
Pura verdade. Ele operava como se tivesse tomando um Guarasuco. O homem ainda era doce e generoso com seus pacientes. Costumava referir aos familiares que o sucesso ocorria por conta do anestesista ou o clínico geral - nunca dele. Seguia um perfil profissional que não se apregoa nos corredores dos hospitais, universidades e clero cirúrgico. Era assim o Guilherme Guimarães, ou melhor, Gegê, que empunhava na lâmina de seu bisturi toda a técnica e arte e, no cabo, o bom humor.
Pra mim as cores da sua alma tinham matizes que iam do traquejo com as mãos até o humanismo nas atitudes e palavras, feito missionário. Manifestações elegantes, práticas gentis explodidas no meio do caos eram seus tiques. Para nós, ainda principiantes, foram pequenas revoluções num clérigo que, sabemos todos, é de responsa.
Certa noite - quase meia noite -, fui convidado por ele para participar de uma operação de urgência. Com abdome aberto exalando cheiro de podridão por conta de uma úlcera perfurada, ele interrogou:- você quer ser cirurgião, mesmo? Tem que suportar tudo isso com humor sem perder ímpeto e concentração.
Tititi, patatá, ele seguiu, madrugada adentro, operando e ensinando. Vez por outra ralhava, com sutileza, para não perder o foco, mas o que encantava era a maestria de sua arte e o rigor pelos princípios da técnica operatória. Tudo junto e misturado com alegria e sem aperreio. Fazia jus ao legado de Ambroise Parè sem perder o regalo.
Gegê acabou de subir. Vinha sofrendo dos males da idade e o coração não deixou por menos: bateu asas e fez caminho pro infinito. Restou-nos um par de retinas que, voltadas para a ampulheta da medicina, no contraponto do monólito erguido pela cirurgia, ficaram grudados em nós só para passar outra ideia: a de alegrar nossa rotina sem que abandonemos o trilho, como grifaria o poeta: "
Médico vai pro céu?! Se construir asas vai, é lógico!"
          Gegê fez ninho por lá.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Água Preta em minhas retinas

Um pé de lugar foi plantado no meio desse sertão amazônico, a meia légua de onde moro. Estava no meu encalço antes mesmo de eu virar mundo.
O povoado fica escondido nas entranhas do maior rio do mundo. Dista 27km de Santarém, correspondendo, no verão da estiagem, a três horas de voadeira no sentido norte, cruzando o encontro das águas do Tapajós com o gigante. Ziguezagueia-se pelo rio, passando por tufos de terras. Depois das reservas quilombolas pega-se o beco da esquerda pela boca do Tapará, passando por Costa do Tapará, Tapará-Mirim, Igarapé da Praia, Igarapé do Costa, Aramanaí, até bater na Água Preta. É um trajeto serpiginoso que nem o Google Maps avista. É quando rio vira rua e Água Preta sai do meu encalço para aportar no meu coração.
No caminho, casais de botos Cor-de-Rosa e Tucuxi nos saúdam bem perto. Mauro diz que eles estão fazendo saliência, mas acho mesmo é que guardam segredos do fundo do rio.
No itinerário somos Marcelo (irmão), Mauro e Rui (primos). Estes dois nasceram lá, assim pra mais de vinte que moram em Santarém. Nós, os filhos da Marina, somos os únicos que nascemos fora do eixo. Fui parido às margens do Juruá, mas engametado por aquelas bandas, segundo Tajá-Panema. Quando dei por mim, Água Preta veio porejando da memória de minha mãe e fui aparando tudo numa tigela da emoção. 
Ainda moram alguns primos por lá, mas a maior parte deserdou para Santarém, ainda adolescentes, para estudos.  Só ficou Beto, que hoje cuida do povoado e da memória da família.
Quando aportamos no barranco, Beto e esposa receberam-nos com um abraço gentil. Em sua casa simples de madeira havia preparado almoço: na brasa, uma banda de Pirapitinga gorda. Comemos até tufar o bucho – na gíria de lá -, cercado por Papagaios, Passarinhos e uma enxurrada de Macaquinhos-de-cheiro.
Depois da Pirapitinga fui, passo a passo, me incorporando à terra. Saquei umas fotos e me alojei dentro do útero daquele lugar, que pariu minha mãe e outros quatro irmãos dela. O verde denso tem cheiro próprio, mas o rio, neste período, fica raso, e os tesos emergem deixando um vazio abissal de terras caídas, para se tornar palco onde Garças se tornam bailarinas. Por lá não falta peixe, ovo de tracajá, canto de Jaçanãs e Papagaios. Pode ser observado também um silêncio que poderia ser dito como ar novo ao meu pulmão recém-transplantado de anseios.
Fui fotografando o que me atingia, até encontrar Jaqueline com sua íris negra e sorriso que se encaixa com a simetria do lugar. O écran da minha câmera percebia certo exagero na inteligência supratentorial daquela menina de 10 de idade. Transmitia equilíbrio entre homem e espaço sem perder ternura. Depois de perguntar o nome, ela me respondeu o sobrenome. Pronto! Descobri que tenho uma priminha ribeirinha. Deu vontade de colocá-la no braço e acalentar no ritmo daquele lugar, ao dedilhado do violão do Tião. Imaginei minha mãe naquela idade, carregando os olhos daquele grotão dentro de um jamanchim rodeada de folhagem.
Decerto, naquele meridiano do planeta, rés aos pés das Sapucaias preservadas pelo óxido do tempo, está a oração certa para esconjurar assaltos de demônios, rastros de cidade e guerra entre policia e bandido.
Água Preta guarda na cor negra daqueles olhos a fluidez da paz e uma harmonia hereditária que já passa dos 100 anos de férteis gravidezes.
Difícil foi espiar o rumo de casa com a mesma retina... Difícil. 

