Com a gentileza que lhe é peculiar, o querido amigo
Paulo Klautau Filho, Mestre pela UFPa, Master in Law pela New York University (NYU) e Doutor em Direito pela USP escreveu, com exclusividade para o Flanar, um artigo a respeito do acordo firmado pelo Estado do Pará junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA no caso da Fazenda Ubá, e que foi
notícia aqui no blog na semana passada.
A íntegra do artigo segue abaixo.
O PARÁ NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS: ENTRE A BARBÁRIE E A UTOPIA.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos está inserido no processo histórico recente de construção de um Direito Internacional dos Direitos Humanos. Trata-se do esforço de afirmação de uma consciência ética coletiva, sustentada por um sistema institucional capaz de reconhecer, proteger e promover aqueles direitos.
Os marcos iniciais de tal processo são a Carta da Organização das Nações Unidas (1945) e a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948).
A Carta da ONU é o primeiro texto normativo com força jurídica vinculante da história da humanidade a reconhecer e a adotar a expressão “direitos humanos” (!). Por isso, no imediato Pós-Guerra, a tarefa inicial da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) foi preencher de conteúdo a expressão, dizendo quais são aqueles direitos e quem são seus titulares.
Mas a DUDH é uma Resolução da Assembléia Geral da ONU. Isso significa que ela não tem a força de um tratado internacional. Em outros termos, ela não tem “força de lei”. Corresponde a uma exortação moral - o que os internacionalistas chamam de “soft law”. Mas, a partir dela, iniciou-se um amplo e árduo processo de negociação e implementação de tratados e sistemas jurídicos visando a dotar seus princípios e direitos de efetividade, levando-se em conta, cada vez mais, as situações concretas de sujeitos específicos de direitos (por exemplo: mulheres, crianças, minorias étnicas, vítimas de tortura) e a diversidade político-cultural entre as regiões do planeta (daí, os sistemas africano, interamericano e europeu de direitos humanos).
Os tratados internacionais são estruturados a partir da ideia de que não basta declarar direitos. É preciso estabelecer deveres (quem é responsável pela promoção dos direitos? quais os meios?), criar “mecanismos de monitoramento” e “órgãos de monitoramento” para acompanhar a realização de direitos e deveres reconhecidos nos tratados.
A responsabilidade primária pela promoção dos direitos é dos Estados-membros, que aceitam, exercendo a escolha soberana de serem partes do tratado, o monitoramento subsidiário dos órgãos de monitoramento previstos no instrumento. Esta verdadeira jurisdição internacional subsidiária deve atender aos requisitos do esgotamento dos recursos internos ou da injustificada demora por parte do Estado nacional em resolver questões de violação de direitos.
A Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica (1969) é o tratado que criou o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, instituindo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos como órgãos de monitoramento deste sistema regional.
O Brasil, por evidentes razões históricas, somente aderiu ao Pacto de San José em 1992 (mais de duas décadas depois de sua adoção) e somente reconheceu a competência da Corte Interamericana para apreciar petições com queixas e denúncias de violações de direitos de seus cidadãos (o mecanismo de monitoramento por excelência do sistema) em 1998. Vale enfatizar, portanto, que esta verdadeira jurisdição internacional de direitos humanos assim como a participação do Estado Brasileiro nela ainda ensaiam seus primeiros passos.
O acesso das petições contra o Brasil ao sistema interamericano, atendido o requisito do esgotamento dos recursos internos e/ou da demonstração da injustificada demora, inicia-se sempre pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Esta deverá ouvir o Estado interessado e fazer recomendações pertinentes para remediar a situação examinada. Se o Estado não tomar as medidas adequadas, a Comissão poderá enviar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujas decisões terão força de sentença judicial, podendo ser executadas pelo processo interno vigente contra o Estado.
Em suma, pode-se dizer que, enquanto a Comissão atua com funções de um órgão de conciliação e de ajuste de conduta, a Corte atua com funções de verdadeiro órgão jurisdicional. Toda a ideia de uma jurisdição internacional de direitos humanos é orientada pela busca de efetividade e de superação do paradigma tradicional da soberania absoluta dos Estados nacionais na relação com seus cidadãos. Por esse processo, os cidadãos ganham personalidade jurídica de Direito Internacional e os Estados aceitam que devem prestar contas à comunidade internacional.
É nessa perspectiva mais ampla que se deve situar o primeiro acordo celebrado pelo Estado do Pará, como ente da federação brasileira, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no caso da Fazenda Ubá (Caso 12.277), reconhecendo responsabilidade pela morte de oito trabalhadores rurais em conflitos fundiários, indenizando familiares das vítimas e comprometendo-se a adotar medidas de não repetição.
Nada disso apaga as perdas humanas e a dor de familiares. E, também, não se produz magicamente a paz no campo e a superação da indignação que a impunidade deste, e de outros crimes, para além do contexto do conflito fundiário em nossa região, despertam nos cidadãos de nosso país.
Contudo, não se deve minimizar a mudança de paradigma na atuação do Estado do Pará, no contexto brasileiro e internacional, concretizada em um acordo desse tipo perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O Estado do Pará agiu como participante ativo no sistema internacional, e como liderança federativa dentro do país, contribuindo para a integração do Brasil a este processo de construção de um aparato institucional e ético que reúna mecanismos internos e internacionais na luta por justiça social.
Vale lembrar que as recomendações feitas ao Brasil pela Comissão Interamericana, no caso “Maria da Penha” (2001), foram fatores decisivos a influenciar o processo interno de promulgação da Lei “Maria da Penha”, em 2006. A lei não acaba com a violência doméstica no país, mas é um duro golpe na crença de que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. A plena efetividade da Lei depende da interação entre mecanismos de execução e de mudança pedagógica na consciência ética coletiva.
De forma análoga, a violência, a impunidade e a injustiça nos conflitos fundiários em nosso Estado, e nosso país, ainda serão um desafio por muito tempo. Mas entre a barbárie e a utopia, hoje, o Estado do Pará deu um passo em direção à utopia. Para que outros passos sejam dados, este precisa ser compreendido.