Espere um instante, deixe-me encher o copo. Quer chupar a rodela de laranja e cuspi-la a seguir no cinzeiro, idêntica a uma fatia baça e seca de sol de outubro, chupar a laranja, de olhos baixos, para se poupar a si mesma o espectáculo derisório da minha comoção, comoção de bêbedo, às duas da manhã, quando os corpos se principiam a deslocar como limpa-pára-brisas, o bar é um Titanic que nafraga e as bocas caladas entoam hinos sem som, abrindo-se e fechanco-se à laia dos beiços tumecfatos dos peixes? Há qualquer coisa, sabe como é, de galeão espanhol submerso nesta sala, povoado de cadáveres à deriva da tripulação que uma claridade sublunar diagonalmente ilumina, cadáveres que flutuam sem aderir as cadeiras, entre duas águas, a ondulares os braços sem ossos num vagar de limos. Até os empregados se tornam demorados, sonolentos, criando raízes no balcão à maneira de corais estupefactos que o barman estimula por vezes ao dar-lhes a cheirar o frasco de sais de uma aguardente de pêra, salvando-os dessa forma de um coma vegetal. E aqui estamos nós, afogados também, franzindo de tempos a tempos as vieiras das pálpebras, polvos de aquário borbulhando palavras que a música de fundo dissolve num murmúrio em surdina de maré, você a escutar-me com a tranquila paciência das estátuas (que língua falariam as estátuas, se falassem, que frases se segredam à noite no silêncio oco, de sarcófago com escarradores, dos museus?), você a escutar-me, dizia, e eu contando-lhe da chamada ao rádio para ouvir de Gago Coutinho, palavra a palavra, a notícia do nascimento da minha filha, agarrado às costas da cadeira do cabo de transmissões e a pensar Vai-me dar uma camueca e estou fodido.
Trecho magistral do romance Os cus de Judas (Editora Alfaguara. Rio de Janeiro,1979), escrito por Antònio Lobo Antunes, considerado um mestre da literatura portuguêsa contemporânea. O livro é a narrativa das aventuras de um médico português depois de voltar da guerra da independência de Angola, que o faz de forma densa e inovadora como tragédia irrecuperável para os povos que dela participaram. Lobo Antunes (66 anos), que tem costados paraenses de partes do avô paterno, é médico de formação, com especialização em psiquiatria. Sua família e as tradições paraenses que lhe acompanharam na infância, ele as narra no livro Memória de Elefante, disponível em edição brasileira. Em 2007, recebeu o Prêmio Camões, considerado uma das maiores honrarias da literatura em língua portuguesa.
Trecho magistral do romance Os cus de Judas (Editora Alfaguara. Rio de Janeiro,1979), escrito por Antònio Lobo Antunes, considerado um mestre da literatura portuguêsa contemporânea. O livro é a narrativa das aventuras de um médico português depois de voltar da guerra da independência de Angola, que o faz de forma densa e inovadora como tragédia irrecuperável para os povos que dela participaram. Lobo Antunes (66 anos), que tem costados paraenses de partes do avô paterno, é médico de formação, com especialização em psiquiatria. Sua família e as tradições paraenses que lhe acompanharam na infância, ele as narra no livro Memória de Elefante, disponível em edição brasileira. Em 2007, recebeu o Prêmio Camões, considerado uma das maiores honrarias da literatura em língua portuguesa.