Labareda, do bando de Corisco

domingo, 25 de outubro de 2015

Argentina. Sobre eleições e viagens.

Gente, estou com grande curiosidade para saber quanto custa cada etapa do processo eleitoral na Argentina. Deve ser mixaria, porque dura um ano inteiro! Fico abestalhadinha de ver. Mas certamente estes valores não devem constituir parte significativa do interesse dos hermanos hoje, quando foram às urnas para eleger, dentre outros cargos, presidente da República e alguns governadores, como de Buenos Aires. O resultado deve sair por volta da meia noite.

Bem, quero comunicar que aceitei o convite do meu irmão Murilo Júnior para ser colaboradora também no blog dele, que é especificamente sobre literatura. No mais, manterei minha participação sem tirar nem por aqui no Flanar.


Vou aproveitar pra deixar tanto o link para o que acabo de escrever em Biblioteca do Murilo - primeiras linhas sobre o livro "Viajes. De la Amazonia a las Malvinas", de Beatriz Sarlo - e o que produzi para a Revista do Brasil. - sobre o clima que antecedeu as eleições gerais na Argentina.

Cadê a opinião de vocês, hein?

PS: Adorei a questão de prova e o tema da redação do Enem 2015!

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Um conto de fé

"Ali somos louvores indizíveis, emoções libertas,
sintaxes fervorosas de outubro"
Raimundo Sodré, escritor
   
 Dois eram os irmãos da mesma mãe, mas de gametas masculinos tantos. Mesmos adultos, fervilhavam-se em ódio cultivado desde a tenra meninice, como os gêmeos Yaqub e Omar, de Milton Hatoum, vistos como Caim e Abel dos tempos de hoje. Um era depressivo, que chamaremos de Yaqub. Este tomou chumbinho numa caneca de lata na aventura de espiar o outro mundo pela fresta do ataúde. Não demorou a entrar em coma e passar direto pro CTI.

       Omar ignorava o acontecido, mas tratou de acalentar a dor da mãe, levando-a todos os dias para visita, mesmo sem Yaqub esboçar qualquer recuperação. Sequer entrava no hospital.

       A mãe rezava ao pé do leito, disputando a voz com o piriricar dos monitores. Rogava e prometia: se o moço Yaqub ressuscitasse, viraria promesseira, daquelas de carregar cruz nos ombros por todo o trajeto do Círio de Nazaré.

      Deu que certa madrugada bandidos invadiram aquela casa, mataram a mãe e balearam Omar no peito e no abdome. Omar foi para o campo cirúrgico, depois direto pro CTI, bem dizer, a beira da morte. O destino pôs irmão ao lado de irmão. A mãe seguiu outro caminho, o do campo-santo, em marcha fúnebre que mobilizou toda Marituba.

      Acabou que, passado mais de dois meses, os dois se recuperaram, ao peso de sequelas. Na volta para casa deram por falta da superiora.
      Ao se aproximar o Círio de Nazaré os dois enterraram suas discórdias naquele quintal de ódio e seguiram, de braços dados, encordoando a procissão, atrás do perfume da mãe. Decidiram carregar, em revezamento, a cruz chumbada em angelim-pedra, que havia sido promessa dela. Yaqub e Omar diluíram-se no mar de gente que flutua de pés descalços sobre o real espírito de fé, e partiram.
Foram os últimos a chegar, sob sol castigante. A cura da desavença veio na crença e na fé daquele trajeto. Caminhavam sem olhar para os lados, apenas focados na mãe que construiu suas memórias e passou a vida inteira tentando corrigir um erro que não soube como existiu.
        Para eles, desde então, o Círio tem uma única estrela: aquela imagem envolvida em manto sagrado na berlinda enfeitada de lírios brancos, protegida de chuva e sol. Só isso- nada mais. Outras estrelas como Padre cantor, eles acham que deveria ser banida, assim como todas as outras vozes de microfones que oram mais alta que romeiros. Palco com socialaites deveria ser derrubado com motoserra. Ficariam apenas as janelas que chovessem pétalas e fervessem fé. Os vendilhões de todos os templos e ruas seriam jogados na baía. Não haveria corda, pois fé não se amarra, move-se, seja no olhar estupefato da resignação de uma dor ou no roçar das peles breadas.

         Certamente os dois irmãos e todos os verdadeiros romeiros não pedem, só agradecem; fartam-se no amor ao próximo, mesmo tantos anos distantes, em que agora Maria fez aproximá-los. Passaram a se vestir numa só alma durante o cortejo de outubro e de todos os dias.

       No Círio de cada romeiro toda súplica vira lágrima, escorre até o chão e se mistura com os pés fissurados pelo asfalto e obstinados pela cura da dor alheia, que passa a ser de todos.

        Círio é um delírio que se carrega poarafusado na alma e quando dá de ser, vira encanto, frenesi e faz a gente se unir para intumescer palavras e sentimentos.

Corisco e Labareda

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Roube cinco, mas não roube cem




Resolvi assistir pela internet a entrevista completa de Carlos Tévez que havia visto, pela metade, na America TV, da Argentina, transmitida ao vivo no último dia 27 de setembro. É que ela repercutiu um bocado em diferentes meios, não sem motivos. No estúdio, Majul e Paluch conduziam o programa La Corniza, em mais de uma hora de altos, baixos e muito baixos.

Deixo o link, mas publico alguns desses momentos que selecionei desde meus filtros próprios e os transcrevi por livre tradução.

Já me atrevo a chamar de Carlitos ao camisa 10 do Clube Atlético Boca Júnior, especialmente porque cada vez mais denominam assim ao garoto que nasceu e foi criado no popular bairro Forte Apache, a noroeste da capital argentina. Carlitos é considerado um jogador do povo, pelo que se diz da simplicidade do cara, da vontade de ajudar a quem está ao seu entorno, além de ter saído de uma vida bastante humilde, conquistado títulos e grana incríveis no exterior e voltado como saiu em termos de relacionamento com sua rede familiar, incluindo aí os amigos.

Recentemente, alguns colocaram em xeque o bom caráter do jogador por conta de uma lesão que provocou no colega Ezequiel durante a partida contra Argentinos Juniors. O tornozelo do adversário foi quebrado numa disputa pela bola. E este foi um dos primeiros assuntos postos à mesa.

Lá pelos 29 minutos de conversa, o torcedor do River, Majul, sai com essa:
- E teus amigos? Não tem nenhum com ressentimentos? Alguém que diga: olha o que ele ganha! Te pedem dinheiro?

- Não me pedem, porque cada um tem seu trabalho também.

Curti esse lance, leitores. E veio mais uma forte emoção no minuto 35:30.

- Tu estiveste anos fora...
- Mais de dez.
- E voltas pra uma Argentina...quep...ts...a ver...É teu bairro, tua gente, nunca perdeste o contato, mas é... não é o mesmo viver aqui do que viver em Londres, em Manchester, na Itália ou em Turim, né?
- Eu vivo igual. Pra mim, não muda nada. Essa é a verdade.

O Majul não soube se expressar bem, mas eu tenho minhas hipóteses. E Tévez se saiu bem de novo.
- Você sabe o que passa na Argentina, né?

- Sei.
- O futebol é um negócio espetacular. Juntam uns vagabundos, com Grondona na cabeça, e poderia ser muito melhor.
- Eu sou muito egoísta nestas coisas. Roubar, roubam. Mas que roubem cinco [milhões], não cem [milhões].

Chutaram tudo pro ventilador, leitores! Um ataque de sinceridade?

Majul estava indócil com o assunto de grana. Virava e mexia, voltava ao assunto, como no minuto 51:20.


- O que deixaste pra vir à Argentina?
-... Depende do contrato...
- 20, 100...
- O que eu deixei, pronto, já foi. O que eu ganhei foi felicidade.

Foi bonita essa resposta, hein?

Loguinho depois do Tévez ter enveredado por uma conversa sobre seu novo encanto pelo golf, seu encontro com o papa Francisco...lá vem o Majul de novo.

- Não sei quanto deverás ter perdido...Tiveste uma oferta de uma equipe de onde mesmo?
- Da China.
- Algo assim com uma das mãos está bem, né [cinco milhões]?
- 20, por ano.

Paluch completa com uma gracinha que não moveu um músculo que seja da cara do jogador:
- E não de golf. Hahahaha

Majul inconformado:
- Falaste com a tua família? Podes me explicar?
- Sim, decidimos as coisas juntos.

Majul move os braços como uma galinha as asas e mantém o ritmo:
- Dizer é fácil, mas ...

Paluch engata um grave:
- Siiim.


Tévez?
- Já foi. Ainda que eu tenha desfrutado nesses dez anos, senti falta do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos, perdi a infância dos meus sobrinhos, de irmãos, e da mesma forma com minha esposa, com minhas filhas. Neste exato momento, 20 milhões não me faz falta. Tem um dito que me falou meu tio: a gente não se dá conta, mas nasce nu e morre nu. Uma vez que minhas filhas já têm seu futuro garantido, poderão estar bem, pronto. Agora tenho que tratar de ser feliz do mesmo jeito.

Mas Paluch queria ter uma participação notável naquele bate bola. E dispara:
- Como foi estar jogando a final da Champions e poucos dias depois jogar Boca-Quilmes? Sem ser pejorativo com ninguém!
- Sabes a diferença? Eu me deitava e dormia pensando no jogo que tinha que jogar no dia seguinte.

Nobres leitores, devo dizer que costumo ser passional e de pronto reagir ao que me parece incrível, seja algo que eu considere bom ou ruim. Mas também tenho um dispositivo que me coloca um balde de água fria e me faz refletir um pouco mais, olhar os fatos desde outros pontos de vista. Por isso, prefiro não manifestar todas as minhas suposições a respeito desta entrevista, o que naturalmente já vazou, pelo menos uma parte delas, durante o texto. Vou guardar algumas comigo. Ruminar um pouco, talvez. E fico no aguardo da opinião de vocês.

domingo, 27 de setembro de 2015

O sedentarismo revolucionário

"O presente se assusta com o futuro e desdenha o passado"

Ao pegado de meu quarto, vejo, vez por outra, meu vizinho se revezando entre as guitarradas do rock e rabiscadas em folhas de papel. Quando me repassa alguma de suas criações, eu roo as unhas na busca incessante de interpretar toda essa contextualização. Desta feita, com o leito ungueal em carne viva, compartilho essa-umazinha que sai do quintal de seus sentimentos e chega à tela de vocês por meio desse delivery tecnológico chamado internet, componente fogoso do tal sedentarismo revolucionário.

Segue, João Pedro (*). A verve é toda sua:

"O indivíduo nômade que descobriu o sedentarismo teve a mesma perspicácia do inventor do telefone. A distância temporal entre esses homens é apenas detalhe, como o grão de açúcar que cai - a mais - no café ainda desalmado. A única diferença entre esses cérebros é justamente o que, na redondeza de sua visão, a natureza proporcionou para a sua descoberta.
Fixar-se em um pedaço de terra e ali aplicar a agricultura foi a revolução tecnológica mais avançada que o ser humano conseguiu descobrir naquele período. O mesmo vale para o telefone, para a pólvora, para o televisor e para a ciência em geral. Somos todos filhos do nosso tempo e netos de nossa memória.
O então sedentário é o mais novo revolucionário. E daquela situação certamente não esperou que o mundo fosse capaz de ir além. Não imaginou a comunicação pelo telefone. Cavaleiros medievais não imaginaram máquinas com a força de duzentos de seu cavalo mais forte.
Assustamo-nos com cada nova peripécia da tecnologia; não imaginamos que tal coisa fosse um dia possível. O presente se assusta com o futuro e desdenha o passado. Se não somos capazes de adivinhar a próxima descoberta, somos altamente capazes de subjugar o antigo pela coerção mais ignorante que a tecnologia não foi capaz e ofuscar: a que somos o estágio mais avançado da humanidade. Daqui não há pra onde ir, pensam os otimistas. Otimismo semelhante ao sedentário revolucionário.
Somos aquela pedra colecionável em alguma sala de estar, que não serviu para embelezar a praia (pois haviam milhões de outras) e por isso fora retirada de lá. Somos um grão de areia na praia da História (sim, com “h” maiúsculo. Mais respeito com essa sábia senhora).

Se continuarmos a desdenhar o passado - a memória e a História -, quem fará o papel de mãe das causas humanas? Aquela que, quando o filho erra está ali para sentar, por no colo, conversar, apontar os erros e cobrar os acertos na próxima oportunidade? Caminhamos para enjaular a História e suas ciências-irmãs no calabouço de algum castelo, como algum profeta herege. A ditadura do imediatismo pagará o preço por dar liberdade à História apenas quando o primeiro visitante entrar no museu: se arrependerá no dia em que amanhecer sem História."

* João Pedro Normando é estudante de História da UFPA.

domingo, 13 de setembro de 2015

Velas para vê-la

Velasco vendia velas. Partia de Manaus em seu batelão singrando a bacia amazônica, até alcançar a foz do Juruá. Depois cortava aqui, atalhava ali por rios largos e acolá por estreitosaté os cafundós do Envira, em carga plena e água rés ao costado. Vinha tenteando os barrancos com as peças de cera. O ultimo vilarejo já era quase terras peruanas. 
Em cada empreitada gastava três, quatro meses. Nunca adoeceu; nunca se acidentou. Aprendeu o oficio com o pai que costumava dizer que aquelas águas guardavam os perigosos Pium e Candiru. Conheceu toda a ciência da floresta pela convivência com ele, admirador de Euclides da Cunha, que geografou todos aqueles rios e barrancos e também as expedições de Rondon e a historia da telegrafia. 
No verão, entretanto, Velasco retornava a Manaus, por conta da seca dos rios.
O comércio das velas - por vezes trocava por guaraná, balata ou comida - estava ameaçado pela eletricidade. Ele vociferava sobre a luz elétrica, que acabara de chegar a Manaus. Dizia que apagava a sombra do amor brandido entre quatro paredes e ainda tinha o risco de choque. O discurso midiático era para continuar aquele comércio, mantendo a tradição do pai, comandante do famoso Alaíde. As que mais vendiam eram as perfumadas que mandava buscar na feira do Ver-o-Peso, em Belém. Tal como bom vendedor não lhe faltava verbo e galanteios às mulheres que tinham o mocotó roliço. Era pra elas que guardava as aromáticas.
Sempre que tinha oportunidade laçava uma nativa e, com toda a lábia, deixava assombro aos pensamentos dos maridos quando saiam para pescar e caçar. Também levava na proa a lenda do Boto para prevenir as que surgissem buchudas. Já saiu muitas vezes pelas portas do fundo por conta de marido irado.
Mas num barranco, Feijó rio abaixo, próximo ao paralelo 10, morava uma morena cor-de-jambo, que havia acabado de perder o marido por conta de uma ferroada de Candiru. Inflamou, supurou e quando deram conta de subir pra Manaus, o membro estava podre e só restava a amputação, às pressas. Mesmo assim, a infecção já tinha corrido pelo sangue e parado nos pulmões, alcançando a morte.
Velasco soube dessa história ao vender velas para velarem o morto. Lá estavam apenas a viúva, dois bacuris pequenos – um de colo – e três vizinhos em posição de condolência. Enterraram-no no fundo do terreno, próximo à cacimba.
De soslaio, ele percebia naquela cabocla de luto um incenso especial que exalava o perfume dos sândalos.
Até que esperou o dia seguinte, boca da noite, para voltar, aportar e enxugar as lágrimas da viúva. Naquela noite trouxera uma vela que exalava o aroma da priprioca. Amou até o último fumego do pavio. Prometeu jamais voltar a vê-la.
N’outro dia apareceu com uma sete-dias-sete-noites, que liberava patchouli; amou até o último facho de luz jurando, desta vez, desaparecer em definitivo.
No terceiro ressurgiu com uma de metro, em castiçal de meio metro, vaporizando alecrimQuando saiu da tapera, a luz da lua, para apanhar água da cacimba pro asseio pós-coito, olhou pra trás e viu que a chama nunca mais se apagou e a fragrância de todas as velas havia se unificado naquela coitada.

Era início de verão e por lá se embrenhou. Até hoje Velasco vive de mãos dadas com o tempo derretido ao pé de cada vela balsamada.

Labareda, do bando de Corisco